Lava Jato

O crime de retaliação

Soa estranho querer criminalizar condutas de juízes, identificadas como faltas funcionais

Geraldo Magela/Agência Senado Mesa (E/D): juiz federal Sérgio Moro ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes; presidente do Senado Federal, senador Renan Calheiros (PMDB-AL); juiz federal Sérgio Moro; senador Roberto Requião (PMDB-PR) Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

A criminalização de uma conduta não pode passar apenas pelo crivo do desejo. É necessário muito mais que isso. Não se pode criminalizar aquilo que se quer, mas sim aquilo que se deve. E o que se deve criminalizar é aquilo que encontra uma repulsa social de tal ordem e que exige uma reprimenda tão diferenciada, não disponível em outros instrumentos de controle e sanção social, que a solução última e mais adequada é mesmo a definição de uma fato como crime.

Em uma percepção bem popular, é crime e deve ser criminalizado aquilo que se encontra no âmbito do proibido e intolerável. É da ciência penal que a definição de uma conduta como criminosa é a última opção da qual deve valer-se a sociedade, por seus legisladores, seja para se evitar os excessos nos sentimentos de reprovação, seja para se evitar a banalização e menosprezo a essa compreensão humana tão complexa e seletiva que é a tipificação de um fato em crime.

Neste contexto da ciência penal, soa estranho se querer criminalizar condutas de juízes, por ação ou omissão, de natureza jurídica eminentemente identificada como falta funcional, e para as quais o sistema jurídico vigente já dispõe de resposta adequada e suficiente à reação que se faz necessária.

Da noite para o dia, a Câmara dos Deputados aprovou Emendas ao Projeto de Lei 4850/16, e que passam a prever como crime nada menos que 10 condutas funcionais praticadas por juízes, condutas essas que se encontram atualmente previstas, sem aquela natureza criminal, na Constituição Federal, na Lei Orgânica da Magistratura-Loman (LC 35/79) e no Estatuto da Advocacia (Lei 8906/94). E o que mudou ultimamente a justificar a criminalização pretendida? Mudou o comportamento dos juízes ou mudaram os efeitos da atuação dos juízes?

Juízes não merecem qualquer tratamento diferenciado com relação a condutas que são tidas como criminosas por qualquer cidadão. E realmente não têm esse tratamento, embora muita gente, e até mesmo operadores do Direito, às vezes por pura má-fé, apregoem isso. Quem assim o diz, mente e, pior que mentir, comete mal maior que é o de enganar e confundir as pessoas pois é no juiz que a sociedade, em qualquer parte do mundo, e em todos os tempos, sempre delegou poderes, confiou e depositou esperanças para dirimir conflitos. É na atuação do juiz, goste-se ou não, que se tem a última voz de segurança à paz no convívio social.

Com as proposições aprovadas pela Câmara dos Deputados e que agora se encontram pendentes de votação pelo Senado,  nada mais se fez, ou se pretendeu fazer, do que transmutar em crime aquilo que já era previsto como falta funcional, e punida nos exatos limites e proporções dos desvios daquela mesma natureza funcional-disciplinar, e não criminal.

Aliás, a rapidez no intento em se criminalizar tais condutas e o atropelo das discussões, revelou pouco cuidado técnico-legislativo, como se vê do inciso VIII, da Emenda ao PL, e que, dispondo sobre o crime praticado pelo magistrado por "receber, a qualquer título ou pretexto, custas ou participação em processo", restou por ignorar tipificações muito mais contundentes e severas nas quais aquela conduta pode se enquadrar ou ser absorvida, como no caso dos crimes de Peculato, Concussão, Prevaricação, Corrupção e outros de semelhante natureza, previstos no atual Código Penal.

Situações tidas como faltas funcionais são comuns em qualquer manual de definição dos deveres profissionais e estão atreladas, no mais das vezes, à inoperância funcional ou aos padrões éticos exigidos para o exercício profissional. Para os juízes, estes deveres funcionais e padrões éticos, autênticas regras de comportamento profissional, estão previstos explicitamente na Constituição Federal, na Loman, no Código de Ética da Magistratura Nacional (CNJ/2008) e até mesmo no Estatuto dos Advogados. Para outros profissionais estão, dentre outros, na CLT, nos Estatutos dos servidores públicos, no Estatuto da OAB, no Código de Ética do jornalismo e como está também no Código de Ética e Decoro Parlamentar tanto para os Deputados Federais (Resolução 25/2001) como para os Senadores (Resolução 20/93).

Assim, sendo mesmo o intento do legislador em criminalizar desvios de conduta profissional, essa criminalização tem que ter um alcance mais elastecido, sob pena de não se poder retirar outra conclusão das proposições contidas no PL 4850/16 a não ser o deliberado intento de se retaliar a magistratura, pela evidenciada razão de que esta, em tempos atuais, vem incomodando bastante muita gente que, até então, se sentia impermeável ao alcance e rigores da lei.

É bom lembrar que nos artigos 27 a 34, da Lei 8906/94 (EOAB), e no Código de Processo Civil/15, em seus artigos 77, 80 e 84, há um rol de situações e comportamentos exigidos também dos advogados, exatamente no mesmo plano dos deveres e da ética profissional que ora se busca criminalizar com relação aos juízes.

No Código de Ética e Decoro da Câmara dos Deputados, instituído pela Resolução 25/2001, artigos 3º a 5º, para os Deputados Federais, há, de igual modo, regras de conduta funcional muito bem explicitadas. Assim também se verifica, para os Senadores, nos artigos 2º a 5º, do Código de Ética e Decoro Parlamentar, estatuído pela Resolução 20/93, atualizada pela Resolução 25/98.

Em todas as disposições ora mencionadas, e que têm por gênese a preservação dos estritos e devidos limites da finalidade do serviço, da atuação  e responsabilidade profissional, da boa imagem institucional e do sentimento da confiança social, as condutas desviantes àqueles compromissos funcionais não trazem outra conseqüência a não ser as sanções disciplinares. Estão, portanto, muito distantes daquilo que se poderia ter como um tal nível de reprovação e repulsa social, e que se devesse criminalizar, embora possam ser profundamente graves e lesivas para o alcance da finalidade ao qual o exercício profissional se propõe.

Todavia, quando se objetiva atrair para a esfera criminal os desvios de condutas funcionais de certos profissionais, como ora se vê com relação aos juízes, que se tragam então, para o mesmo cenário, todas as profissões, principalmente aquelas de natureza pública ou que contribuem intrinsecamente para a atividade pública, como no caso da advocacia.

Os juízes não temem as hipóteses criminais. Não têm receio algum, de uma vírgula sequer, de qualquer norma criminal deste país. Quaisquer que sejam! Em sua esmagadora maioria são profissionais sérios, dedicados, corretos, probos, honestos, íntegros. Mas o que não se pode admitir ou contemporizar é o intento em se criminalizar fatos atrelados a situações de frágil, indefinida e imprecisa valoração, próprias dos regimes de exceção, pois apenas centram-se em conceitos abertos como “motivação partidária”, “desídia”, “honra”, “dignidade e decoro do cargo”, “juízo depreciativo”, e que são de avaliação sensível apenas às emoções e dominações. Aí então é necessário se deixar o campo da indiferença e se posicionar com altivez, até  mesmo por uma questão de sobrevivência da magistratura e de quem nela confia e espera.

Os juízes respondem sim por seus erros, excessos e desvios funcionais. E respondem, inclusive, perante órgãos disciplinares formados não só por juízes, mas por órgãos que são integrados também por advogados e representantes do Congresso Nacional. É um modelo multifuncional de controle que, por sua vez, não se replica nos órgãos disciplinares que tratam dos desvios de condutas funcionais dos parlamentares, na Câmara ou no Senado, e dos advogados, na OAB, já que estes são formados apenas e tão somente por seus próprios pares, ali não estando presente, e nem se cogitando permitir, a presença de um membro estranho à própria corporação, como um juiz, por exemplo. Só por isso já é fácil perceber que as mazelas no trato e enfrentamento disciplinar seguramente não estão na magistratura.

Falar mal de juiz dá palanque. Porém, a prática de casuísmos desborda do relevante papel institucional conferido aos parlamentares.

Chega a causar certa surpresa e desalento ver uma instituição como a OAB capitaneando e aplaudindo esses "progressos" criminalizadores e que, na essência, comprometem a liberdade e independência do ofício jurisdicional, quase que em um ambiente de intimidações e constrangimentos.

O Brasil anda perdendo muitas coisas ultimamente. E, dentre elas, anda perdendo também a própria noção das coisas. Mais do que a profunda reflexão contida e ovacionada em versos do rock nacional a indagar "que país é esse?", e já que cada vez mais, infelizmente, bem sabemos que país é esse, o que cabe indagar atualmente é “onde realmente esse país quer chegar”.

Na construção de uma sociedade justa, honesta e solidária, os caminhos atualmente escolhidos pelo Parlamento brasileiro, com a capitulação dos denominados crimes de abuso de autoridade praticados pelos juízes, e com o lamentável apoio de instituição tão prestigiada como a OAB, efetivamente não traduzem um caminho ou uma opção do bem ou para o bem coletivo. Traduzem isso sim um ato de mera retaliação, talvez até mesmo de revanchismo e manifesta agressão contra aqueles que de fato têm compromisso com um sistema jurídico que seja igual para todos. Traduzem, isso sim, um atentado não aos juízes, mas à sociedade.

Sempre é bom e importante retornar à superfície do bom senso e do razoável. Mas talvez, quem sabe, enquanto perdurarem essas indesejáveis inquietações e no calor das emoções e reações, quem sabe não seja a hora de se criar, também, o crime de retaliação.logo-jota

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