Marcio Cunha Filho

Em 14 de setembro de 2021, a Controladoria-Geral da União (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cgu">CGU</a>) determinou que o processo disciplinar movido e já encerrado contra o então general da ativa Eduardo Pazuello deveria ser mantido sob segredo eterno.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> A revisão de ofício dessa decisão por parte da CGU em 17/02/2023<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> deve ser celebrada não apenas como uma vitória da transparência, mas como uma reconquista de um espaço de tomada de decisões que sob Bolsonaro fora capturado por meio de bricolagens jurídicas que instrumentalizavam a legislação para promover o segredo, ocultar potenciais atos ilícitos e promover agendas de natureza política, sob o atropelo de normas e padrões jurídicos estabelecidos.
Nesse texto, meu objetivo principal é destrinchar a decisão adotada pela CGU em 2021, colocando em evidência a sua falta de coerência jurídica e apontando-a como um exemplo de interpretação jurídica autoritária que objetivou distorcer os sentidos e objetivos do regime de transparência pública sem alterar a literalidade das normas. A decisão de 2021 pode ser vista, assim, como um exemplo de uma espécie de “mutação jurídica autoritária”, ou uma distorção do Direito para fins de proteger interesses escusos.
Em 2021, quando recebido o recurso que solicitava acesso à integra do referido processo administrativo, a CGU adotou o procedimento padrão destinado a resolver lides relacionadas ao acesso a informações públicas. Distribuiu o processo a uma servidora pública efetiva, que analisou, instruiu e elaborou parecer sobre o tema. A posição técnica da analista, neste caso, foi muito clara: de acordo com as decisões e as interpretações consolidadas pela CGU ao longo de anos, um processo administrativo disciplinar é, depois de concluído, um documento público.
Citando diversos precedentes da própria CGU, a analista chegou à conclusão de que “assiste razão ao recorrente de que a CGU tem entendido em diversos precedentes, especialmente, naqueles pedidos que envolvem procedimentos disciplinares em desfavor de servidores civis regidos pelo Lei 8.112/1990, que as informações decorrentes de processos administrativos finalizados, inclusive os investigatórios, são públicas, ou seja, qualquer particular, independentemente de ser parte interessada ou não, tem o direito ao acesso”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
A questão sobre a publicidade de PADs já concluídos era tão pacificada que a CGU já havia consolidado entendimento por meio de um enunciado geral, o Enunciado CGU 14 de 2016, segundo o qual "os procedimentos disciplinares têm acesso restrito para terceiros até o julgamento, nos termos do art. 7º, parágrafo 3º, da Lei 12.527/2011, regulamentado pelo art. 20, caput, do Decreto 7.724/2012, sem prejuízo das demais hipóteses legais sobre informações sigilosas". Assim, do ponto de vista jurídico, a discussão acerca do caso Pazuello era simples, até mesmo fácil de ser solucionada.
Este parecer foi elaborado pela área técnica da CGU. Ou seja, foi escrito por uma servidora que não possuía cargo em comissão, ou seja, que não possuía um compromisso com visões de governo, mas sim com visões institucionais de longo prazo da CGU. Seu argumento possuía respaldo legal/jurisprudencial (o fundamento das decisões da CGU sempre foi a Súmula vinculante 14 do STF), bem como respaldo institucional, uma vez que se baseava em um entendimento construído a longo prazo pela CGU.
Contudo, quando levado às autoridades superiores, autoridades essas indicadas pelo governo Bolsonaro e que, portanto, possuíam com ele ao menos um mínimo de alinhamento e compromisso ideológico, o parecer técnico foi rejeitado. E o que chama atenção são os argumentos não apenas questionáveis mas claramente esdrúxulos utilizados para rejeitar a decisão institucional pacificada e construída pela CGU ao longo dos anos.
O então ouvidor-geral da União (cargo de nível de secretário e que possuía, portanto, um forte alinhamento político-ideológico com o governo) argumentou que o pedido deveria ser negado com fundamento no §8º do art. 34 do Decreto 4.346/2002, interpretado em conjunto com o art. 142 da Constituição Federal. O ouvidor-geral afirmou que “considerando tratar-se de procedimento interno de competência do Comando do Exército, com base em seu Regulamento Disciplinar (...), entendo que se a decisão foi publicada em boletim reservado, não é possível conceder acesso integral aos documentos que fundamentaram essa decisão, visto que a avaliação quanto às circunstâncias e a natureza da transgressão apurada é de responsabilidade do Comando do Exército”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Elenco aqui três pontos que evidenciam o caráter não apenas ilegal e inconstitucional da decisão, mas que também apontam para um possível dolo em negar acesso a um documento de natureza incontestavelmente pública, o que pode inclusive ensejar a responsabilização dos agentes políticos encarregados de tomar essas decisões durante o governo Bolsonaro – notadamente, o então ouvidor-geral da União e o seu ouvidor-adjunto, ambos dotados de competência para tomar essas decisões em grau definitivo.
Em primeiro lugar, a Lei de Acesso à Informação (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/lai">LAI</a>) é muito clara ao afirmar que apenas outras leis (ou atos jurídicos de mesma hierarquia ou de hierarquia superior) podem servir de justificativa para excepcionalizarem a aplicação do direito fundamental de acesso à informação. Veja-se o que diz o art. 22 da LAI:
<blockquote class="jota-article__citation">“Art. 22. O disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça (...)".</blockquote>
É por isso que informações como sigilo bancário e sigilo fiscal são legitimamente secretas: porque estão previstos em lei. A previsão legal do art. 22 legitima segredos acerca dos quais houve uma ampla discussão parlamentar prévia e que passaram, portanto, pelo crivo popular. Apenas uma lei ou ato normativo superior podem instituir um segredo, sendo que um mero decreto não pode restringir o alcance de um direito fundamental, como é o direito de acesso à informação. E, relembrando, a fundamentação jurídica principal encontrada pelas autoridades políticas da CGU para impor sigilo sob esse processo foi um decreto, mais especificamente o art. 34 do Decreto 4.346/2002
O segundo ponto que indica o caráter antijurídico da decisão adotada pela CGU em 2021 foi a própria interpretação do referido decreto. Além de permitir que um simples decreto imponha um segredo, os decisores da CGU distorceram o que dizia o referido dispositivo infralegal, que em nenhum momento impõe ou ao menos sugere a imposição do segredo. O fato é que o dispositivo infralegal citado de forma alguma serviria para justificar o segredo do PAD movido contra Pazuello.
Veja-se a literalidade do referido dispositivo: “Caso, durante o processo de apuração da transgressão disciplinar, venham a ser constatadas causas de exclusão ou de justificação, tal fato deverá ser registrado no respectivo formulário de apuração de transgressão disciplinar e publicado em boletim interno”. Ou seja, mesmo que aceitássemos que um decreto pode impor sigilos (o que, repita-se, não é o caso), o fato é que esse dispositivo, por si só, não impõe sigilo algum: ele simplesmente afirma que dados sobre apuração da transgressão disciplinar devem ser publicados em boletim interno.
A afirmação realizada pelo então ouvidor-geral da União foi a de que, como o decreto afirma que a transgressão disciplinar militar deve ser publicada em boletim interno, isso significa que está dispensada do regime de publicidade da Lei de Acesso à Informação. Há aqui um salto interpretativo gigantesco: da afirmação “a transgressão disciplinar deve ser publicada em boletim interno” a CGU concluiu que o procedimento disciplinar contra o general Pazuello goza de sigilo eterno. E aqui enfatizo um ponto trazido no início do texto: ainda que a mídia tenha repetidamente referido-se ao caso Pazuello como um caso em que impôs-se sigilo de 100 anos, na verdade o sigilo imposto pela decisão da CGU de 2021 era um sigilo eterno, pois não há prazo legal para o encerramento de sigilos previstos em lei.
O terceiro fator que torna inaceitável a decisão adotada pela CGU em 2021 foi o fato de ter se baseado, além do referido decreto, também no art. 142 da Constituição Federal. Esse artigo, que discorre sobre o princípio da hierarquia militar e que serve de fundamento para juristas autoritários afirmarem que as Forças Armadas são uma espécie de “poder moderador” da República,<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> foi repetidas vezes utilizado por ativistas de extrema direita e pelo próprio ex-presidente Bolsonaro para afirmar e justificar uma intervenção militar em caso de crise no sistema político.
Ou seja, a invocação desse artigo para justificar o segredo deve ser compreendida em um contexto maior de posicionamento das Forças Armadas como uma parte da estrutura estatal que está acima da estrutura civil e é isenta das leis que se aplicam de maneira igualitária aos demais agentes públicos e aos demais cidadãos. É uma decisão que fundamenta, legitima e replica a ideia de que há uma superioridade no militarismo, em claro desprivilegio às construções mais alinhadas a um Estado democrático, que prevê a aplicação de regras igualitárias a todos. De uma forma bastante confusa e desconexa, a decisão da CGU afirmou que por causa do princípio da hierarquia militar, o segredo seria permitido, em um raciocínio não apenas desprovido de coerência ou lógica jurídica, mas também imbuído de premissas autoritárias e militaristas.
Como é reconhecido pela doutrina e especialmente por historiadores do Direito, uma das formas de exercício do poder autoritário é a reinterpretação de leis para fins exclusivamente de promover as agendas políticas de líderes autoritários. Existem diferentes formas jurídicas de justificar práticas ditatoriais, mas elas são sempre marcadas por se mostrarem arbitrárias; o arbítrio na verdade é o que marca o autoritarismo e a ausência de limites ao exercício do poder político.  O legalismo autoritário nada mais é do que um projeto de alterar o Direito sem necessariamente alterar as leis
A revisão de ofício dessa decisão, adotada pela CGU no último dia 17, merece ser aplaudida. É uma decisão que contribui para reposicionar a publicidade como regra e o sigilo como exceção de atos públicos, e que é fruto de um grande esforço por parte da Controladoria em elaborar, dentro do primeiro mês de governo, um novo parecer referencial<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> e novos enunciados gerais sobre interpretações da LAI,<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a> que são por sua vez fruto de uma estratégia maior destinada a recuperar um Estado transparente.
A CGU deve seguir avançando em sua missão institucional de combater o segredo. Ainda que a pauta principal seja avançar a transparência, não se pode esquecer igualmente da necessidade de investigar a responsabilização dos agentes políticos que distorceram a lei com o aparente intuito de proteger altas autoridades do governo anterior; afinal, a responsabilização também é parte do processo de avanço institucional, e não é possível cogitar a efetividade de uma lei sem que haja sancionamentos em caso de descumprimento flagrante.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Diversos veículos midiáticos apontaram, inclusive recentemente, que a decisão então tomada impusera sigilo de 100 anos ao referido processo. Como demonstrarei ao longo do texto, na verdade a decisão da CGU de 2021 impôs sigilo eterno ao referido processo.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Decisão CGU 97/2023/CGRAI/OGU/CGU, processo 60143.002645/2021-17
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Recurso de acesso à informação 60143.002645/2021-17, disponível em <a href="http://buscaprecedentes.cgu.gov.br/busca/dados/Precedente/60143002645202117_CGU.pdf#search=60143%2E002645%2F2021%2D17">http://buscaprecedentes.cgu.gov.br/busca/dados/Precedente/60143002645202117_CGU.pdf#search=60143%2E002645%2F2021%2D17</a>
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> <a href="http://buscaprecedentes.cgu.gov.br/busca/dados/Precedente/60143002645202117_CGU.pdf#search=60143%2E002645%2F2021%2D17">http://buscaprecedentes.cgu.gov.br/busca/dados/Precedente/60143002645202117_CGU.pdf#search=60143%2E002645%2F2021%2D17</a>
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Veja-se nesse sentido a interpretação de Ives Gandra Martins sobre o referido dispositivo, em MARTINS, I. G., Minha Interpretação sobre o art. 142 da Constituição. Conjur, 27 de agosto de 2021.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> <a href="https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/cgu-conclui-revisao-dos-sigilos-impostos-a-documentos-de-acesso-publico/copy_of_PARECERFINALSOBREACESSOINFORMAO_CGU_FEV2023.pdf">https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/cgu-conclui-revisao-dos-sigilos-impostos-a-documentos-de-acesso-publico/copy_of_PARECERFINALSOBREACESSOINFORMAO_CGU_FEV2023.pdf</a>
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> <a href="https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/cgu-conclui-revisao-dos-sigilos-impostos-a-documentos-de-acesso-publico/NOVOSENUNCIADOSLAICGU2_9.54.pdf">https://www.gov.br/cgu/pt-br/assuntos/noticias/2023/02/cgu-conclui-revisao-dos-sigilos-impostos-a-documentos-de-acesso-publico/NOVOSENUNCIADOSLAICGU2_9.54.pdf</a>

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JOTA

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