Paulo Fernando Pinheiro Machado

<blockquote class="jota-article__quote">“Ao longo da história, tem sido a inércia daqueles que deveriam ter agido; a indiferença daqueles que deveriam ter antecipado; o silencio da voz da justiça quando ela era mais necessária; isso é o que tem tornado possível o triunfo do mal”.
- Haile Selassie.</blockquote>
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Nem somente de festividades são feitas as efemérides. Algumas servem para nos trazer à tona memórias que gostaríamos de esquecer, mas que a prudência reclama que sejam lembradas, para que o erro não se repita e a desgraça seja evitada. Lest we forget – Lest we forget!
O Embaixador José Antônio de Macedo Soares chamou-me à atenção para o fato de que na próxima quarta-feira, dia 30 de junho, serão completados 85 anos da primeira vez em que um Chefe de Estado se dirigiu pessoalmente ao plenário da Liga das Nações. Em 1936, o Imperador da Etiópia, Haile Selassie, fez um apelo à Liga para que ajudasse seu país, invadido pela Itália de Mussolini no ano anterior. “Um dos momentos mais tristes das relações internacionais”, como bem remarca o Embaixador Macedo Soares.
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Membro da Casa de Salomão, Selassie foi um grande modernizador. Introduziu a primeira constituição escrita bem como a abolição da escravidão em seu país. Reinava, contudo, no auge do imperialismo europeu e a Etiópia, então também conhecida como Abissínia, era foco da cobiça imperial italiana. O Tratado Ítalo-Etíope de 1928 estabelecia as fronteiras entre a Etiópia e a Somália Italiana, junto das quais a Itália construiu um forte, em 1930, no oásis de WalWal. Selassie conduzia uma diplomacia hábil, de uma elegância e ênfase no direito internacional ímpares. Em setembro de 1934, selou com Mussolini um pacto de não-agressão, pelo qual os dois países renunciavam à guerra para resolver suas disputas. Mussolini, por outro lado, conduzia uma diplomacia de arranjos secretos na Europa e nas Américas, com vistas a garantir uma eventual neutralidade benéfica em relação a seus planos agressivos.
Poucas semanas depois, em novembro de 1934, uma série de atritos entre os dois países começaram a ocorrer no forte de WalWal, que se escalaram para um confronto armado em dezembro. Selassie solicitou à Liga das Nações, então, que instaurasse um tribunal arbitral para apurar a questão de WalWal. O pedido de arbitragem se arrastava, ao passo em que Mussolini selava o pacto Franco-Italiano, em janeiro de 1935, o que lhe dava carta branca para mobilizar tropas para a região. Em junho, a Inglaterra impôs um embargo à venda de armas para os dois estados contendores, o que era claramente benéfico para a parte mais forte, no caso Mussolini. O exército etíope estava já em frangalhos. Em 3 de outubro de 1935, a Itália, então, invadiu a Etiópia, sem sequer apresentar uma declaração formal de guerra, iniciando a chamada “Segunda Guerra Ítalo-Abissínia”.
A campanha de Mussolini foi brutal, vitimizando inclusive os filhos do Imperador. Populações civis, mulheres e crianças, foram brutalmente assassinadas pelo uso indiscriminado de armas químicas, incluindo sprays de veneno e gás mostarda. A Etiópia foi arrasada e seu meio-ambiente envenenado. Houve mesmo tempo para espetáculos de vilania diplomática das potências dominantes, como o pacto Hoare-Laval, pelo qual, em dezembro de 1935, os ministros das relações exteriores do Reino Unido e da França negociavam a integridade territorial da Etiópia diretamente com o próprio Mussolini. O intento veio a público, forçando a demissão dos ministros europeus e manchando indelevelmente a credibilidade da Liga das Nações. Como consequência, Mussolini selou, então, um pacto com Adolf Hitler, com as consequências funestas para a humanidade, que todos conhecem. Já em março de 1936, Hitler invadiu a Renânia, rasgando o Tratado de Versalhes e iniciando sua marcha pelo continente europeu. Selassie, assim, foi forçado a se exilar em 2 maio, e, em 5 maio, a Itália conquistava a capital da Etiópia, Adis Abeba.
<blockquote class="jota-article__eye">Foi nesse contexto, então, que o Imperador da Etiópia se dirigiu ao plenário da Liga das Nações, em 30 de junho de 1936, para implorar pelo socorro da sociedade internacional para o seu país.</blockquote>
Em um discurso primoroso, Selassie denunciou os crimes contra humanidade cometidos pelo regime fascista de Mussolini na Etiópia e fez uma profissão de fé no direito internacional: “é a segurança coletiva: é a própria existência da Liga das Nações. É a confiança que cada Estado deve depositar nos tratados internacionais”. “Deus e a história vão se lembrar do seu julgamento”, profetizou. O apelo não surtiu efeito imediato. A Liga das Nações, flagrada em sua nudez escancarada, decidiu impor nada além de sanções brandas e ineficazes à Itália, o que muito contribuiu para o seu descrédito e desmantelamento final.
A “Crise da Abissínia” é um episódio muito debatido em círculos de especialistas em diplomacia e direito internacional, que buscam auferir a dimensão real do seu significado mais profundo. Representaria ela um exemplo de que o direito internacional não é realmente um direito, mas apenas um conjunto de regras morais? Ou que o verdadeiro direito se confunde com o poder nu e cru - might is right? O próprio Selassie, em seu discurso, enfrentou o ponto ao declarar: “é a moralidade internacional que está em jogo. As assinaturas a um tratado teriam validade apenas na medida em que as potências signatárias tenham um interesse pessoal, direto e imediato envolvido?”
A resposta a essa pergunta tem de necessariamente ser “não”. O direito internacional tem um valor em si, na medida mesma em que ele representa a transmutação do princípio de ordem que rege o cosmos para as relações entre coletividades soberanas. Se o poder se confunde com o direito, o poder teria a capacidade, então, de alterar o princípio de identidade. Poderia, em suma, fazer dois mais dois somar cinco. Muitos tiranos ao longo da história tentaram se voltar contra o princípio de ordem. Todos falharam. Aí, talvez, resida a força inexorável do direito internacional. Como retas paralelas, no longo prazo, direito e justiça se confundem no infinito.
Era essa questão, justamente, a que levou o fundador do direito internacional moderno, Hugo Grotius, a desenvolver a principal parte da sua obra. Grotius foi Embaixador da Suécia, então uma das superpotências da época, junto à corte do Rei Luís XIV, na França, onde era iminente a influência do Cardeal Richelieu, um dos maiores gênios diplomáticos da história. Grotius foi Embaixador na França por um longo período, de 1634 até 1645, ano da sua morte. Na França, Grotius estabeleceu uma relação intelectual de embate com Richelieu, que o chocara quando lhe afirmara que “o mais fraco está sempre errado em negócios de estado”. Grotius então passou o resto da sua vida tentando refutar o ceticismo de Richelieu. Pouco antes de morrer, Grotius se lamentava dizendo: “por ter tentado fazer muitas coisas, não consegui realizar nada”. Não. Grotius fundou o direito internacional moderno e refutou, por fim, Richelieu. Apenas levou mais tempo do que ele esperava. Alguns séculos.
Quando eu era aluno no Instituto Rio Branco, o Embaixador Fernando Guimarães Reis insistia que o tempo da diplomacia se regia por leis distintas das do tempo comum. Ao passo em que a ação do político, por exemplo, se rege pelo tempo imediato – o da próxima eleição, o tempo do diplomata se arrasta pelos séculos, e a avaliação quanto ao sucesso ou não da sua estratégia é deixada, sempre, para as gerações mais distantes. O leitor ideal da comunicação diplomática é, invariavelmente, o “historiador do futuro.” Assim o é, também, ao que parece, o tempo do jurista, que procura, no presente, ajustar as paralelas do direito e da justiça, que somente podem se cruzar no infinito.
Haile Selassie entrou para história como um símbolo da resistência antifascista. Ao final da Segunda Guerra, o Imperador pode retornar para o seu país, comprovando que o poder dos tiranos é sempre transitório – sic transit gloria mundi. Ironias da história, Selassie reentrou em Adis Abeba exatos cinco anos após o seu exílio, em 5 maio de 1941, quando proferiu as seguintes e imortais palavras de magnanimidade:
“Hoje é o dia em que derrotamos nosso inimigo. Portanto, quando dizemos que nos alegremos em nossos corações, não deixem que nosso regozijo seja de nenhuma outra forma, senão no Espírito de Cristo. Não retribuam o mal com o mal. Não se deixem levar pelas atrocidades que o inimigo tem praticado de sua maneira usual, até o fim.”
Neste dia 30 de junho, cara leitora, lembre-se das falhas do Imperador, das falhas de Hugo Grotius e das falhas da Liga das Nações. Lembre-se, em suma, de todas as vilanias e omissões que permitiram a aparente vitória momentânea do mal e de todas as atrocidades que o “silêncio da justiça” permitiu que fossem impingidas à humanidade no século XX. Mas não se esqueça: o poder sem a justiça é sempre efêmero. Lest we forget – Lest we forget!
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JOTA

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