Alexandre José Dantas do Nascimento

Luiz Carlos Silva Faria Junior

Que o debate climático tem ocupado o centro dos holofotes na política mundial está claro. As discussões provocadas pela Cúpula de Líderes sobre o Clima, convocada pelo presidente estadunidense, Joe Biden, em abril de 2021, e os preparativos para a COP-26, que ocorrerá em Glasgow em Novembro, têm gerado cada vez mais interesse na questão e contribuído para a construção de pressão pública para o avanço da agenda climática.
No entanto, esse debate quase sempre se dá através de perspectivas e em espaços majoritariamente brancos, masculinos e cis-heteronormativos, hegemonizados por atores europeus/estadunidenses, reproduzindo a dinâmica estrutural de exclusão com base em raça, orientação sexual e identidade de gênero.
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O caso da ativista negra de Uganda, Vanessa Nakate, que foi cortada de uma fotografia com outras ativistas – todas brancas, dentre elas Greta Thunberg – tirada durante o Fórum Econômico Mundial de 2020, exemplifica bem esse processo de exclusão e marginalização de determinados sujeitos no debate ambiental (THOMAS, 2020).
A dinâmica estrutural de exclusão se articula com a própria concepção do que é a justiça climática, ou seja, a ideia de que os impactos das mudanças climáticas atingem de forma e intensidade diferentes os diversos grupos sociais (MILANEZ; FONSECA; 2011). Nesse sentido, observa-se uma chance de grupos já vulnerabilizados socialmente - como é o caso da população LGBTQIA+<a href="applewebdata://3BB900A0-3C9B-4735-8813-1D4EBDC4943B#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, negros, indígenas, mulheres, indivíduos fora do eixo Sul-Sudeste, pobres e demais grupos vítimas dos constantes processos de opressão e invisibilização social – sofrerem de maneira mais agravada os efeitos e impactos das mudanças climáticas (RAMMÊ, 2012).
Quando se observa as vítimas de graves eventos ambientais e climáticos no decorrer dos anos, como furacões, enchentes, estiagens, deslizamentos e temperaturas extremas, é possível perceber, na grande maioria dos casos, que os impactos são desiguais em relação a pessoas em situação de vulnerabilidade. E o retrato das desigualdades é o mesmo quando se analisa as estatísticas de desemprego, de precarização no trabalho, da população em situação de rua, das habitações sem saneamento básico e/ou próximas a empreendimentos de alto risco ambiental.
<blockquote class="jota-article__eye">Tal sobreposição não é coincidência. As origens das mudanças climáticas estão diretamente conectadas com as origens das múltiplas formas de opressão: o modo de produção capitalista predatório imposto histórica e sistematicamente pelas grandes potências do mundo.</blockquote>
O debate sobre justiça climática se estrutura – ou deveria se estruturar – sobre a necessidade de se combater, reparar e remediar as injustiças e desigualdades produzidas pelo modo de produção capitalista global em relação ao clima e ao meio ambiente. Em suma, o debate climático precisa ser compreendido a partir da existência de desigualdades estruturais e de vulnerabilidades de diversas ordens – racial, de gênero, de classe, em relação à orientação sexual e identidade de gênero etc.
Dito isso, torna-se imperativo enfrentar o debate sobre o clima a partir de uma perspectiva interseccional que confere “instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado” (AKOTIRENE, 2019, p.119). Ou seja, se constitui a partir da existência de diversas condições estruturais que atravessam os corpos e as subjetividades de maneiras distintas, permitindo compreender que os efeitos negativos das mudanças climáticas impactam os indivíduos e grupos sociais de maneira diversa.
Isso não significa que há uma hierarquia ou soma de opressões, mas sim que os sujeitos se relacionam com o mundo a partir de posicionalidades distintas, compreendidos seus privilégios e desprivilégios. Construir uma perspectiva interseccional é se apropriar desta ferramenta teórica que torna possível a análise dos fenômenos sociais a partir da interação de diversas estruturas de exclusão e opressão e seus resultados, bem como os processos de resistência e mobilização.
Assim, no mês do orgulho LGBTQIA+, torna-se ainda mais urgente e necessário construir uma análise interseccional de modo a refletir sobre os desafios e contribuições que uma perspectiva não-hegemônica e queer traz para o debate climático.
À luz da necessária noção de que a análise das mudanças climáticas precisa ser construída a partir de uma perspectiva interseccional, cabe abordar de maneira mais específica a vivência LGBTQIA+ nesse contexto, bem como tal grupo, enquanto vulnerabilizado socialmente, é potencialmente afetado pelas mudanças no clima. Afinal, existem pontos de encontro relevantes entre política queer e ambiental (MORTIMER-SANDILANDS, 1994) que precisam ser comentados e aprofundados dentro do debate nacional e internacional sobre o tema. É preciso destruir o “armário” que invisibiliza a população LGBTQIA+ enquanto vítima da crise climática.
Quando se pensa na população LGBTQIA+, os efeitos das mudanças climáticas são potencializados na medida em que tais pessoas, desde cedo, são vítimas de um processo de exclusão social e, muitas vezes, de rejeição e expulsão de seus seios familiares. Isso demarca a existência de muitos indivíduos desabrigados, em razão unicamente das vivências de sua orientação sexual/identidade de gênero, que habitam lugares mais suscetíveis a eventos climáticos extremos. De acordo com pesquisa realizada pelo Williams Institute da UCLA Law, mais de 1,6 milhões de jovens ficam desabrigados anualmente nos Estados Unidos, sendo 40% dessa população indivíduos que se identificam como LGBTQIA+ (SEATON, 2017); a porcentagem é de 24% no Reino Unido (RANDALL, 2020).
Nesse aspecto, é importante dar especial foco às pessoas transexuais e travestis, que são expulsas de casa e, diante da dificuldade de conseguir trabalhos formais, acabam, em boa parte dos casos, nas ruas em situações de marginalização e exclusão. São conhecidas várias iniciativas sociais para abrigar pessoas trans em situação de rua, a fim de fornecer condições mínimas de sobrevivência.
A nível internacional, também é possível pensar em diversos contextos nos quais os LGBTQIA+ foram e são diretamente atingidos por efeitos climáticos extremos: o ciclone que ocorreu em Moçambique, Zimbábue, Malawi (BRADY, 2019); os jovens LGBTQIA+ desabrigados na Jamaica e Porto Rico vítimas dos furacões; o incremento da comunidade LGBTQIA+ nas cidades dos Estados Unidos com grande risco de aumento do nível do mar e crescimento de tempestades (BRADY et al, 2019).
É importante ainda destacar que parte da comunidade LGBTQIA+ do mundo migra de seus países pelo extremismo e pela supressão de seus direitos e liberdades, e em decorrência disso se instalam em locais com maior risco de impacto por eventos climáticos. Ou, quando não migram, habitam e circulam em espaços públicos limitados, considerando a necessidade de autopreservação de seus corpos (INGRAM, 1994).
Ademais, é forçoso reconhecer que as políticas públicas raramente incorporam análises interseccionais, e os lugares de decisão sobre questões ambientais e climáticas ainda são dominados por pessoas e visões usualmente binárias, cisheteronormativas, racistas e sexistas. O padrão observado em fóruns internacionais, nos conselhos e em cargos de decisão de empresas e nos altos cargos públicos é de concentração do poder decisório a partir dos privilégios da branquitude, masculinidade e cisheteronormatividade (BRADY, 2019).
Dentro dessa realidade observada, é certo que a comunidade LGBTQIA+ é fundamental para o avanço da pauta climática e para o enfrentamento às injustiças climáticas. Os movimentos do queer liberation podem colaborar para o debate da justiça climática e incorporar suas práticas, sentimento de comunidade e lutas de resistência nesse processo de desconstituição da injustiça climática, partindo da compreensão que somos parte da natureza e não estamos fora dela (BRADY, 2019).
Criar lugares e formas de trazer visibilidade para esse recorte é essencial à justiça climática, uma vez que essas experiências estão sendo invisibilizadas pela cisheteronormatividade com que a natureza (GABRIEL, 2011) e as questões ambientais vêm sendo tratadas.
A interseccionalidade não pode ser resumida ao dito debate identitário – fruto de desconhecimento ou desonestidade intelectual – e não pode se esgotar somente na representatividade, com a participação de mulheres, negros, indígenas, pessoas LGBTQIA+ nos espaços; é fundamental que a construção dessa perspectiva alcance as dinâmicas estruturais produtoras das desigualdades.
Assim, acredita-se ser fundamental virar os olhos para o futuro, partindo das experiências do passado – das lições de Stonewall, do Lampião da Esquina, das vidas perdidas, das marchas, atos públicos e revoluções privadas -, para repensar o debate climático de maneira central e não marginal.
De modo a construir uma perspectiva LGBTQIA+ para o enfrentamento da crise climática e de seus efeitos, aponta-se, de maneira não exaustiva, alguns pontos propositivos para reflexão:
[i] As mobilizações sociais relativas à questão climática devem incorporar o combate à lgbtfobia e ao racismo ambiental em suas pautas de maneira central, de modo a realizar pressão nos setores de decisão (grandes corporações e governos) para produção de políticas públicas efetivas que levem em consideração os impactos estruturalmente desiguais das mudanças climáticas;
[ii] As redes e organizações da sociedade civil no campo ambiental e climático devem realizar compromissos financeiros para a realização de estudos acadêmicos e empíricos voltados à identificação da população LGBTQIA+ e suas pautas específicas dentro do debate climático à luz da realidade brasileira e global;
[iii] Os espaços de decisão sobre as políticas ambientais e climáticas precisam ser ocupados por pessoas LGBTQIA+, principalmente mulheres negras, travestis e transexuais, a fim de influenciar na construção política do campo a partir de um local não hegemônico;
[iv] Inclusão da pedagogia queer no enriquecimento da prática e da teoria a respeito da educação ambiental (RUSSEL et al, 2002) e criação de espaços seguros para expressão política e acadêmica de pessoas LGBTQIA+, constantemente perseguidas, ameaçadas e boicotadas nos espaços de ativismo e de produção acadêmica.
O debate sobre justiça climática no Brasil ainda é incipiente, especialmente a partir do enfoque proposto, apesar de fundamental. É necessário entender que não é possível falar de justiça climática sem falar de justiça racial, justiça social, justiça de orientação sexual e de identidade de gênero.
É imperativo reconhecer a urgência de tornar visíveis as experiências de injustiça climática tão invisibilizadas no debate climático, trazendo as travestis e transexuais negras os povos e comunidades tradicionais, as lideranças comunitárias periféricas para as arenas decisórias.
E, por fim, é imprescindível construir instrumentos de responsabilização e de avanço prático e sistemático em relação à crise climática. É preciso tensionar o sistema e o modo de produção global atual para que o novo surja. Trata-se de “ver a beleza nas feridas do mundo e também sobre responsabilizar-se por cuidar do mundo como ele está” (MORTIMER-SANDILANDS, 2011).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AKOTIRENE, Carla. O que é Interseccionalidade. São Paulo: Pólen, 2019.
BRADY, Aletta et al. In Conversation: A Listening Series on Climate Justice and Collective Liberation. Episode 1 - In Conversation: Queer and Trans Liberation. Pinecast, 2019. Podcast. Disponível em: <a href="https://open.spotify.com/episode/1UhB3RZJUn9voWMSx3hMgx?si=qs6sBcdDRAm9M88CgbhGfw&amp;nd=1" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://open.spotify.com/episode/1UhB3RZJUn9voWMSx3hMgx?si=qs6sBcdDRAm9M88CgbhGfw&amp;nd=1</a>.
BRADY, Aletta et al. What the queer community brings to the fight for climate justice. Disponível em: <a href="https://grist.org/article/what-the-queer-community-brings-to-the-fight-for-climate-justice/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://grist.org/article/what-the-queer-community-brings-to-the-fight-for-climate-justice/</a>. Acesso em: 02 jun. 2021.
GABRIEL, Alice. Ecofeminismo e ecologias queer - uma apresentação. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.
INGRAM, Gordon Brent. Lost Landscapes and Spatial Contextualization of Queerness. Queer nature. UnderCurrents - journal of critical environmental studies, Toronto, 1994.
MILANEZ, Bruno; FONSECA, Igor Ferraz. Justiça climática e eventos climáticos extremos: uma análise da percepção social no Brasil. Revista Terceiro Incluído, v. 1, p. 82-100, 2011. Disponível em <a href="https://www.revistas.ufg.br/teri/article/view/17842" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.revistas.ufg.br/teri/article/view/17842</a>. Acesso em: 13 jun. 2021.
MORTIMER-SANDILANDS, Catriona. Lavender’s Green? Some Thoughts on Quuer(y)ing Environmental Politics. Queer nature. UnderCurrents - journal of critical environmental studies, Toronto, 1994.
MORTIMER-SANDILANDS, Catriona. Paixões desnaturadas? Notas para uma ecologia queer. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.
RAMMÊ, Rogério. A política da justiça climática: conjugando riscos, Vulnerabilidades e injustiças decorrentes das mudanças Climáticas. Revista de Direito Ambiental, v. 65/2012, jan. 2012, p. 367.
RANDALL, Catrina. Why Climate Change is an LGBTQ+ Issue. Disponível em: <a href="https://foe.scot/why-climate-change-is-an-lgbtq-issue/" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://foe.scot/why-climate-change-is-an-lgbtq-issue/</a>.
RUSSEL, Constance et al. Tornando queer a educação ambiental. Estudos Feministas, Florianópolis, 19(1): 312, janeiro-abril/2011.
SEATON, Jaimie. Homeless rates for LGBT teens are alarming, but parents can make a difference. Disponível em: <a href="https://www.washingtonpost.com/news/parenting/wp/2017/03/29/homeless-rates-for-lgbt-teens-are-alarming-heres-how-parents-can-change-that/?noredirect=on" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.washingtonpost.com/news/parenting/wp/2017/03/29/homeless-rates-for-lgbt-teens-are-alarming-heres-how-parents-can-change-that/?noredirect=on</a>. Acesso em: 13 jan. 2021.
THOMAS, Jennifer Ann. “Fomos apagados”, diz ativista ambiental negra cortada de foto. Veja, São Paulo, 05 jun. 2020. Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/impacto/fomos-apagados-diz-ativista-ambiental-negra-cortada-de-foto/. Acesso em: 16 jun. 2021.
<a href="applewebdata://3BB900A0-3C9B-4735-8813-1D4EBDC4943B#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> A sigla refere-se às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Queer, Intersexuais e Assexuais. Em decorrência das suas múltiplas acepções, considerando a necessidade de objetividade metodológica, adotou-se para o presente trabalho a sigla LGBTQIA+, a fim de incluir as outras compreensões existentes.

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