Marcus Bacellar

Oséias Amaral

O Censo deveria ser um consenso nacional, independente do viés ideológico dos diversos grupos que atuam na política do país.
A essencialidade da pesquisa extrapola a disputa sobre o limite do Poder Judiciário ao impor determinações de políticas públicas ao Executivo Federal, pois, como apontou o ministro Marco Aurélio de Mello ao deferir tutela provisória na Ação Cível Originária nº 3508, há norma constitucional expressa que determina que a União a organize e mantenha os serviços oficiais de estatística nacionais (art. 21, inciso XV – <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6163437" target="_blank" rel="noopener noreferrer">notícia STF</a>), bem como existe regra que regulamenta essa exigência constitucional. Trata-se da Lei Federal nº 8184/91, que ordena a realização dos Censos demográficos a cada dez anos e dos Censos econômicos a cada cinco anos.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Na petição que deu origem à Ação Cível Originária nº 3508, a Procuradoria Geral do Estado do Maranhão relacionou a realização do Censo ao princípio da legalidade, ao princípio da eficiência e ao direito à informação que, a partir da determinação constitucional, torna-se um dever do Estado, sob pena de este incidir na vedação da proteção deficiente.
Apontou também a conexão do instrumento estatístico com o princípio democrático, por meio do seu uso para a calibração da representação dos estados na Câmara dos Deputados, conforme previsão da Lei Complementar nº 78/1993 e com o princípio federativo, na medida em que parte dos recursos de Participação dos Estados e Municípios são transferidos por meio de critérios cujas métricas são obtidas por meio dos Censos (Leis Complementares nº 91/1997 e nº 62/1989).
Contudo, nesse espaço, o objetivo é explorar outro aspecto da relevância da pesquisa – que deveria unir liberais e desenvolvimentistas:
<blockquote class="jota-article__eye">O Censo é um dos mais importantes instrumentos para que os Entes Públicos possam intervir direta ou indireta nos domínios econômico e social.</blockquote>
Os dados do estudo subsidiam os agentes públicos para que adotem melhores decisões, construindo as bases para maior eficiência na implementação de serviços públicos e na regulação econômica/social das atividades privadas<a href="#_edn1" name="_ednref1">[1]</a>. Amparam também os agentes privados, na medida em que fornecem parâmetros para alocação de investimentos, avaliação de riscos e descobertas de interesses da sociedade.
Sob esse ângulo, o Censo é meio para concretização do art. 174 da Constituição que determina que “como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”, o dispositivo continua em seu parágrafo 1º e afirma que “a lei estabelecerá as diretrizes e bases do planejamento do desenvolvimento nacional equilibrado, o qual incorporará e compatibilizará os planos nacionais e regionais de desenvolvimento”.
A ordem econômica presente na Constituição Federal é permeada por conteúdo sócio-ideológico permitindo que os intérpretes vislumbrem no mesmo texto fundamentos tanto para a maior ou menor intervenção do Estado no seio social e econômico.
Ao nosso aviso, o caminho intermediário é o adequado. Os Constituintes escolheram adotar um texto aberto<a href="#_edn2" name="_ednref2">[2]</a>, permitindo que deste capítulo, em especial o art. 170, a legislação ordinária tivesse maior liberdade para definir os caminhos do Estado.
As maiorias ocasionais podem decidir esses caminhos na prestação de serviços públicos ou na regulação econômica das atividades privadas. Trata-se de questão política, que pode encontrar parâmetros no Direito, mas não deve ser cristalizada por ele.
Em uma metáfora, a Constituição serviria como sinalização de trânsito, apresentando, ao mesmo tempo guias (indicativos de onde e como chegar) e limites (indicativos do que não fazer) à atividade legislativa.
Contudo, com fundamento no Direito vigente, entre os guias impostos pelo direito constitucional estão justamente os deveres de planejamento e eficiência, inseridos no art. 37 da Carta e no já citado art. 174, também constante do art. 187 (planejamento da política agrícola), art. 193 (planejamento das políticas sociais), dentre outros que deixam claro este dever na construção das políticas públicas.
Outro guia para atuação dos agentes públicos é o art. 219 da Carta, cuja redação indica que “o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do país, nos termos de lei federal”.
É interessante ponderar sobre a contradição manifesta pela Administração Federal, que foi sumamente feliz ao editar o art. 5º Lei de Liberdade Econômica, segundo o qual, as propostas de edição e de alteração de atos normativos de interesse geral de agentes econômicos ou de usuários dos serviços prestados, serão precedidas da realização de análise de impacto regulatório, que conterá informações e dados sobre os possíveis efeitos do ato normativo para verificar a razoabilidade do seu impacto econômico, mas, de outro lado, trata como dispensável o estudo mais amplo sobre a sociedade e economia nacionais, de outro, pretende alegar que terá eficiência na construção de políticas setoriais.
O modelo de intervenção do Estado na economia e na ordem social passa por um debate aberto para esfera política, porém, o planejamento eficiente, subsidiado em dados de qualidade está fora dessa discussão, não é, portanto, uma escolha orçamentária.
Situações excepcionais – como aquela que se verificou no ano de 2020 em razão da pandemia de Sars-Cov-2 – justificam o excepcional adiamento do Estudo. Contudo, o ônus argumentativo para justificar a não realização do Censo deve estar todo em desfavor da União, não bastando, para atender a esse ônus, mera alegação de dificuldades orçamentárias.
Conforme consta do próprio site do <a href="https://censo2021.ibge.gov.br/sobre/conhecendo-o-brasil.html" target="_blank" rel="noopener noreferrer">IBGE</a>: “O Censo Demográfico produz informações atualizadas e precisas, que são fundamentais para o desenvolvimento e implementação de políticas públicas e para a realização de investimentos, tanto do governo quanto da iniciativa privada. Além disso, uma sociedade que conhece a si mesma pode executar, com eficácia, ações imediatas e planejar com segurança o seu futuro”.
A descrição da autarquia é quase perfeita. Somente adicionaríamos que o planejamento via dados fundados na pesquisa realizada pelo Censo não é escolha. Trata-se de determinação constitucional.
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<hr />
<a href="#_ednref1" name="_edn1">[1]</a> So what does regulation mean? We return to the starting point—the intuitive understanding of the word “regulation”: government intervention in the private domain or a legal rule that implements such intervention. Barak Orbach. What Is Regulation? Professor of Law, University of Arizona College of Law. www.orbach.org. This essay is part of a large project on regulation that includes several papers and a casebook, REGULATION: WHY AND HOW THE STATE REGULATES (Foundation Press, 2012).
<a href="#_ednref2" name="_edn2">[2]</a> Nelson Jobim, ao tratar sobre a ambiguidade ou abertura interpretativa de partes do texto constitucional afirmou: “o dr. Ulysses olhava aquele negócio e perguntava: “Escuta, quantos votos esse artigo redigido dessa forma tem?” Aí eu respondia: “Isso aí tem cem votos, ninguém vai votar desse jeito que está...” Então eles pediam que eu introduzisse ambuiguidades. Eu ia tornando o texto mais ambíguo até conseguir o voto da maioria. Era um negócio genial".  [...]
"O jogo era esse. Tu tinha que trabalhar com ambiguidades. Quando não se conseguia o acordo, e não tinha solução num texto ambíguo, eu usava a técnica de jogar para a lei complementar ou lei ordinária." Luiz Maklouf Carvalho. 1988: Segredos da Constituinte. Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

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O Censo, o dever de planejamento e as escolhas orçamentárias

Porque nem tudo é política