Thiago Gomes Anastácio

Foi Evandro Lins e Silva quem disse ser o direito um servidor da vida e não o contrário. Para nós advogados de defesa celebrar a vida significa viver abundantemente, sem lisonjas ou concessões às razões do julgamento alheio, além de saber caminhar livremente em busca dos próprios sonhos e do próprio bem estar. Nossas lutas diárias não são fáceis: é preciso correção e altivez para caminhar a passos seguros e se proteger das vaidades, ostentações e sobremaneira, da ignorância alheia.
Por isso, parece-me que se rodear de quem é mais e melhor, buscando a sinergia dos acasos e do aprendizado pelo ouvir seja um caminho mais leve e sereno para nós, jovens e mortais.
Alfredo Tranjan escreveu em seu “A Beca Surrada” que poucos advogados seriam chamados a serem servidos à mesa por Ganimedes; ou seja, poucos estariam nos banquetes servidos no Olimpo da Defesa, consoante sua belíssima passagem sobre o destino dos deuses e os Olimpos (da acusação e defesa). Ele próprio está lá.
E por razões muitas, invariavelmente tristes, escrevi ao longo desses últimos anos sobre a vida e obra judicial de dois que por certo estão no grande banquete da defesa: Márcio Thomaz Bastos e Waldir Troncoso Peres.
E absolutamente chateado volto a esse cansaço graças ao novo integrante desse Olimpo, meu querido Arnaldo Malheiros Filho, que há um mês tomou o barco de Caronte para encontrar-se com os demais Deuses do nosso Olimpo.
Algumas histórias. Um dia, em que num dos Toddynhos, em nossa Igreja/Tabacaria/Sala do Beto Ranieri, Arnaldo me fitou e disse: “- Li seu artigo sobre as nomeações de ministros do Supremo e gostei demais”. Foi quando soltei, do alto de umas duas ou três a mais do que eu deveria: “Porra Arnaldo, porque você leria algo que eu escrevi?”. Ele sorriu aquele sorriso acanhado dos eruditos, bonachão que só.
Em outro Toddynho, me perguntou quando seria meu próximo Júri, ao que respondi que seria na terça-feira seguinte. Ficou feliz, sabedor que a tendência dos advogados formados no Júri é com o tempo se afastarem da instituição, então me dizendo que o diferencial da minha geração (dos entre 30 e 45 anos) era nosso retorno à escola da geração dele, por acaso, fato esse muito proporcionado pelo IDDD, do qual era presidente do Conselho e que tem como um de seus projetos mais reconhecidos a assistência jurídica gratuita no tribunal popular. Me perguntou sobre o caso e expliquei que os fatos tinham mais de 20 anos, o que fez o papo tangenciar para falarmos das expectativas que o processo criminal gera nas pessoas acusadas e o quão martirizante são esses anos a esperar por uma decisão.
De repente... Uma história maravilhosa sobre certo homem que perdia o sono por causa das batidas dos sapatos do vizinho de cima, até que foi reclamar com este para que não mais o fizesse. Se a memória não me falha, Arnaldo disse que se tratava de parte de alguma peça teatral. Importa é que advertido, o mesmo vizinho do andar de cima, dias depois, chegou em casa depois de um pileque e bateu o primeiro dos sapatos no chão e se lembrou da advertência. Não bateu o segundo sapato no chão.
Minutos depois, o vizinho reclamão bateu à sua porta e disse: “Pelo amor de Deus, ou você bate os dois sapatos ou não bate nenhum, por que a expectativa pela batida do segundo está me matando!”.
Foi com essa história que o Júri foi vencido. Chegando em casa, escrevi para o Arnaldo (troco o nome dos advogados por X e Y, por questões de discrição):
 
Arnaldo, tudo bem? 
 
Desculpe te encher o saco, mas preciso te agradecer. 
 
Esses dias conversávamos sobre um Júri e a Lava Jato e você, ao falar da expectativa terrível dos clientes da X e Z, lembrou (e me ensinou) a história daquele cidadão que tirava e batia os sapatos no chão, incomodando o vizinho do andar de baixo. 
 
Bom. Ontem participei de um julgamento muito difícil pelo IDDD. 
 
O caso: dois PMs acusados de, depois de trocarem tiros com um assaltante, terem o colocado no porta malas e o matado. 
 
O ano? 1991. 
 
Ambos foram absolvidos (4x3) no quesito "ABSOLVO". 
 
Argumentei longamente que o direito penal não deveria mais incidir sobre aqueles dois homens, que o lapso de 23 anos entre o fato e a julgamento impediam que aqueles homens de 91 estivessem no banco dos réus etc. 
 
Bom, me utilizei daqueles argumentos que você conhece muito melhor do que eu. 
 
E em perolação, narrei - contando minha fonte, é claro - a história do "batedor de sapatos" para indicar aos jurados a punição de 23 anos de incertezas e expectativas. 
 
Curiosamente, 4 jurados, dissolvido o Conselho, vieram dizer que adoraram a história. 
 
Por isso, te agradeço. 
 
Um abraço afetuoso, 
 
do Thiago 
 
             
Arnaldo ao longo da vida se estabeleceu por algumas características que vocês leitores identificarão pelas palavras de apenas alguns dos seus muitos amigos: memória prodigiosa, cultura jurídica plena em todas as áreas, espírito defensivo e discrição... Sobremaneira, discrição. Não procurava a imprensa na busca vaidosa por holofotes – e a partir deles, querer mais clientes -, mas procurado não se acovardava, colocando-se à frente do cliente e assim encarnando o papel que Robert Shapiro (grande advogado de litígios da costa oeste americana) ensinou ser essencial: o advogado deve descaracterizar o cliente, a partir dali sendo a DEFESA a substituir a figura do réu.
Nada mais acertado já que o direito penal evoluiu, deixando de ser o direito penal do autor, para o direito penal do fato.
O novo integrante do banquete dos deuses foi o primeiro grande advogado do (equivocadamente) chamado direito penal econômico, tendo tido como clientes grandes banqueiros, empresários e jogadores da bolsa nas primeiras grandes causas afeitas à essas novas modalidades de crime. Exemplo disso é ter sido um dos mentores do curso de pós-graduação em direito penal econômico da Fundação Getúlio Vargas. Defendeu Quércia, Maluf, Fernando Henrique, Delúbio Soares e muitos outros nomes de ressonância.
Bom, já falei demais.
Pedi para alguns amigos, de todas as áreas e que viviam com Arnaldo em suas mais diversas circunstâncias, algumas palavras. Eles têm mais e melhor a dizer do que eu:
 
Rodrigo Lombardi, ator 
 
“Um amigo acabou de viajar. 
 
Pra longe. 
 
Uma distância longa, mas nosso reencontro será inevitável! 
 
Perdemos, por um momento, nosso grande contador de “causos”... 
 
Vai amigo, em breve estaremos juntos! 
 
Guarde aí, com sua memória invejável, os “causos” que faltaram, pois juntos, teremos a eternidade para ouvi-los. 
 
Paz” 
 
 
Ruy Brisolla Filho, empresário e produtor de cinema 
 
“A profissão do advogado criminalista, para algumas pessoas, é muito difícil de ser aceita. Mas tive a honra de conhecer seu outro e verdadeiro lado, o humano. Tenho orgulho disso. Obrigado por tudo Dr. Malheiros”. 
 
 
Daniella Megiollaro, advogada, sócia de Arnaldo Malheiros Filho 

“Tive o privilégio de conviver intensa e diariamente por 18 anos com o Arnaldo, um gênio da advocacia criminal, uma mente brilhante, mas especialmente um homem que tinha um coração maior do que ele mesmo (e olhem que ele era grande!), uma pessoa que, de tão superlativa, definitivamente, não era desse planeta! Ele costumava me dizer: “Dani, você é meu freio e meu esteio”. Bobagem! Eu era apenas uma amiga, uma admiradora incondicional, uma fiel discípula daquele que foi a maior e melhor referência profissional da minha vida. Tenho dito por aí que devo a ele não só tudo o que sei, mas tudo o que sou. E ainda repetindo o discurso da tão dolorosa despedida: Arnaldo, que sorte ter tido você ao meu lado. E que difícil será seguir a minha vida sem você. Te amo, pois você é eterno, é infinito”. 
 
 
Augusto de Arruda Botelho, advogado, presidente da diretoria do IDDD 

“Perdi num espaço muito curto de tempo duas referências, dois mestres. Na verdade, quem perdeu foi o Direito de Defesa. Márcio Thomaz Bastos e Arnaldo Malheiros Filho, foram os dois mais ferrenhos defensores daquilo que considero um pilar em qualquer democracia: o direito de amplamente se defender. E Arnaldo além de tudo fazia tal defesa de uma forma única: fazia contando histórias. 
 
Vou sentir sua falta meu amigo, mas suas histórias ficarão para sempre comigo”. 
 
 
Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, advogado, ex-Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil – São Paulo e ex-Secretário de Segurança Pública do Estado de São Paulo
“Se é o papel do advogado atrapalhar a administração da Justiça, como se pensa atualmente, Arnaldo Malheiros Filho foi um emérito atrapalhador, pois desempenhou a sua missão com rara coragem e competência, constituindo no exercício da sua advocacia uma barreira intransponível ao arbítrio, à prepotência e à arrogância. Arnaldo fará insuperável falta”.
&nbsp;
Impossível dizer melhor. Arnaldo se foi e ficou. Esse o paradoxo dos advogados que perpetuam-se para além do seu tempo, dedicando suas vidas aos outros e fazendo-os mais e melhores. Um daqueles seres humanos e intelectuais distintos em seus tempos, que entenderam suas razões de existirem e o mundo ao seu redor.
Não tenho dúvida da alegria dos outros convidados do banquete ao verem Arnaldo na porta chegando com seu charuto entre os dedos.
Arnaldo, um grande beijo.

8958941405_8cb1a5acf9_k

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

Arnaldo, um sábio que contava histórias

Uma homenagem a Arnaldo Malheiros Filho