José Eduardo Cardozo

Eduardo Lasmar Prado Lopes

Hugo Nakashoji

Instabilidades e crises econômicas têm sido cada vez mais frequentes no cenário global. A elevação das taxas de juros na tentativa de frear o crescimento da inflação, as consequências da alta na cotação do dólar, processo de desindustrialização em diversos países, substituição do capital produtivo pelo especulativo e a pandemia da Covid-19 são alguns dos sinais de um cenário de pouco promissor no Brasil e no mundo.
Não se pode negar a relação de causalidade entre os momentos de desequilíbrio econômico-financeiro e a dinâmica dos agentes de mercado, sobretudo, das empresas. Exemplo disso é taxa de endividamento das companhias brasileiras com capital aberto, que somou cerca de R$ 1,26 trilhão no ano de 2021, o maior nível que, até então, se tem conhecimento.[1]
Foi justamente com o intuito de trazer soluções para oportunizar eventual processo de reestruturação das dívidas e evitar a indesejável decretação de falência que o legislador instituiu o mecanismo da recuperação judicial cujo propósito, expressamente previsto no art. 47 da Lei n. 11.101/2005, é “viabilizar a superação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da doente produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores”. 
Como não poderia deixar de ser, algumas importantes lições podem ser extraídas da norma. A primeira delas é que se deve buscar a salvação da empresa, contanto que seja economicamente viável. A medida extrema da falência só deve ser decretada quando for inviável preservar a atividade[2]. Tem-se, com isso, que o princípio da preservação da empresa é o vetor normativo que deve nortear a recuperação judicial. 
A segunda delas é que a superação da crise econômico-financeira deve, ainda, ser calcada no princípio da função social da empresa, de modo a sempre buscar a preservação da fonte pagadora de tributos e a manutenção – e o aumento, por que não? – das relações de emprego. 
É dizer, o processo de recuperação judicial não deve ser desenvolvido sob o interesse exclusivo do titular da atividade empresarial, tampouco de um ou outro credor. Deve-se ter em mente que o fundamental é que a superação da crise ocorra mediante a conciliação de esforços e de sacrifícios de todos os agentes envolvidos.
De se ver que a recuperação judicial não deve ser deferida a todo e qualquer devedor que se encontre em situação de crise. Da mesma forma, não deve ser obstada por interesses individualistas dos credores. Acontece que, muito embora seja essa a ideia que deva fundamentar o processo de superação da crise, a prática nos tem mostrado algo diferente. É que, não raro, toma-se conhecimento de credores que se insurgem contra o plano de recuperação judicial considerando exclusivamente seus interesses particulares em detrimento da manutenção da ordem social e econômica e da função social da propriedade, todos previstos na Constituição (arts. 5º, XXIII, e 170).
A situação se agrava nos casos em que o voto contrário é apresentado pelo credor e, em razão de sua insurgência, o plano de recuperação judicial é reprovado em assembleia fazendo com que o devedor que, muito embora apresentasse condições de soerguimento, vá à falência. Trata-se, a nosso ver, de verdadeiro poder abusivo de veto de um único credor, que impede o prosseguimento da atividade empresária, de forma contrária ao interesse social subjacente à manutenção da empresa.
Para coibir situações como essas, o legislador previu, no art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005, a flexibilização do quórum de aprovação do plano, instituto este que a doutrina falimentar e a jurisprudência intitulam de Cram Down (“empurrar goela abaixo”, uma possível tradução livre). 
Nesses casos, o juízo supera o veto assemblear e, ao exercer o controle de legalidade, concede a recuperação judicial desde que o plano apresentado pelo credor tenha obtido, de forma cumulativa, (I) o voto favorável de credores que representem mais da metade do valor de todos os créditos presentes à assembleia, independentemente de classes; (II) a aprovação de três das classes de credores ou, caso haja somente três classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos duas das classes ou, caso haja somente duas classes com credores votantes, a aprovação de pelo menos uma delas; e (III) na classe que o houver rejeitado, o voto favorável de mais de um terço dos credores. 
A despeito disso, há situações em que a flexibilização do quórum ainda não é medida suficiente para superar veto assemblear. É o que ocorre, por exemplo, quando os credores majoritários – detentores de mais de 50% dos créditos de uma classe – conseguem impor sua decisão no sentido de rejeitar o plano, impedindo que o devedor atinja o requisito previsto no <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/lei/l11101.htm">art. 58, § 1º, inciso I, da Lei nº 11.101/2005.</a>
Em situações como essa, há que se questionar: o Poder Judiciário poderia mitigar os requisitos previstos nos incisos do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005 levando em consideração os princípios norteadores da recuperação judicial, assim como as chances de soerguimento da empresa? A jurisprudência da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/stj">STJ</a>) entende que sim.
Em um dos casos apreciados pelo órgão julgador (AgInt no AREsp nº 1.551.410/SP, de relatoria do Min. Antônio Carlos Ferreira), a empresa devedora apresentou seu plano de recuperação judicial que fora aprovado por 20 (vinte) dos 21 (vinte e um) credores presentes na assembleia. O voto contrário foi apresentado pelo credor que detinha, sozinho, 56,8% dos créditos da classe de credores quirografários. 
O juízo de primeira instância, ao verificar a ocorrência de abuso no exercício do direito de voto, superou o veto do credor insurgente e homologou o plano. Entretanto, tal entendimento veio a ser alterado pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tjsp">TJSP</a>). A controvérsia foi, então, submetida à apreciação do STJ que, reconhecendo o abuso do direito de voto do credor, decidiu mitigar os requisitos legais a fim de que o plano de recuperação judicial fosse homologado. 
À vista disso, importante destacar alguns dos fundamentos que levaram o STJ a mitigar os requisitos do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005.
O primeiro é que o administrador judicial, a quem o legislador incumbiu do dever de fiscalizar o cumprimento do plano, já havia se manifestado nos autos no sentido de que as obrigações assumidas pela devedora estavam sendo regularmente cumpridas. 
O segundo fundamento diz respeito ao fato de que a sociedade devedora apresentava plenas condições de superar o momento de crise econômico-financeira, motivo pelo qual, não por acaso, o administrador judicial e o Ministério Público opinaram, durante a tramitação do recurso especial, pelo encerramento do processo de recuperação judicial. 
O terceiro deles é que, visando a evitar eventual abuso do direito de voto da minoria, sobretudo no momento de superação de crise, é necessário que se confira certa sensibilidade à verificação dos requisitos do Cram Down, "preferindo um exame pautado pelo princípio da preservação da empresa, optando, muitas vezes, pela sua flexibilização”.[3]
Aliás, foi justamente sob esse último fundamento que a jurisprudência do STJ reconheceu a excepcional concessão do mecanismo naqueles casos. A despeito de não ter sido observado o estrito cumprimento dos requisitos legais, a circunstância do caso concreto denota o injustificável e abusivo comportamento de um único credor, ainda mais quando se trata de um “super credor”.[4]
Ao nosso ver, o STJ tem andado bem ao reconhecer a possibilidade de flexibilização dos requisitos legais do art. 58, § 1º, da Lei nº 11.101/2005. Trata-se de decisão fundamental não apenas para empresa devedora, que teve seu processo de recuperação judicial encerrado em virtude do entendimento firmado pelo STJ, mas também para o microssistema do direito falimentar que é fortalecido com instrumentos para coibir os posicionamentos individualistas e abusivos que tentam se sobrepor à preservação e à função social da empresa.
 Não é demais repisar que a Constituição prevê, no art. 170, junto com a defesa da livre iniciativa e da livre concorrência, a proteção do consumidor e da função social da propriedade, a redução das desigualdades sociais e regionais, a busca pelo pleno emprego e o favorecimento das empresas de pequeno porte. Na verdade, há uma prevalência da concretização da justiça social e de diversos compromissos emancipatórios que a livre iniciativa e a livre concorrência devem observar. Como bem definiram Gustavo Tepedino e Anderson Schreiber, “não há, no texto constitucional brasileiro, garantia à propriedade, mas tão-somente garantia à propriedade que cumpre a sua função social”[5]. O cram down vem concretizar a dimensão dirigente e compromissória da Constituição. 
O soerguimento da empresa em recuperação judicial implica a continuidade de empregos e a geração de novos e o aumento na arrecadação tributária e previdenciária. Pode, até mesmo, representar um forte mecanismo de combate à concentração de mercado (e.g. impedir que uma grande empresa de um setor utilize as dívidas de uma menor concorrente para asfixiá-la financeiramente) e revela um instrumento forte e eficaz para a proteção das micro e pequenas empresas. Nesse cenário, é razoável que a pretensão individualista dos credores majoritários seja obstada.  
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[1] Disponível em &lt;https://www.infomoney.com.br/mercados/divida-de-empresas-brasileiras-com-capital-aberto-soma-r-126-trilhao-em-2021-maior-nivel-da-serie-historica/&gt;; Acesso em 27 de jun. 2022.
[2] SALOMÃO, Luis Felipe; SANTOS, Paulo Penalva. Recuperação judicial, extrajudicial falência: teoria e prática. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 25.
[3] Excerto do voto do Ministro Luis Felipe Salomão em STJ, Agravo Interno no Agravo Recurso Especial nº 1.551.410/SP, Quarta Turma, Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira, DJe em 24/05/2022.
[4] Excerto do voto do Relator Ministro Antônio Carlos Ferreira. Ibidem.
[5] TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A garantia da propriedade no direito brasileiro. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Ano VI, nº 6, junho de 2005, p. 105.
* Os autores atuaram no caso mencionado neste artigo

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JOTA

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