Iuri Dantas

Quando foi deflagrada por policiais federais, procuradores da República, auditores fiscais e integrantes da Corregedoria do Ministério da Fazenda em março de 2016, a operação Zelotes foi apresentada como uma apuração de bilhões de reais boicotados aos cofres públicos por grandes empresas.
O dinheiro seria devido à União por contribuintes como siderúrgicas, bancos, montadoras de veículos e outros, em tributos e autuações do Fisco contestados por advogados em processos administrativos. O palco do esquema era o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), um órgão pouco conhecido da imprensa tradicional, onde a opinião pública não desempenha o mesmo controle difuso e crítico que em outros tribunais, como notadamente o Supremo Tribunal Federal.
Os investigadores apontaram indícios claros de que havia combinação entre conselheiros, advogados, consultores e lobistas para manipular as decisões do órgão. Segundo a legislação, cabe ao Carf – reformulado no segundo governo Lula para suceder o antigo Conselho de Contribuintes – fazer o julgamento final na esfera administrativa das disputas entre contribuintes e o Leão.
Mas enquanto a apuração policial evoluiu, subindo na cadeia de comando de empresas e órgãos públicos, apontando o suposto envolvimento de peixes graúdos do setor privado e público não apenas na negociação de decisões do Carf como também no conluio para inserção de benefícios tributários – leia-se cortes e descontos de impostos e contribuições –, o mundo político segue em marcha lenta.
Formou-se uma Comissão Parlamentar de Inquérito no Senado. Por meses, foram convocados depoentes que preferiram o silêncio. Elaborou-se um relatório sem nenhum indiciamento, semanas antes de a Justiça aceitar indiciamentos da Polícia Federal. Por óbvio, ressalte-se que investigadores sob autorização judicial têm acesso a dados mais completos e comprometedores das relações criadas na teia entre funcionários públicos e outros atores em um órgão importante e pouquíssimo transparente.
Em meio à toda a confusão, duas possíveis cortinas de fumaça.
1) O funcionamento do Carf foi suspenso, pondo sob suspeita a atuação de todo o corpo funcional que atua ali. Um novo regimento interno foi elaborado, buscando maior controle, transparência e consolidação de procedimentos – como a distribuição de processos, acesso às decisões, pedidos de vista, entre outros. Ou bem se sabe quais são os processos sob suspeita e o que permitiu que fossem contaminados por propina ou negociações espúrias. Ou fecha-se a porta arrombada com um cadeado brandindo de novo.
2) A atuação de advogados no conselho seria suspeita por natureza, uma vez que a mesma pessoa julgaria num dia e no dia seguinte receberia clientes para falar sobre as mesmas teses jurídicas. O então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, tratou de provocar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), que aceitou o dilema e limitou a atuação dos advogados no órgão. É como se conselheiros de outras profissões, como engenheiros ou contadores, tornassem o órgão menos suscetível à corrupção do que conselheiros advogados.
As conclusões da CPI do Senado e a atuação pública do Ministério da Fazenda padecem da mesma timidez, que agora pode ser vista na comissão em funcionamento na Câmara dos Deputados. A Zelotes mostrou que o Carf foi capturado por interesses criminosos, de lesar o Fisco em relação a demandas e fiscalizações legítimas contra contribuintes. O poder econômico de grandes grupos prevaleceria sobre o justo, o correto.
Isso, no entanto, não entrou em discussão.
Em uma simplificação grosseira, trata-se de saber no fim do dia se decisões do Carf foram técnicas, amparadas pela legislação, ou voltadas para satisfazer interesses econômicos. E isso não se faz apenas por depoimentos em silêncio de suspeitos, mas por perícias, análise aprofundada da jurisprudência do Carf, dos votos que permitiram vitórias questionáveis de contribuintes contra o Fisco. Lembrando que, por se tratar de disputas jurídicas, há sempre um grau de interpretação do que está escrito, permitindo que o Direito evolua com a sociedade e a economia.
A CPI do Carf acabou de voltar as baterias para os advogados que atuam no órgão. Solicitou o nome de todos eles ao Conselho, o que ajuda a sistematizar bastante informações que estão disponíveis, como comprovam reportagens do JOTA sobre o tema.
Os nomes dos advogados e dos escritórios é público e notório – até porque aos vitoriosos, aqueles que derrubam grandes autuações com base na lei e boa prática do Direito, interessa que o mundo saiba de seu sucesso e novos clientes batam às suas portas. Mas, tudo indica, receber uma lista de nomes acrescenta pouco ao esclarecimento necessário sobre o que ocorreu no Carf nos últimos anos, embora atenda o anseio de congressistas por holofotes.
Parte do problema reside na dificuldade de o Congresso dar respostas à sociedade sobre o emaranhado de leis, normas, regulamentos e interpretações sobre questões tributárias. O entrave da sempre esperada reforma, para atender interesses de governadores que não aceitam perder um naco da coleta de impostos, ilustra mas não encerra o assunto.
Nesta quarta-feira (15/06), o Carf tem na sua pauta uma das questões mais importantes apontadas pela Zelotes. O grupo Gerdau terá um recurso seu julgado pelo conselho contra uma cobrança bilionária de Imposto de Renda Pessoa Jurídica e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido em reestruturações societárias de 2005 a 2010.
Em abril de 2012, a Gerdau venceu o julgamento na 1ª Turma da 1ª Câmara da 1ª Seção do Carf (processo 10689.724392/2010-28). O vice-presidente deste colegiado, José Ricardo da Silva, foi apontado como um dos principais responsáveis do esquema pela Justiça. Este processo seria julgado em abril do ano passado, mas o congelamento das sessões do Carf impediu a análise. Amanhã, os conselheiros votarão o caso. Mesmo sob suspeita. Mesmo com a possibilidade enorme de judicialização do tema. Deputados e senadores envolvidos nas investigações do conselho nada fizeram a respeito do assunto.
Duas CPIs no Congresso, uma concluída e outra em andamento, não avançaram um milímetro sobre como aperfeiçoar a relação contribuinte-Fisco e lançam suspeitas sobre todos os lados – exceto sobre o mérito do assunto.

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JOTA

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