O ano de 2021 foi lançado como o Ano Internacional para a Eliminação do Trabalho Infantil, pela Organização das Nações Unidas - ONU, em colaboração com a Parceria Global. A iniciativa objetiva promover ações legislativas e práticas para erradicar o trabalho infantil em todo o mundo, com a adoção de ações específicas até dezembro de 2021.
O Ano Internacional foi aprovado por unanimidade e constou de resolução adotada pela Assembleia Geral da ONU, de julho de 2019, para instar os governos a fazerem o que for necessário para atingir a Meta 8.7 dos Objetivos de Desenvolvimento sustentável da Agenda 2030 da ONU, que consiste em adotar “medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas, e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado”, com destaque sobre a importância das Convenções Internacionais da OIT sobre a idade mínima para o trabalho e piores formas de trabalho infantil.
O Ano Internacional também marca a preparação para a V Conferência Global sobre Trabalho Infantil, que acontecerá na África do Sul, em 2022, momento em que os participantes poderão compartilhar experiências e divulgarão compromissos adicionais para eliminar o trabalho infantil em todas as suas formas até 2025 e o trabalho forçado, o tráfico de pessoas e a escravidão moderna até 2030.
Segundo a OIT, nos últimos 20 anos, quase 100 milhões de crianças foram retiradas do trabalho infantil, com a redução do número de vítimas de 246 milhões para 152 milhões em 2016. Apesar do exposto, o progresso entre as regiões é desigual, já que quase metade crianças que trabalham estão na África (72 milhões de crianças), na Ásia e Pacífico (62 milhões). Além disso, quase metade das crianças também trabalha em ocupações ou situações consideradas perigosas para a saúde e a vida[1].
No Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base na Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílio Contínua (Pnad Contínua) divulgada em dezembro de 2020, apontou que entre os anos de 2016 a 2019 houve queda do trabalho infantil em 16,8%[2]. Apesar do exposto, muito ainda resta a ser feito.
Em 2020, a OIT e a UNICEF anunciaram que a Covid-19 poderia ameaçar os progressos alcançados em mais de 20 anos na redução do trabalho infantil em nível mundial. Segundo o relatório “Covid-19 e o trabalho infantil: em tempos de crise, é hora de atuar”, as crianças que já estão em situação de trabalho infantil “poderiam ter que trabalhar mais horas ou em piores condições e muitas delas poderiam ser forçadas às piores formas de trabalho”, o que causaria danos significativos à sua saúde e segurança. O principal motivo desse agravamento é o reflexo da pandemia sobre a renda das famílias.
Nesse sentido, Guy Ryder, diretor-geral da OIT, destacou que “a proteção social é essencial em tempos de crise, pois permite prestar assistência aos mais vulneráveis”, assim como, apontou a necessidade da inserção “das preocupações sobre trabalho infantil em políticas mais amplas de educação, proteção social, justiça, mercado de trabalho e direitos humanos e trabalhistas em escala internacional.”[3].
Com efeito, a pandemia trouxe o agravamento do trabalho infantil, que já alcançava, majoritariamente, crianças pobres, a maior parte preta e parda, moradora da periferia e que se viu fora das escolas, face às medidas de isolamento social impostas pela crise sanitária. Muitas dessas crianças foram excluídas do ensino à distância, por ausência de estrutura, e estiveram em meio ao aumento da violência familiar.
Sem aulas, mais crianças passaram a ser levadas ao trabalho “na roça”, outras aos lares dos empregadores domésticos e outras, ainda, a dividir as ruas com outras crianças e parentes para pedirem ajudas financeiras.
Mesmo antes da pandemia, um dos maiores desafios a serem enfrentados no Brasil e em outros países é a naturalização desse tipo de exploração, seja por questões culturais, no sentido de que o trabalho é positivo para o desenvolvimento das crianças ou por razões econômicas, para a necessária contribuição no sustento das famílias. Ideias como as de que “é melhor trabalhar do que roubar”; “trabalhar não mata ninguém”; “o trabalho enobrece” e o “trabalho educa”, entre outras, são ainda bem presentes na nossa sociedade, apesar de já terem sido reiteradamente desmistificadas por especialistas[4].
As crianças, devido à sua fragilidade, estão mais sujeitas a acidentes e doenças no trabalho do que os adultos, inclusive por não terem maturidade suficiente para perceberem o potencial perigo das atividades. Além disso, muitas atividades podem ser prejudiciais ao bom desenvolvimento físico, moral e psicossocial da criança, sendo por essas e por outras razões, absolutamente proibidas no Brasil. Ademais, o trabalho pode acarretar traumas psicológicos advindos do amadurecimento precoce, do enfraquecimento dos laços familiares e do prejuízo ao desenvolvimento da escolaridade. Tal círculo vicioso leva à perpetuação da pobreza e, muitas vezes, à escravização de trabalhadoras e trabalhadores.
A Constituição Federal de 1988 proíbe o trabalho por menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz aos 14, além da execução de trabalho noturno, perigoso e insalubre por menores de 18 anos. Referido diploma atribui ao Estado brasileiro assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, os direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, e a oferecer proteção especial diante de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, com especial proteção às garantias trabalhistas e previdenciárias.
O Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, deixa claro que a criança e o adolescente gozam de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, assegurando-se todas as oportunidades e facilidades, para os respectivos desenvolvimentos físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade e que tais direitos são garantidos sem qualquer discriminação, como idade, sexo, raça, etnia ou cor, entre outros. Em acréscimo ao que foi exposto, o Estatuto também proíbe qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor à criança, o que inclui o direito a ser educada e cuidada sem o uso de castigo físico ou tratamento cruel ou degradante como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto.
O Brasil é signatário de diversos tratados de direitos humanos e Convenções da OIT que protegem crianças e adolescentes, como a Convenção nº 138 e a Recomendação nº 146 (idade mínima para o trabalho), além da Convenção nº 182 (proibição das piores formas de trabalho infantil e ações para a sua eliminação). O país foi pioneiro na ratificação da Convenção nº 182, promulgando o Decreto nº 6.481, de 12 de junho de 2008, que aprova a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP), como previsto no referido instrumento.
O combate ao trabalho infantil sempre foi prioritário no âmbito da OIT, o que foi reforçado com a adoção da Declaração relativa aos Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, em 1998, como uma das matérias fundamentais que exige a observância pelos estados-membros, independentemente de terem ratificado as Convenções pertinentes. No dia 04 de agosto de 2020, a Convenção nº 182 da OIT sobre as piores formas de trabalho infantil alcançou a histórica ratificação universal pelos 187 países-membros, feito jamais visto nos mais de 100 anos de existência do organismo internacional e que elevou a erradicação dessas práticas a compromisso global.
Assim, espera-se que os mitos que contribuem para o incentivo ao trabalho infantil no Brasil e em outras partes do mundo possam definitivamente ficar no passado e que o país adote políticas de Estado, para que o ano de 2021 possa, realmente, ser considerado marco internacional no combate ao trabalho infantil em todas as suas formas.