Felipe Fernandes Reis

O mercado de gás natural vem sendo alvo de reiteradas tentativas para se promover/permitir a concorrência, investimentos, novos players e eficiências aos consumidores do setor. Da mesma forma, encara o risco do ardil da verticalização, conceito que destoa da tendência de um mercado livre e competitivo disposto em lei.
Após anos de amadurecimento dos debates e estudos, foi lançado em 2019, com a participação de órgãos governamentais e de Estado, o programa Novo Mercado de Gás, que partiu de um diagnóstico preciso acerca dos problemas concorrenciais do setor e das medidas necessárias para solucioná-los, resultando na adoção de medidas legais<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e infralegais<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Entre as premissas e diretrizes para abertura do setor, pode-se destacar o consenso acerca:
<ol>
<li>da independência e desverticalização dos elos monopolistas: transporte e distribuição via dutos;</li>
<li>da integração entre os diversos elos e das medidas concorrenciais em cada um desses (interdependência da cadeia do setor);</li>
<li>da desconcentração da oferta e demanda, reduzindo barreiras para entrada de novos agentes na comercialização aos potenciais consumidores livres e às distribuidoras;</li>
<li>da integração entre as diversas áreas de transportes, desvinculando a comercialização da molécula de sua movimentação física, de modo a desenvolver um mercado líquido e eficiente, e evitar a formação de monopólios regionais;</li>
<li>da necessidade de boas práticas regulatórias dos estados federados, de forma que possam concorrer entre si, bem como entre as distribuidoras, para atração de investimentos privados, a partir da modernização da regulação e eficiência do serviço local de gás canalizado.</li>
</ol>
Parte considerável dessas diretrizes está condicionada à desverticalização do elo de distribuição, ou seja, desvincular a atuação da distribuidora – enquanto detentora da rede de distribuição de gás canalizado (prestadora de serviço público e monopolista) – da comercialização – compra e venda da molécula de gás (dentro de um ambiente competitivo).
Por essa razão, foi estabelecido no Termo de Compromisso de Cessação (TCC) firmado entre o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade</a>) e a Petrobras que a estatal alienaria a sua participação nas distribuidoras, direta ou indiretamente (via controle da holding Gaspetro<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>) e que o comprador fosse independente, de modo que não tenha “relação com os agentes que compõem os demais elos da cadeia de gás natural, não possuindo, direta ou indiretamente, participação societária destes agentes”.
Os objetivos são bastantes claros, assim como a redação do TCC e seus fundamentos. Se o controle da Gaspetro e das suas distribuidoras for exercido por agente que também atua na oferta de gás, esse terá condições e incentivos para prejudicar a concorrência na oferta às distribuidoras e aos consumidores livres, por exemplo. Além da capacidade para ampliar seus ganhos do elo de distribuição para o da comercialização, em prejuízo à concorrência e aos consumidores.
Por essas razões, a <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/anp">ANP</a> e o Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás (CMGN), bem como consumidores, produtores e transportadoras, se manifestaram junto ao Cade contrários à alienação da Gaspetro à Compass Gás &amp; Energia S.A., do grupo Cosan.
Isso porque a Compass tem, por modelo de negócio, a verticalização de diversos segmentos da cadeia de gás natural. Em especial, a partir do elo de distribuição, de maneira a ampliar sua atuação para os segmentos competitivos, como é o caso da comercialização. Desse modo, as preocupações mencionadas tendem a ser concretizadas caso a operação seja aprovada.
Se adquirir a Gaspetro, a Compass poderá ampliar a prática de self-dealing, de forma que os ofertantes (produtores, importadores e comercializadores) não conseguirão concorrer para atender a demanda das distribuidoras do grupo. Além disso, a Compass poderá criar dificuldades, através de sua participação nas distribuidoras, para seus concorrentes (ofertantes) também acessarem os potenciais consumidores livres, enquanto utiliza dessa posição para favorecer seu braço de comercialização junto a esses consumidores.
Os efeitos dessas práticas são prejudiciais à concorrência e aos consumidores, gerando a redução da competitividade e do volume na oferta de gás, bem como da diversidade de agentes, os quais, com riscos de sofrerem práticas restritivas, tendem a não incorrerem nos elevados e afundados custos e investimentos para produzirem ou importarem gás e ingressarem no mercado, reduzindo a liquidez e competitividade esperada no Novo Mercado de Gás.
A concorrência pela demanda das distribuidoras, com a entrada de novos ofertantes, resultou em propostas mais eficientes de fornecimento, em benefício aos consumidores, com prazos inferiores, mais flexibilidades e custos menores daquele praticado pela Petrobras.
Por outro lado, o self-dealing praticado pela Compass tende a prejudicar ainda mais os consumidores de gás. Caso seja aplicado o modelo celebrado entre a Compass e a Comgás em São Paulo, os consumidores das distribuidoras da Gaspetro podem incorrer no aumento de custos da ordem de 5% daqueles cobrados pela Petrobras, enquanto são privados da oferta de outros agentes que poderiam representar redução média de 23% do praticado pela empresa em São Paulo. Além disso, o contrato da Compass com a Comgás tem prazo de dez anos, bem superior aos dos demais ofertantes, e conta com cláusulas que restringem a flexibilidade dos agentes, como take or pay da ordem de 80%.
Ou seja, a alienação da Gaspetro à Compass, ao invés de gerar concorrência, está aumentando a concentração. Ao contrário de desverticalizar o elo de distribuição, está ampliando as distribuidoras sob controle de agente verticalizado e, dessa forma, está longe de beneficiar os consumidores e a concorrência. A operação vai fechar mercado, aumentar barreiras à entrada e encarecer o custo do gás aos consumidores, prejudicando ainda mais a competitividade da indústria e o potencial do gás natural como importante fonte da transição energética. Motivos que deixam em alerta os consumidores, transportadoras, produtores, a ANP e o Comitê de Monitoramento da Abertura do Mercado de Gás Natural. Resta ao Cade, principal autoridade de defesa da concorrência, proteger as iniciativas do Novo Mercado de Gás.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Lei 14.134/2021, disponível em: <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.134-de-8-de-abril-de-2021-312904769">https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.134-de-8-de-abril-de-2021-312904769</a> e seu Decreto Regulamentador n. 10.712/2021, acessível em: <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.712-de-2-de-junho-de-2021-323832363">https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.712-de-2-de-junho-de-2021-323832363</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Entre as medidas infralegais, pode-se destacar o: Termo de Compromisso de Cessação de Conduta (TCC) celebrado entre o Cade e a Petrobras; Resoluções do CNPE n. 16/2019 e 03/2022; E o Manual Orientativo de Boas Práticas Regulatórias do Comitê de Monitoramento da Abertura do Novo Mercado de Gás, acessível em: <a href="https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/novo-mercado-de-gas/cmgn/publicacoes/manual-de-boas-praticas-regulatorias_final.pdf">https://www.gov.br/mme/pt-br/assuntos/secretarias/petroleo-gas-natural-e-biocombustiveis/novo-mercado-de-gas/cmgn/publicacoes/manual-de-boas-praticas-regulatorias_final.pdf</a>
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Aliás, a Gaspetro guarda particularidades que aumentam preocupações e reforçam a necessidade do seu controle, e, por consequência, de suas distribuidoras, seja detido por agente independente, em especial em razão de sua capilaridade, prerrogativas e concentração de mercado, detendo participações e influência em quase totalidade das distribuidoras estaduais, representando aproximadamente 40% do volume destinado para distribuição.

gás natural

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JOTA

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