Cristhovão Fonseca Gonçalves

No dia 20 de fevereiro deste ano, foi fechada a Casa de Redução de Danos para o Carnaval de Olinda (PE), montada pela Escola Livre de Redução de Danos (ELRD), uma organização da sociedade civil. Uma de suas coordenadoras, a ativista Ingrid Farias, foi conduzida à Delegacia dos Crimes Cibernéticos no centro do Recife para prestar esclarecimentos.
Segundo as organizadoras do local, a ação da Secretaria de Defesa Social, executada pela Polícia Civil, foi motivada por uma denúncia anônima online acerca da “apologia do uso de drogas”. Montado no último Carnaval de Olinda, o espaço se propunha a ser um ponto de apoio aos foliões com oferecimento de água e distribuição de kits de redução de danos (preservativos, protetor solar e sedas, por exemplo).
A vanguardista atividade, além de materiais informativos sobre os riscos e efeitos no uso de álcool e outras substâncias – inclusive, de forma combinada – ofertava estratégias preventivas de redução de danos no Carnaval. Banheiros e espaços de descanso poderiam ser acessados pela população maior de idade presente na festividade, sem cobrança de qualquer valor.
O presente texto esclarece alguns pontos relativos à redução de danos, como paradigma alternativo ao proibicionismo, bem como traz considerações sobre o crime conhecido como “apologia do uso de drogas” desde a revogada Lei 6.368/1976 (Lei Antitóxicos).
O termo “proibicionismo” refere-se à diferenciação seletiva de legalidade versus ilegalidade de algumas drogas, independentemente de potencialidade lesiva e outros critérios científicos. Para as ditas drogas ilícitas, o braço penal é chamado a intervir por meio das agências de persecução penal, notadamente a polícia. Esse eixo de atuação de controle estatal tem sido hegemônico na política de drogas do Brasil, de maneira a inviabilizar outros paradigmas de cuidado, como é o caso das Políticas Públicas de Saúde e Redução de Danos e de Riscos (PRDs) em relação ao uso de diversas substâncias.
Opondo-se ao hospital psiquiátrico, contemporaneamente lembrados em asilos de internação de pessoas em situação de dependência de drogas – as chamadas comunidades terapêuticas –, e fazendo oposição à prisão, a redução de danos aposta no empoderamento do sujeito, cuja interação com as substâncias em uso é significativamente alterada a partir da autogestão de seu corpo durante o próprio uso. Existe uma firula segundo a qual a discussão da prática da “redução de danos” pelo usuário de drogas seria uma política de saúde pública ou um movimento social. Divergências à parte, reconheço algo novo nas propostas realizadas pela redução de danos. Um ponto de partida é o fato de que elas apontam para outro modo de o Estado entrar em contato com a população em situação de abuso de drogas. Esse contingente humano, ao longo de toda a história brasileira, foi fundamentalmente visto como um problema legal ou policial (MISSE; VARGAS, 2010, apud RUI, 2014, p. 78).
Ao leitor menos familiarizado com a proposta da prática de redução de danos, explico que o profissional que a conduz pode ter formação ampla. Ou seja, os apontamentos da redução de danos e riscos pretendem diminuir usos mais nocivos aos usuários, apostando na capacidade individual desses sujeitos gerirem seus corpos e, consequentemente, o próprio consumo de drogas. Através da distribuição de insumos como seringas, cachimbos e preservativos ou substituição de drogas (o crack pela maconha, à via de exemplo) esforços são focados na saúde e cuidado do usuário, sem necessariamente exigir a abstinência abrupta de determinada droga (RUI, Op, cit., p.103).
É preciso pontuar que a política de redução de danos se impôs como uma necessidade, a despeito do preconceito e gritaria do “vai incentivar uso de drogas”. Nos anos 1990, com o boom do vírus HIV no Brasil, os riscos de contaminação a partir do uso de drogas injetáveis eram representativos, especialmente com o uso da cocaína. Na época, o então governador de São Paulo, Mario Covas, promulgou lei que autorizava a Secretaria de Saúde a promover programas de distribuição de seringas a fim de prevenir a epidemia de HIV/Aids (RUI, Op, cit., p. 74).
<blockquote class="jota-article__citation">A observação empírica pode comprovar que a polícia brasileira desconhece as PRDs, como constatei em pesquisa de mestrado:</blockquote>
<blockquote class="jota-article__citation">“O autuado J. foi apreendido com 30 pedras de crack e um “dolão” de maconha. J. declarou estado de dependência de drogas e que sua mãe já pagou várias dívidas em drogas e que já foi internado em uma comunidade terapêutica e ainda hoje é acompanhado por clínica conhecida como Saravida. Junto da apreensão encontra-se uma balança de precisão. O autuado afirmou que a maconha estava sendo utilizada para “largar o crack”. A despeito de certo estranhamento dessa afirmação por parte dos policiais presentes durante a ouvida de J., essa é uma estratégia de redução de danos adotada como forma de substituição de drogas mais pesadas por outras mais leves” (<a href="http://lattes.cnpq.br/6248204744575873">GONÇALVES,</a> 2017, p. 102).</blockquote>
A proibição que se firma na falsa ideia de que a tutela penal em relação às drogas é medida necessária para a proteção da saúde coletiva mostra outra incongruente face do proibicionismo. Até mesmo no âmbito da dogmática penal e da legalidade, tentar justificar a intervenção penal no controle das drogas para proteger a saúde torna-se um arranjo argumentativo pífio.
O saber dos juristas, por vezes descontextualizado da realidade, alardeia a incriminação das drogas em função da expansibilidade do perigo abstrato à saúde pública e, como uma medida necessária para defender a sociedade, suposta vítima dos crimes dessa natureza.
Ora, quando não traz um risco concreto, direto e imediato para terceiros – a exemplo da posse para uso pessoal ou, ainda, quando o responsável pela conduta de vendê-las age de acordo com a vontade do titular do bem jurídico, “pessoa com capacidade de se autodeterminar” – a proteção da saúde mostra-se sem sentido, ineficaz. O dano a si mesmo não pode ser objeto de incriminação, segundo os preceitos da dogmática penal. A autolesão situa-se na esfera de privacidade do indivíduo, não sendo alvo da ação do Estado, sobretudo com seu braço penal.
Somando esforços e pronunciando-me sobre o fatídico acontecimento ocorrido no Carnaval de Olinda com o fechamento da Escola Livre de Redução de Danos e a condução de uma de suas coordenadoras à Delegacia de Polícia dos Crimes Cibernéticos, devo dizer que esse é mais um evento que marca o autoritarismo semeado pela condução míope da política de drogas no Brasil.
Como pesquisador e advogado, dedicado à investigação e práxis da <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lei-de-drogas">Lei de Drogas</a>, creio que o crime de induzimento, instigação e auxílio ao uso de drogas (art. 33) §2° da <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm">Lei 11.343/2006</a>, cuja pena é de 1 a 3 anos e multa de 100 a 300 dias-multa, precisa mais uma vez passar pelo crivo da melhor interpretação constitucional.
Induzir = incutir na mente alheia a ideia do uso; instigar = reforço ao propósito do uso; e auxiliar = concorrer materialmente para a prática do uso. Uma dogmática penal desconstitucionalizada, arraigada a uma lei ambígua e de tipicidade aberta, como é o caso da Lei de Drogas, poderia autorizar a incriminação de redutores/as de danos se relegarmos o direito à saúde e ao cuidado a um lócus de subalternidade no plano da saúde pública.
A proibição das drogas forja um paradigma bélico no trato de um problema eminentemente pertencente à ordem da saúde pública e da proteção do indivíduo usuário de drogas. Não se pode, dessa maneira, falar de substâncias psicoativas sem perceber os adensamentos de classe, raça e vulnerabilidade – como os de pessoas em situação de abandono, habitantes das ruas. A questão sobre o uso e venda de substâncias psicoativas entrelaça-se a uma série de variáveis sociais, formando complexa teia de relações entre o Estado e o reconhecimento de respeito, cidadania e a possibilidade de autodeterminação a alguns sujeitos.
Em um novo agir público, ainda tímido, a redução de danos é apontada nos estudos da toxicomania como uma nova forma de atuação frente à drogadição, isto é, à dependência química. Essa forma de intervenção progressista enfatiza a prevenção das possíveis consequências danosas à saúde decorrente do uso de substâncias psicoativas, minimizando-se eventuais malefícios decorrentes dessa atividade (ORNELAS, 2014, p. 68).
Esclareço que o abuso de drogas, em meio ao peculiar e bélico modo de tratar a questão das drogas, acaba não sendo tratado como questão de saúde, mas como uma questão policial, como é percebido através do relato da dissertação “Na Central da Capital: entre as drogas e o Pacto”. A estrutura hegemônica de trato do tema ignora a essencial questão de saúde para prevenir e tratar o abuso de drogas. A ideia de livrar um mundo de drogas é ilusória e, acarreta mais danos do que o consumo das próprias drogas (LEMGRUBER; BOITEUX, 2014, p. 362).
No passado, com a atuação da representante do Ministério Público Federal Deborah Duprah na ADI 4274, em 2012, conseguimos entender que esse tipo não pode alcançar a livre manifestação, caso dos atos conhecidos como Marchas da Maconha. Hoje, precisamos de outro salto qualitativo e interpretativo a respeito do tipo penal previsto no art. 33§ 2° da Lei 11.343/2006. Na decisão de 2012, o STF não declarou o dispositivo inconstitucional, mas deu a ele interpretação conforme a Constituição Federal, permitindo as realizações das marchas como ato acobertado pela livre manifestação e reunião, direitos fundamentais inegociáveis. Reforço: atualmente, é necessário que tenhamos a proteção e respeito aos profissionais da redução de danos para que não sejam aviltados/as em sua dignidade profissional, tampouco conduzidos às delegacias de polícia por exercerem o seu tão necessário ofício.
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Reflexões retiradas da dissertação intitulada: “Na central da Capital: entre drogas e o pacto - Etnografando a criminalização das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto Pela Vida” (<a href="http://lattes.cnpq.br/6248204744575873">GONÇALVES,</a> Cristhovão)
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GONÇALVES, C. F. (2016). Na Central da Capital: entre as drogas e o pacto – etnografando a criminalização das drogas e a cultura policial nas metas do Pacto pela Vida no Grande Recife. [Dissertação de Mestrado não publicada]. Universidade Católica de Pernambuco.
LEMGRUBER, Julita; BOTEUX, Luciana. O fracasso da guerra às drogas. In:
AZEVEDO, Rodrigo G. de; Lima, Renato; RATTON, José Luiz (Org). Crime, polícia e justiça no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014.
ORNELAS, Pablo. Drogas e a governabilidade neoliberal: uma genealogia da redução de danos. 1a ed. Florianópolis: Insular, 2014.
RUI, Taniele. Nas tramas do crack: etnografia da abjeção. São Paulo: Terceiro Nome, 2014.

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JOTA

A redução de danos como paradigma alternativo ao proibicionismo

O controle das drogas através do braço policial

Proibição das drogas forja um paradigma bélico no trato de um problema eminentemente de saúde pública