Carlos Nitão

A lei de improbidade administrativa sofreu diversas modificações no seu regime jurídico por meio da publicação da <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/l14230.htm">Lei  n. 14.230/2021</a>. A despeito dos debates jurídicos acerca de eventual flexibilização das normas para responsabilização pela prática de ato ímprobo, destacamos a regra do §8º, artigo 1º<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que trata sobre o que Rui Barbosa denominou de crime de hermenêutica.
Nesse contexto, o ilustre jurista alertava sobre a possibilidade de existência de um “conflito intelectual de duas hermenêuticas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>”. A divergência na interpretação da norma é salutar para o debate jurídico e para a construção de soluções que sejam razoáveis, haja vista a sua moldura normativa, conforme ensina Kelsen.
Não é difícil constar que as normas de gestão pública são, como regra, caracterizadas pela indeterminação e fluidez de seu conteúdo. São normas jurídicas de conteúdo aberto. Portanto, seu texto admite a possibilidade de mais de uma interpretação igualmente legítimas e razoáveis. Nesse caso, cabe ao gestor público identificar aquela que melhor realiza o interesse da Administração Pública.
É nesse cenário que se revela importante a afirmação de Rui Barbosa quanto à impossibilidade de configuração de “crime de hermenêutica”. Assim, a regra do artigo 1º, §8º da lei de improbidade administrativa reformada veio em boa hora, sobretudo para proteção do gestor honesto e preocupado com a regular execução dos recursos públicos.
Não obstante isso, o Ministro Alexandre de Morais deferiu medida liminar na ADI 7236 suspendendo a eficácia do referido dispositivo, destacando que “o critério estabelecido no art. 1º, § 8º, da LIA, é excessivamente amplo e resulta em insegurança jurídica apta a esvaziar a efetividade da ação de improbidade administrativa”. Com todo respeito ao <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stf">Supremo Tribunal Federal</a>, associo-me ao poeta baiano Caetano Veloso<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> que cantava “e onde vês, eu não vislumbro razão”.
A compreensão da referida regra objetiva exatamente afastar a insegurança na interpretação e aplicação da lei. Para tanto, é importante não esquecer as alterações da LINDB promovidas pela Lei n. 13.655/2018.
A racionalidade da Lei n. 13.655/2018, prevista nos artigos 20 a 22, pode ser observada a partir de três pilares estruturantes, primeiro, não se admite decisões pautadas tão somente em valores abstratos; segundo, a decisão tem o dever de observar o contexto fático na sua motivação; terceiro, é preciso apontar as consequências práticas da decisão. Tais elementos precisam ser observados na esfera administrativa, judicial e controladora.
Desse modo, é preciso compreender que a LINDB pretende instituir um modelo a ser observado quando da tomada de decisão, objetivando evitar que essas sejam elaboradas tão somente a partir de valores abstratos, como princípios e normas de conteúdo indeterminado.
Segundo as lições de Sérgio Ferraz<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> na “solução de qualquer litígio, indagação ou debate, no mundo do Direito, a solução é ditada não pela norma, mas por sua interpretação”, concluindo que “em suma, não se aplica o Direito em discussão, mas sua interpretação por quem o faz incidir no caso concreto”.
Disso resulta, pois, uma ponderação essencial à compreensão e controle (em sentido amplo)<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> da decisão administrativa, isto é, o contexto fático (calor, temperatura e pressão) não pode ser desprezado como elemento integrante do processo decisório, uma vez que as reais condições enfrentadas e vivenciadas pelo agente administrativo impactam diretamente sobre o seu juízo decisório (assinar um acordo de pesquisa e inovação ou assinar um contrato com uma startup?), sobretudo nas situações de interpretação de conceitos jurídicos indeterminados que, por natureza, são incertos e admitem a soluções possíveis para o caso concreto.
É nesse cenário que se afigura relevante a previsão do §8º, artigo 1º da lei de improbidade administrativa reformada. Isto porque a divergência interpretativa não é apenas possível, ela é real, dada a abertura do texto normativo e da percepção individual do intérprete ao realizar seu juízo valorativo.
Dito de outro modo, a autoridade administrativa, a autoridade judicial e a autoridade controladora realizam a atividade interpretativa a partir de seu ponto de vista, sendo que cada um deles se situa em um dos vértices de um triângulo escaleno, isto é, cada um possui a sua medida e esta não é igual entre eles.
É natural que seja assim. Como cantava Geraldo Azevedo<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, “é bom, porém tem um porém”. É preciso considerar que, segundo o IBDA<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>, “a competência para dizer qual é a melhor decisão administrativa é do gestor, não do controlador”. Logo, há um dever de deferência à escolha e à interpretação realizada pelo agente público.
Não obstante isso, essa deferência à decisão administrativa cede quando essa manifestação é desprovida de plausibilidade e razoabilidade, ou seja, não cabível na sua moldura normativa, tal como proposto por Kelsen.
Não se admite o que poderíamos chamar de “juízo de preferibilidade”, isto é, que a decisão administrativa seja afastada, pela autoridade judicial ou controladora, em virtude de suas preferências pessoais ou esforço retórico a partir de valores abstratos e principiológicos sem observância do contexto fático que orientou a interpretação e a escolha do agente público.
Talvez por isso, com essa medida liminar na ADI 7236, suspendendo a eficácia do §8º, artigo 1º da lei de improbidade administrativa reformada, o agente público honesto esteja cantarolando, assim como já o fazia o cantor e compositor carioca, Chico Buarque<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, que “tem dias que a gente se sente, como quem partiu ou morreu, a gente estancou de repente, ou foi o mundo então que cresceu”.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Art. 1º (...) § 8º Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> BARBOSA. Rui. Obras completas: posse de direitos pessoais, o júri e a independência da magistratura. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. 1934. p. 240 e 243.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> O Quereres, de Caetano Veloso, é a sétima faixa do disco Velô, de 1984.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> FERRAZ. Sérgio. Tratado de Direito Administrativo Brasileiro: parte geral. Belo Horizonte: Fórum. 2022. p. 302.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Controle interno, controle externo, controle judicial.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Sexo XX, Geraldo Azevedo, 1993.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Enunciado n. 13 do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Roda Viva, Chico Buarque, 1968.

STF-19-08-2015-1

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JOTA

Lei de improbidade sofre alterações por meio da publicação de lei que trata também do crime de hermenêutica

O crime de hermenêutica e a improbidade administrativa

Lei de improbidade sofre alterações por meio da publicação de lei que trata também do crime de hermenêutica