José Augusto Medeiros

Entre as discussões atuais sobre os objetivos do compliance estão a sua relação com o “princípio da proporcionalidade” e os limites do internacionalismo da matéria<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>. Na Europa, a bola da vez é “como integrar a proporcionalidade às práticas e estratégias de compliance”. Além de tocar na eficiência dos programas, a discussão atinge a definição do que seria um “Direito do Compliance” genuinamente forjado para cada economia (“Compliance Law” ou “Droit de la Compliance”).
O desafio está em buscar o alinhamento entre o “princípio da proporcionalidade” e o sentido que os programas de compliance têm perante o ordenamento econômico de cada nação. Procura-se definir quais são os “buts monumentaux de le Droit de la Compliance”. Tudo isso porque, em tese, a eficiência dos programas de conformidade seria tributária da proporcionalidade, enquanto esta apenas serviria de ferramenta se tomada a partir de uma referência acerca do denominado “Direito do Compliance”.
<a href="https://www.jota.info/produtos/tributos?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Tributos_materias"><img class="aligncenter cta-tributos size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/cta-jota-pro-tributos.png" width="688" height="688" /></a>
A lógica parece ser simples: se a discussão é sobre o potencial transformador dos programas de compliance, então as condições socioeconômicas perseguidas pelos países, em sua macro-organização, não podem ser deixadas de lado na definição das metas de conformidade. Por conseguinte, a avaliação de eficácia desses programas deve ser orientada proporcionalmente a partir da mesma dinâmica. A reflexão merece a consideração dos especialistas brasileiros.
O debate europeu localiza-se no ambiente do Direito Econômico. Para os autores dessa corrente, o “Direito do Compliance” corresponderia a uma extensão do Direito Regulatório, sendo definido como um conjunto de regras, instituições, princípios, métodos e decisões, cujo significado e normatividade estariam dirigidos para finalidades específicas e transdisciplinares. Essas finalidades são classificadas como “metas monumentais” ou “buts monumentaux”.
Na trilha dessa demarcação, todos os meios possíveis devem ser mobilizados para realizar tais objetivos. Muito embora se reconheça que o "Direito do Compliance" não tem aplicação generalizada, os “buts monumentaux”, a julgar pela sua relevância, teriam força para influenciar que autoridades políticas e entidades aloquem recursos destinados a proteger o que socialmente importa. Correlatamente, a acepção conferiria novos métodos ao compliance, realocando para o segundo plano as perspectivas de enquadramento e repressão.
A noção de “buts monumentaux” foi originalmente articulada por Marie-Anne Frison-Roche, uma das expoentes do tema no cenário francês. A autora traça um paralelo entre o que ela denomina de vontade internacional de conformidade e internalização dessa pretensão por empresas locais. Em trabalho de 2016, Frison-Roche registra que a conformidade equivaleria à expressão da vontade do poder público de impor normas sobre as quais não tem força suficiente para garantir eficácia.
Assim, os órgãos reguladores e o poder público adotariam normas que podem ser definidas como “monumentais”, haja vista os seus objetivos imensos, como, por exemplo, o fim da corrupção, do trabalho infantil e das práticas prejudiciais ao meio ambiente<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Como efeito direto, as empresas supranacionais passam a ser designadas como agentes efetivos de “metas globais monumentais”.
A crítica volta-se para a forma de aplicação e o conteúdo de cumprimento das regras internacionais por empresas que não necessariamente participaram da idealização dessas mesmas regras. Para a professora francesa, a inobservância das diretrizes globais – notadamente a não monitorização dos fluxos financeiros para detectar comportamentos sistematicamente nocivos – desagua na aplicação de sanções genéricas, sem que as empresas possam se opor a qualquer prova ou mesmo se valer do seu sistema jurídico nacional para se defender. Neste ponto, em particular, os regulamentos seriam aplicados “sem piedade”, fazendo com que a sanção se torne a “consequência da conformidade” e não a sua “causa”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A autora vai mais longe. Em sua visão, as empresas estão sendo encarregadas de “salvar o mundo” e, consequentemente, alocadas numa espécie de “serviço público global, como nem mesmo os autores franceses teriam sonhado em conceber”. O ponto é que esse arranjo pode desmoronar, na medida em que as empresas não são criadas para tamanhas finalidades<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>. De outro lado, a multiplicação do compliance em especialidades agrava a fragmentação da matéria, contribuindo para um inconveniente de ordem prática: diferentes regras de aplicação desenvolvem-se isoladamente, em centenas de pequenos regimes legais e soluções exclusivas que são armazenadas nas prateleiras de plataformas virtuais, sem que nenhuma coerência coletiva surja deste esforço<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>.
Da maneira como estão expostas, a noção de “conformidade” e as suas “metas monumentais” corresponderiam a técnicas estrangeiras e simultaneamente contraditórias, de modo que – se continuarem mal formuladas na legislação e na doutrina – podem abrir espaço para a substituição do direito pela força<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. Diante desse quadro, propõe-se construir um “Droit de la Compliance” capaz de posicionar firmemente os seguintes elementos: (i) quem está no comando e (ii) quais são os seus princípios norteadores.
A autora eleva a necessidade de escapar de um “albergue espanhol” de derivações e definições, bem como de delimitar o papel internacional na definição das metas monumentais. Para tanto, observa que os “Estados Unidos não podem ser vistos como a consciência e a voz moral do mundo”, devendo a Europa “expressar uma ambição da mesma altura e com a mesma consequência técnica”.
Em trabalho mais recente, elaborado com outros autores, o “princípio da proporcionalidade” é apresentado como instrumento hábil para referendar a eficácia dos objetivos traçados pelo "Direito do Compliance"<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>. Parte-se da ideia de que ainda há confusão na área, mantendo-se contestada a natureza jurídica dos mecanismos empregados. Embora a aplicação da proporcionalidade seja obrigatória por outras razões e fundamentos, os autores reforçam a orientação para que o princípio seja aplicado prioritariamente como um mecanismo de “limitação de poderes”. Tudo isso para lembrar que o compliance, concebido como “processo”, somente é sustentável se ancorado no Estado de Direito, de forma autolimitada. Essa conotação retiraria a ideia de um direito que tem como definição exclusiva a “eficiência”.
Na prática, a proporcionalidade auxiliaria no atingimento de metas maiores. O êxito dessa manobra, porém, dependeria da qualidade legal do objetivo pré-estabelecido. A partir de uma exigência constitucional de “limite” e de “necessidade”, o objetivo predefinido deve ser sempre “legível, compreensível, não contraditório e atingível”. Essa dialética teria o potencial de refuncionalizar a interpretação do Judiciário e renovar o poder do legislador, formatando uma concepção não discriminatória de programas. De maneira sucinta, o reposicionamento da proporcionalidade na avaliação dos programas de compliance tornaria inevitável olhar para os objetivos, deslocando o foco do processo em si.
A despeito da inovação que projeta no debate europeu, a teoria desenvolvida deve ser percebida com reservas no Brasil. Por aqui, a temática é freguesa antiga do Direito Econômico, tendo vínculos diretos com a teorização da função social da empresa e com os limites do poder econômico<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>. Da mesma maneira, é correto afirmar que os princípios formadores da função social da empresa estão diametralmente expostos no texto constitucional, o qual determina o sentido da ordem econômica, as suas próprias metas “monumentais”, bem como a forma de mercado eleita para a consecução desses objetivos. Autores como Fabio Konder Comparato, Eros R. Grau, e, mais recentemente, Gilberto Bercovici têm alertado exaustivamente sobre o assunto.
A propósito, já tivemos a oportunidade de defender neste espaço<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> que, na arquitetura jurídica econômica brasileira, o compliance, em suas mais variadas funções, particulariza um instrumento do desenvolvimento econômico constitucionalmente planejado. Por meio dessa perspectiva, o compliance deixa de ser percebido como mero mecanismo procedimental para se tornar um expediente da política econômica estrutural. Trata-se, portanto, de uma ferramenta de Direito Econômico, que deve ser interpretada pela lógica decorrente desta disciplina. Característica que derroga a necessidade de categorização de um (novo) ramo do direito, conforme propõem os autores europeus.
Reflexamente, o que parece ter maior relevância no debate europeu é a rearticulação da soberania econômica a partir do “princípio da proporcionalidade”. Nesse ambiente, é possível constatar que o que está em jogo é a confecção de uma dinâmica de compliance própria, apta a não desarticular o mercado interno (europeu) e suficiente para protegê-lo de investidas extraterritoriais comprometedoras de sua autonomia. Além disso, é conveniente prestar a atenção na “autolimitação” buscada pelos autores citados, cujo escopo é retirar do agente de mercado a responsabilidade de fazer o papel do Estado na definição da política pública.
Se a proporcionalidade vai auxiliá-los, apenas o tempo dirá. Entre nós, por enquanto, permanece a incógnita se conseguiremos lembrar que existe uma ordem econômica constitucionalmente definida.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
<hr />
&nbsp;
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Não vamos entrar na discussão sobre a diferença entre regra e princípio da proporcionalidade. A respeito do assunto, conferir: SILVA, Virgílio Afonso da. O proporcional e o razoável. Revista dos Tribunais (São Paulo. Impresso), v. 798, p. 23-50, 2002; AVILA, H. B.. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos, 19. ed. São Paulo: Malheiros Editores Ltda, 2019; e SCHOLLER, Heinrich. O princípio da proporcionalidade no direito constitucional e administrativo da Alemanha. Trad. Ingo Wolfgang Sarlet. Revista do Tribunal Regional Federal 4ª Região, v. 11, n. 38, p. 229–146, Porto Alegre, TRF-4, 2000.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> FRISON-ROCHE, M.-A. Le Droit de la compliance, D.2016, Chron., 29.set.2016, n.° 32.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Id.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Id.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> FRISON-ROCHE, M.-A. Les outils de la compliance. [s.l.]: Dalloz, Paris. 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> É preciso registrar que as reflexões da autora foram feitas num contexto em que as potências europeias, como França e Alemanha, já flertavam com o crescimento e avanço chinês de um lado, e, de outro, com a lógica estratégico-punitiva internacional dos EUA. Nesse sentido, confira as seguintes matérias veiculadas em 2016 e 2017: <a href="https://www.lemonde.fr/economie/article/2016/11/06/l-amerique-impose-son-droit-au-reste-du-monde_5026311_3234.html">https://www.lemonde.fr/economie/article/2016/11/06/l-amerique-impose-son-droit-au-reste-du-monde_5026311_3234.html</a> e <a href="https://www.monde-diplomatique.fr/2017/01/QUATREPOINT/56965">https://www.monde-diplomatique.fr/2017/01/QUATREPOINT/56965</a>.
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> C.f.: FRISON-ROCHE, M.-A., Définition du Principe de Proportionnalité et définition du Droit de la Compliance, document de travail, juillet 2021; ANDRÉ, Ch., Compliance Monumental Goals, vectors of «common» social values.  Perspectives from a Criminal Lawyer. In: FRISON-ROCHE, M.-A. (ed.), Compliance Monumental Goals, series "Régulations &amp; Compliance", Journal of Regulation &amp; Compliance (JoRC), 2021; e BRUYLANT; Bismuth, R., Compliance et Souveraineté: relations ambigües In: FRISON-ROCHE, M.-A. (ed.), Compliance Monumental Goals, series "Régulations &amp; Compliance", Journal of Regulation &amp; Compliance (JoRC) and Bruylant, 2021.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> O reconhecimento da função social da empresa está presente nos debates ao menos desde a Lei de Sociedades Anônimas, a Lei n.º 6.404, de 1976, que traz a temática em seus artigos. 116, parágrafo único, e 154.
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> C.f:. Exigir Compliance Ambiental da Vale é Questão de Direito Econômico. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/exigir-compliance-ambiental-da-vale-e-questao-de-direito-economico-22122019">https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/exigir-compliance-ambiental-da-vale-e-questao-de-direito-economico-22122019</a>; e A função ambiental do compliance na reestruturação econômica mundial. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-funcao-ambiental-do-compliance-na-reestruturacao-economica-mundial-03102020">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/a-funcao-ambiental-do-compliance-na-reestruturacao-economica-mundial-03102020</a>.

compliance

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Desafio é buscar o alinhamento entre 'princípio da proporcionalidade' e o sentido que os programas de compliance têm no ordenamento econômico

O compliance (re)visto pelo direito econômico

Desafio está em buscar o alinhamento entre o “princípio da proporcionalidade” e o sentido que os programas de compliance têm no ordenamento econômico