Rodrigo Belon

A noção popular sobre os malefícios causados por cartéis já é algo comum no meio social: cartéis, como arranjos escusos entre diferentes concorrentes, buscam elevar preços de produtos e serviços acima do que se teria em um mercado competitivo, dividir o mercado, restringir oferta e impedir a inovação e o incremento de qualidade. Todos sabemos que cartéis são nefastos à nossa vida.
O combate a cartéis, no entanto, ainda esbarra em certo grau de desconhecimento. Ainda que o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)</a> se esforce em difundir os canais de denúncia, incrementar seu parque tecnológico de análise e publicizar suas decisões, cartéis continuam existindo por uma percepção de que o risco de uma penalização efetiva (o pagamento de uma multa, a proibição de participação em licitações, a devolução de valores) ainda é muito baixo frente aos ganhos, ainda que temporários, de um acordo.
Tal percepção se dá em razão da manutenção do protagonismo, praticamente isolado, da autoridade antitruste nessa tarefa, conhecido no meio como public enforcement. O Cade sozinho não consegue olhar para todos os lados ao mesmo tempo, processar a quantidade de informações que recebe ou acessa e sancionar aqueles que cometem ilícitos, em tempo de evitar que a prática se desenvolva e que, ainda, sirva de exemplo aos demais agentes de mercado. E ainda há a questão da rediscussão judicial de suas decisões, que posterga o resultado final para uma janela de tempo indefinida.
No entanto, a lei concorrencial prevê a possibilidade de particulares participarem de maneira ativa do processo de combate a cartéis, conhecido como private enforcement, por meio de ações civis de reparação de danos concorrenciais (ARDC). A prática, extremamente comum nos EUA, ainda engatinha no cenário nacional em razão de diversas dificuldades, ligadas tanto ao custo dessas ações e à morosidade do Poder Judiciário, quanto às questões processuais, à identificação clara da conduta e ao cálculo efetivo do dano causado.
Esse cenário, entretanto, vem mudando. A legislação brasileira avançou no último ano: a Lei 14.470/2022 alterou a Lei 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência) para prever novas disposições aplicáveis à repressão de infrações que afetem a ordem econômica no flanco privado. Basicamente, ela incrementou incentivos aos acordos de empresas participantes em cartéis com o Cade, diminuindo o grau de responsabilização civil a que elas estariam expostas, além de endereçar as questões referentes ao prazo prescricional das ações civis de reparação (início no momento da publicação da decisão do Cade), e ainda deu um novo status à manifestação final da autoridade antitruste, que passou a ser considerada documento hábil para tutela de evidência pelo Poder Judiciário nessas ações de reparação privada.
Paralelamente, o Cade editou normas internas que viabilizam, em tese, o incremento dessas ações civis de reparação: a Resolução 21/2018 e a Portaria 869/2019 visam permitir que potenciais interessados, que se sintam lesados pela prática de um cartel investigado pela autoridade antitruste, tenham acesso a informações e documentos comprobatórios da prática para que, em conjunto com a decisão proferida pelo órgão estatal, possam buscar junto ao Poder Judiciário a reparação. Esta arquitetura normativa tende a gerar efeitos a partir de agora, já que por uma decisão do Cade de 2019, proferida nos autos de um processo “filhote” do cartel do air bag (processo 08700.007938/2016-41), tais normas (Resolução 21/2018 e a Portaria 869/2019) apenas se aplicariam aos novos processos iniciados após sua publicação – ou seja, processos iniciados após 2018 e que, segundo planejamento do Cade, deveriam ser priorizados.
Ainda, o Cade passou a aceitar e incluir em seus acordos administrativos com participantes de cartel, chamados de Termo de Cessação de Conduta (TCC), cláusula que reduz o valor das contribuições devidas ao Fundo de Direitos Difusos, destinatário das multas impostas pela autarquia, nas situações que os participantes comprovem o ressarcimento de danos causados a terceiros.
Por fim, em evento promovido recentemente pela Fundação Getulio Vargas, no Rio de Janeiro (O julgamento das ações de reparação de danos concorrenciais nos tribunais de primeira e segunda instância: obstáculos e superações), o Cade mencionou a intenção de usar sua tecnologia e expertise em grandes investigações para focar nos casos de cartéis menores, de influência nacional e regional, bem como de se pensar em guia orientativo para acesso e uso de documentos das investigações, como medidas para incentivar o private enforcement.
A fronteira que se impõe agora é sobre o cálculo do dano: como o direito civil brasileiro não admite o enriquecimento sem justa causa, a indenização precisa ser compatível com o dano. E o cálculo desse dano não é trivial em casos de cartel porque o parâmetro de comparação, ou seja, o exercício teórico de se criar um mercado sem o cartel, o chamado contrafactual, deve guardar a mesma quantidade de variáveis do mercado real, onde ocorreu a conduta. Como a realidade é complexa, esse cálculo sempre pode ser confrontado e discutido por outro, com outra metodologia.
O embate de pareceres econômicos, que buscam estimativas e aproximações, somado à pouca familiaridade natural dos juízes responsáveis pela análise da causa, resultam numa extensão de tempo para julgamentos, e são os atuais gargalos para uma solução efetiva. Para se ter no radar como comparação, a experiência europeia evoluiu para um guia de orientação de uso de prova econômica aos juízes, ao passo que nos EUA tais provas são submetidas a um teste de confirmação de sua plausibilidade.
Aqui, a Secretaria de Promoção da Produtividade e Advocacia da Concorrência (SEPRAC) desenvolveu um <a href="https://www.gov.br/fazenda/pt-br/centrais-de-conteudos/publicacoes/guias-e-manuais-anteriores-a-2019/calculo-de-danos-em-carteis/view">guia</a> nesse sentido, e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) segue o mesmo caminho visando construir uma metodologia crível que possa ser utilizada como padrão. Mas ainda há a necessidade desses modelos serem testados – e suas premissas aceitas – pelo Judiciário. Paralelamente, discute-se ainda a possibilidade do uso de arbitragem para superação desses gargalos, mas ainda se esbarra na ausência de casos práticos para se optar por tal procedimento, que é mais custoso, no Brasil, que o pleito judicial.
Como se pode ver, a evolução desse tema tem se dado a conta-gotas no Brasil, ainda carente de uma assimilação e implementação das novas regras que complementam o public enforcement e que, se aplicadas na prática, têm o potencial de gerar a percepção de risco desejada para efetivamente se combater os cartéis no país. A evolução dessa agenda é um elemento de segurança jurídica para agentes de mercado que queiram se desenvolver no território nacional, bem como para a promoção de um ambiente negocial mais saudável, próspero e sustentável no longo prazo.

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JOTA

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