José Eduardo Faria

Se no campo da saúde pública o combate à pandemia vem obrigando os cidadãos tolerarem algumas restrições de liberdades fundamentais, como é o caso do direito de ir e vir, no âmbito da vida política do país o governo Bolsonaro não vem medindo esforços para afrontar garantias fundamentais, como os direitos de opinião e crítica.
Nos dois casos, os efeitos são os mesmos. Por um lado, vai ficando claro que nada garante que as medidas adotadas a título de emergência não venham a ser perenizadas, minando assim a segurança do direito em decorrência da banalização da ideia de urgência. Por outro lado, o desprezo cada vez mais acintoso aos direitos de opinião e crítica, por parte do presidente da República e de seu entorno familiar e militar, ameaça a liberdade de imprensa, que é um dos pilares do Estado democrático de Direito.
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No caso específico da pandemia, as medidas adotadas para enfrentá-la podem acabar sendo consideradas eficazes demais para serem abandonadas, quando a crise de saúde pública for superada. O risco é que o excepcional se afirme perante o normal. Um exemplo desse risco é o projeto de lei apresentado em março deste ano por um ex-líder do governo, com o objetivo de ampliar os poderes do presidente da República. A ideia era conferir a ele poderes para intervir nas unidades da Federação e derrubar restrições impostas por governadores, como as políticas de isolamento social e de lockdown. O projeto também instituía a figura jurídica da Mobilização Nacional, prevista em casos de o País entrar em guerra, permitindo a Bolsonaro usar o coronavírus como pretexto para intervir nos processos produtivos, requisitar bens e serviços e convocar civis e militares para atuar no combate à pandemia. O risco que se entreabre é a possibilidade de consolidação de um “constitucionalismo de exceção”, em que a força normativa dos fatos, nestes tempos de pandemia, se sobreponha à força da Constituição.
Com relação à afronta à liberdade de expressão, o crescente número de processos criminais abertos contra jornalistas pelo governo Bolsonaro, com base na Lei de Segurança Nacional editada nos estertores da ditadura militar, dá a medida exata desse risco. A escalada contra os direitos fundamentais acaba de ficar evidenciada com a recente decisão do governo de tentar fazer com que as críticas de civis contra instituições militares que forem por elas próprias consideradas ofensivas serão julgadas pela Justiça Militar da União.
“Nessas situações, não há como se falar em ofensa ao princípio do juiz natural, uma vez que a Justiça Militar é a seara constitucionalmente prevista para processar e julgar os crimes militares definidos em lei”, diz o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU) enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), contestando uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) impetrada pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI).
Mais do que ilógico, o argumento da AGU – que no atual governo deixou de ser um órgão de Estado para se tornar de um escritório de causídicos pagos com dinheiro público a serviço dos projetos autocráticos de Bolsonaro – é rasteiro e patético. Numa democracia, faz sentido classificar como “crime militar” opiniões políticas emitidas por civis com base em direitos assegurados pela Constituição? Por exemplo, poderei ser acusado de cometer crime militar se disser que a formação da atual geração de generais parece lhes prejudicar o entendimento de que uma Constituição é um documento normativo com os predicados da democracia e que ela somente será eficaz se a política democrática respeitar as limitações constitucionais que lhe são impostas? Ou, então, se eu vier a afirmar que os atuais militares não conseguem entender como é possível que uma das premissas da democracia afirme que todo poder emana do povo e ao mesmo tempo reconheça a restrição desse poder popular, que só tem condições de ser exercido de maneira indireta, por meio de instituições que atuam sob as regras previstas pela própria Constituição?  Ou, ainda, se eu classificar como inadmissível, uma vez que onde há democracia o direito de crítica é uma garantia fundamental, a fala recorrente de alguns generais no sentido de que “a oposição está esticando a corda quando critica o governo”?
Nesse cenário, a indagação é óbvia: o que esperar do sistema político-democrático brasileiro, que envolve instituições, governos, agências de regulação, mercados, partidos, sindicatos e movimentos sociais – sistema político sempre marcado por altos graus de tensão e altas doses de imprevisibilidade? Ao responder a essa pergunta, sociólogos e juristas inspirados pela teoria dos sistemas afirmam que a inteligência política pressupõe capacidade de aprendizagem e inovação, conjugada com uma adequada gestão de riscos. Também dizem que, no regime democrático, as decisões coletivas costumam ser tomadas em condições mutantes e descontínuas e em ambientes marcados pela diferenciação funcional entre sistemas, por pluralismo de valores e por conflitos de interesses. Como decorrência, a democracia acaba deflagrando processos com resultados que muitas vezes são fortuitos, inesperados e incertos - concluem.
Historicamente, para tentar dar conta das contingências e incertezas em meio à competição política, a democracia liberal forjou instituições jurídicas. Demarcou as fronteiras entre as esferas pública e privada advindas com o Estado moderno. Adotou o modelo de tripartição do poder. Criou mecanismos de neutralização e dispersão dos conflitos. Impôs o respeito às leis e garantiu a segurança do direito. Abriu caminho para que os cidadãos possam exercer sua cidadania nos espaços públicos da palavra e da ação. Disseminou a tolerância às diferenças legítimas e às críticas como valor básico. E, vinculada ao racionalismo, dada a estrutura burocrática da administração moderna, assegurou ainda o respeito ao conhecimento técnico e às ciências.
Na primeira metade do século 20, contudo, o fascismo e o nazismo deixaram claro que a efetividade e a durabilidade do sistema político-democrático têm pontos vulneráveis, principalmente em tempos de escassez e de crise econômica, levando com isso à erosão da disputa política entre adversários e a substituindo pela ideia de uma batalha entre o bem e o mal. Já a segunda metade do século 20 revelou que, mesmo após a derrota do sectarismo fascista e da barbárie nazista, o sistema político-democrático - sob a forma do Estado de Direito - não está imune a várias estratégias e processos de corrosão. Dentre eles, aquele que é provocado por governantes autocratas, que se valem da ordem legal e dos procedimentos democráticos com a finalidade esvaziar mediações institucionais, garantias fundamentais, liberdades públicas e direitos das minorias. São iniciativas que respeitam a lei, do ponto vista técnico-jurídico, mas que atropelam ou profanam seu espírito.
<blockquote class="jota-article__eye">Essa é, justamente, a situação em que o País hoje se encontra, com a presença, no Palácio do Planalto, de um presidente que vem degradando progressivamente a ordem constitucional.</blockquote>
Ele faz campanha eleitoral proibida pela legislação e, se os órgãos de controle agirem para impedi-lo, serão acusados pelo entorno militar de fazer “interferências indevidas”. Além de intimidar a imprensa por meio de xingamentos e ações criminais, afronta diuturnamente a autoridade do STF e agride moralmente seus ministros, muitas vezes com linguagem de sarjeta. Seu governo patrocina expurgos de livros de bibliotecas de uma fundação cultural pública, sob o argumento de que são “comunistas”, ao mesmo tempo em que os dirigentes da área educacional desmontam o ensino público, asfixiam agências de fomento à pesquisa e adotam medidas que tentam unificar sob um rol de valores obscurantistas o sistema escolar e a cultura. E agora quer que as críticas formuladas por políticos, intelectuais e jornalistas às Forças Armadas sejam classificadas como “crime militar” e, como tais, julgadas por um tribunal corporativo, a Justiça Militar da União, esvaziando desse modo a jurisdição do Poder Judiciário e atingindo com isso o coração do Estado de Direito.
Considerando que a democracia é uma construção política que passa por avanços e retrocessos e que a sociedade brasileira é fragmentada e desigual, com a pandemia agravando suas iniquidades históricas, por quanto tempo mais teremos um Estado democrático de Direito? Pensando não com o otimismo da vontade, mas com o ceticismo da razão, para onde, realmente, o sistema político brasileiro está se dirigindo? Terá a democracia brasileira mais vigor e estabilidade do que aparenta, neste período de sucessivas tensões políticas e institucionais provocadas por um presidente despreparado, inconsequente e irresponsável?
São indagações difíceis de serem respondidas. Entre outros motivos, por causa da estreita relação entre a política e o futuro, por um lado, e do medo que vai tomando conta de vários setores da sociedade, por outro. No primeiro caso, a política democrática é um modo de se tentar civilizar o futuro, de impedir sua colonização por um passado determinante ou, então, por inércia e incompetência administrativas, como afirmam alguns cientistas políticos inspirados na teoria dos sistemas. No segundo caso, a hora é de lembrar que sentir a emoção do medo é uma coisa e permitir que o medo se apodere das pessoas é outra bem diferente.
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o jurista bolsonarista

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JOTA

Por quanto tempo mais teremos um Estado Democrático de Direito? Para onde o sistema político brasileiro está se dirigindo?

O constitucionalismo de exceção e a perversão do direito de crítica

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