Paulo Incott

A dogmática penal desenvolveu categorias analíticas para o exame do fato punível complexas e significativamente minuciosas. Isso permite ao intérprete da norma penal realizar um exame detalhado de condutas lesivas ou potencialmente lesivas de bens jurídicos fundamentais, de modo a separar aquelas condutas que devem ser sancionadas penalmente.
Dentro do estudo dessas categorias surge um elemento notavelmente sensível e cuja apreciação evoluiu ao longo do tempo, levando-o a ocupar um lugar central no exame de diversos delitos. Trata-se do consentimento do ofendido, podendo este ser tratado dentro de qualquer das principais categorias do fato punível dentro da dogmática penal – tipicidade, ilicitude ou culpabilidade[1].
O consentimento do ofendido consta expressamente em diversos tipos penais, de modo a delimitar a possibilidade de persecução penal. Casos emblemáticos do Código Penal Brasileiro são os dos crimes de aborto (artigo 124-126), incluindo a necessidade de consentimento para aplicação da causa especial de afastamento da ilicitude do artigo 128, II.
Também no crime de constrangimento ilegal por meio de intervenção médica ou cirúrgica o consentimento ocupa posição central (artigo 146, §3º, I). Neste tópico surgem diversas questões interessantes relacionando consentimento e punibilidade, com enfoque nos casos de recusa de tratamento de saúde por pacientes adultos e conscientes, como ocorre com a recusa de transfusão de sangue por paciente Testemunha de Jeová, com diversos casos tendo sido levados até o Superior Tribunal de Justiça (STJ), muitos dos quais tiveram seu desfecho favorável ao direito de autodeterminação, desde que não haja iminente risco de morte[2].
Além dos delitos que possuem a disponibilidade de vida e da integridade física como bens jurídicos protegidos pela norma penal, os chamados crimes sexuais, que visam fornecer proteção à dignidade ou autonomia sexual também trazem a análise do consentimento como elemento central para averiguação da punibilidade geral da conduta.
Porém, é perceptível que em outros grupos de casos o consentimento não parece receber a mesma “consideração”, quer pelo legislador penal, quer pela doutrina e por aqueles responsáveis de modo mais direto pela aplicação da norma penal a situações reais.
É o que ocorre com os crimes contra o patrimônio. Tomando por base mais uma vez o Código Penal brasileiro, o consentimento faz, explicitamente, apenas uma modesta aparição no caput do artigo 164 (Introduzir ou deixar animais em propriedade alheia, sem consentimento de quem de direito, desde que o fato resulte prejuízo). 
Na doutrina, o consentimento do ofendido em crimes patrimoniais costuma ser objeto de análises voltadas para os delitos que exigem representação, do ponto de vista processual, ou do exame das causas de atenuação da pena em termos de dosimetria, levando a discussão de modo mais enfático para o exame da culpabilidade. A jurisprudência penal, nesse mesmo sentido, não oferece considerações muito profundas sobre as consequências do consentimento do ofendido em crimes patrimoniais.
Obviamente que essa suposta lacuna pode ser atribuída ao fato de que, havendo consentimento, não há sequer como configurar a tipicidade da maioria dos crimes contra o patrimônio, uma vez que estes supõe alguma forma de redução patrimonial da vítima sem a sua concordância ou em seu prejuízo. Ocorre, porém, que delitos com efeitos patrimoniais nem sempre são tão simples de serem apreciados quanto ao resultado típico, trazendo a tona a necessidade de um exame cuidadoso sobre a intensidade com que a vítima aceitou a possibilidade ou o risco que sua própria conduta trouxe para que o resultado de lesão patrimonial ocorresse. Isso acontece de modo mais nítido em crimes que possuem a fraude como elemento objetivo do tipo penal.
Sem delongar o argumento aqui apenas esboçado, é interessante analisar o exemplo de um delito que de certa forma se encontra em voga na persecução penal contemporânea nacional e internacional – o crime de formação de pirâmide financeira[3].
No Brasil, a conduta está tipificada, em que pese os diversos problemas com a redação do tipo penal, no artigo 2º, IX, da Lei 1.521, de 26 de dezembro de 1951:
<blockquote class="jota-article__citation">"IX — obter ou tentar obter ganhos ilícitos em detrimento do povo ou de número indeterminado de pessoas mediante especulações ou processos fraudulentos ('bola de neve', 'cadeias', 'pichardismo' e quaisquer outros equivalentes)".</blockquote>
Um dos aspectos centrais da conduta delitiva emoldura de modo abstrato no tipo penal acima transcrito é a especulação/fraude (ou os “processos fraudulentos”). Para que haja um processo fraudulento alguém precisa ter sido levado a erro, a uma falsa compreensão da realidade. Em delitos com consequências patrimoniais quase que invariavelmente isso significa que o agente induz a vítima a acreditar em uma informação falsa com o fim de que esta lhe forneça voluntariamente (estando sua vontade viciada pela fraude) parte de seu patrimônio ou ao menos que, em virtude do engano, mantenha a coisa desvigiada, como ocorre no furto mediante fraude (artigo 155, §4º, II).
O que se quer destacar nesse momento é que no delito de pirâmide financeira muitas vezes as vítimas possuem conhecimento suficiente do risco em que incorrem ao investir seus recursos no negócio que lhes é ofertado. Não raro as condições para que seu investimento gere bons rendimentos, inclusive em termos de atrair novos investidores, é externado de modo claro, fazendo constar em documentos diversos esta compreensão dos riscos envolvidos naquele investimento.
Naturalmente não se está querendo afirmar aqui que em todos os casos em que a simples informação sobre o risco foi fornecida deveria ser afastada a tipicidade do delito de pirâmide financeira. Uma série de circunstâncias pode e deve ser levada em conta: a qualidade e profundidade da informação dada; o grau de vulnerabilidade intelectual da vítima; o grau de volatilidade do mercado em que é feito o investimento; a forma de gestão dos recursos por parte da captadora destes ativos, dentre outras.
O que se deseja neste momento é chamar atenção para necessidade de um desenvolvimento doutrinário capaz de fornecer aos aplicadores da norma penal um substrato teórico suficiente para que adicionem ao seu exame considerações sobre a presença do consentimento do ofendido em delitos patrimoniais (ou com consequência patrimonial), afim de permitir a melhor equalização de responsabilidades numa sociedade “hiperinformada”.
Generalizações, do tipo tudo ou nada, parecem ser o pior caminho a seguir. Apenas através de exame cuidadoso do grau de conhecimento de todos os envolvidos o Estado poderá dar uma resposta satisfatória e legítima para delitos que envolvem a apreciação da fraude e outros aspectos atinentes ao consentimento do ofendido em crimes com repercussão patrimonial.
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[1] O consentimento do ofendido é tratado na doutrina como causa supralegal de exclusão da antijuridicidade ou da própria tipicidade. Claus Roxin costuma ser referenciado como principal expoente da corrente doutrinária que diverge do posicionamento tradicional e trata o consentimento real como excludente do tipo (ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general. Tomo I: Fundamentos. La estrutura de la teoria del delito. Traduccíon de la 2ª edición alemana por Diego-Manuel Luzón Pena. Madrid (España): Editorial Civitas, 1997. p. 517-526). No Brasil, aderindo a esta corrente, dentre outros: MARTINELLI, João Paulo Orsini. Lições fundamentais de direito penal: parte geral / João Paulo Orsini Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem. 2ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 571-578; SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito Penal: parte geral. 6ª ed. Curitiba, PR: ICPC Cursos e Edições, 2014. p. 260-261.
[2] Obra imprescindível em português sobre o tema do consentimento em relação aos tipos penais abrangidos pela atuação médica: SIQUEIRA, Flávia. Autonomia, consentimento e Direito Penal da Medicina. São Paulo: Marcial Pons, 2019.
[3] Segundo o relatório sobre crimes envolvendo criproativos da instituição Chainalysis, 2019 foi “o ano dos esquemas Ponzi” em virtude do grande número de denúncias ao redor do mundo de esquemas desse tipo. A Chainalysis define a si mesma do seguinte modo: “Chainalysis is the blockchain data platform. We provide data, software, services, and research to government agencies, exchanges, financial institutions, and insurance and cybersecurity companies in over 70 countries. Our data powers investigation, compliance, and market intelligence software that has been used to solve some of the world’s most high- profile criminal cases and grow consumer access to cryptocurrency safely”. Seu site, contendo relatórios periódicos de observação sobre delitos com criptoativos, em especial a lavagem de capitais e esquemas similares ao de pirâmide financeira, pode ser encontrado em: https://<a href="http://www.chainalysis.com/company">www.chainalysis.com/company.</a>

pirâmide financeira

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JOTA

Generalizações do tipo tudo ou nada parecem ser o pior caminho a seguir

O consentimento do ofendido no delito de pirâmide financeira

É interessante analisar o exemplo de um delito em voga na persecução penal contemporânea: a formação de pirâmide financeira