Fabrício Sarmanho de Albuquerque

Um dos assuntos mais comentados no meio jurídico tem sido, sem dúvida, a decisão do Supremo Tribunal Federal de - contrariando uma técnica já absorvida pelo nosso sistema tributário há décadas - declarar a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de Cálculo do PIS/COFINS. A causa é capaz de gerar um rombo nas contas públicas nunca visto, além de estimular a multiplicação de “causas filhotes” decorrentes da alteração da técnica de tributação.
A Suprema Corte, mesmo provocada pela PGFN, deixou de analisar o pedido de modulação de efeitos, postergando tal apreciação para o caso de eventual oposição de embargos de declaração. 
A incerteza sobre a modulação dos efeitos não gera desconforto apenas para o Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão no seu malabarismo para equilibrar as contas públicas. Talvez um problema maior seja encontrado no âmbito do CARF, obrigado a seguir as decisões do STF tomadas em processos com repercussão geral reconhecida, nos termos do art. 62, § 2º, do RICARF.
A situação é agravada pelo novo sistema processual que retirou a necessidade de publicação da íntegra do acórdão para que as decisões tomadas em julgamento com repercussão geral passem a produzir efeitos (art. 1.035, § 11, do NCPC). Ou seja, com a publicação da ata do julgamento proferido no RE 574.706, que ocorreu em 20/03/2017, já precedente vinculante para as demais instâncias judiciais.
Há um gap processual gerado pelo novo Código. Um momento em que o acórdão já é impositivo, mas ainda não se mostra “embargável” pela Fazenda Nacional. Como o CARF não possui mais a previsão regimental para sobrestamento dos julgamentos, nem mesmo esse mecanismo poderia ser invocado para que se aguarde a decisão do STF sobre a modulação. 
O que temos para hoje é o seguinte: uma decisão válida e eficaz do STF, com prazo para embargos sequer iniciados, e sem qualquer decisão sobre modulação. A confusão não termina por aí, já que no CARF encontramos mais agravantes: 
Em primeiro lugar, uma eventual decisão de Turma Ordinária favorável ao contribuinte não admitiria a interposição de recurso especial para a Câmara Superior de Recursos Fiscais, já que precedentes do CARF contrários a decisões do STF em repercussão geral não podem, segundo o art. 67 do RICARF, servir de paradigma para amparar o conhecimento dos recursos.
Em segundo lugar, ainda que o STF venha a futuramente modular os efeitos, a coisa julgada administrativa eventualmente formada no CARF não poderia mais ser contestada, já que a PGFN é proibida, em regra, de recorrer de decisões do CARF favoráveis ao contribuinte.
A recusa do STF em tratar da modulação dos efeitos gera, a cada minuto, um grande prejuízo aos cofres públicos. Seja por retardar a devolução de indébitos, aumentando o volume dos encargos a serem pagos pelo Estado; seja por motivar o ingresso imediato de milhares e milhares de pedidos administrativos de ressarcimento, bem como de ações judiciais. Como resolver a questão? É o que tentaremos demonstrar. 
O Controle de Constitucionalidade brasileiro enquanto weak-form judicial review
Os sistemas judiciais de controle de constitucionalidade podem ser classificados como strong-form judicial review - em que o Judiciário dá a última palavra - e em weak-form judicial review - nos quais há um diálogo entre as forças políticas na interpretação constitucional. Este último poderia levar ao extremo do chamado departamentalism, que influenciou o constitucionalismo norte-americano nos primeiros anos de sua experiência constitucional[1].  
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Tudo leva a crer que o sistema brasileiro tem caminhado para se estruturar dentro do que se denomina weak-form judicial review, tal como nos sistemas do Canadá e da Nova Zelândia. Diversos embates entre Judiciário e Legislativo demonstram tal conclusão. Podemos relembrar o caso Mensalão, no qual o STF determinou a imediata perda de cargos dos parlamentares envolvidos, mas prevaleceu a interpretação do Congresso, exigindo uma votação por maioria. Outro exemplo, ainda mais recente, diz respeito à perda do cargo do então Presidente do Senado Federal Renan Calheiros, que se recusou a cumprir medida liminar monocraticamente proferida pela Corte. 
Qual a razão desse crescente movimento de contestação do monopólio Judicial para a interpretação constitucional?  No plano político, poderíamos apontar diversos motivos: indicações puramente políticas, morosidade da Corte, demasiada influência política nas decisões, falta de coerência jurisprudencial da Corte, dentre outros. No plano teórico, a absorção da noção de uma sociedade aberta de intérpretes, tal como preconizada por Peter Härbele, justificaria o abandono da noção exclusivista de interpretação por parte da Suprema Corte. 
Outro fator a se considerar é o chamado efeito backlash, uma reação dos demais Poderes aos precedentes do STF. No caso de decisões da Suprema Corte que contrariam o senso comum, como a decisão de reverter um dos pilares do sistema tributário brasileiro, pode surgir um efeito colateral no legislativo, gerando leis que contestam o posicionamento contramajoritário do Judiciário.
Verificamos a ocorrência frequente do chamado efeito backlash no direito brasileiro. Diversas decisões do STF provocaram legislações contrárias. Vamos nos limitar a dois casos mais paradigmáticos, para não prolongar demais a presente reflexão. O primeiro diz respeito ao número de vereadores dos Municípios, que fora decidido pelo STF e revisto pela edição da Emenda Constitucional n. 58/2009. O segundo se refere à decisão do STF no caso do Município de Luís Eduardo Magalhães, revisto pelo Congresso Nacional com a edição da Emenda 57/2008, que convalidou o ato de criação dos municípios já declarados inconstitucionais, em nítida constitucionalização superveniente dos atos. 
O próprio STF possui manifestações favoráveis ao que se denomina ativismo legislativo ou congressual, tirando do STF o peso exclusivo da interpretação constitucional. Sobre o tema, convidamos o leitor a apreciar os argumentos expostos no julgamento da ADI n. 5.105/DF, Relator Ministro Luiz Fux, que abordava a cláusula de barreira dos Partidos Políticos.
Ademais, cabe destacar que não é da natureza de nosso sistema a adoção de precedentes obrigatórios. Longe estamos de um sistema de stare decisis, até mesmo porque no âmbito judicial a obrigatoriedade dos precedentes apenas surgiu com a edição do NCPC. Fosse ele ínsito ao sistema, não precisaríamos de uma positivação para que fosse obrigatório. Ausente um stare decisis nos moldes americanos, não há que se conferir um caráter sacro à interpretação judicial acerca da inconstitucionalidade das normas.
A interpretação constitucional, portanto, já deixou de ser, há muito, exclusividade do STF. Partindo dessa premissa, passamos a investigar o papel do Executivo, em especial do CARF, na interpretação constitucional.
O CARF e a interpretação constitucional
Uma reflexão se mostra aqui necessária. Seria o CARF um legítimo intérprete da Constituição? Sem dúvida alguma, a jurisdição administrativa é capaz de interpretar as normas constitucionais, ainda mais em uma sociedade aberta de intérpretes.
Retirar do Poder Executivo a capacidade de não aplicar uma norma inconstitucional representaria a possibilidade de, diante de uma antinomia, aplicar-se a norma ordinária em detrimento aos preceitos constitucionais. Em outras palavras, o poder de contestar a supremacia constitucional.
Legitimidade para o controle não falta ao CARF, já que se trata de órgão paritário, com representantes da sociedade escolhidos por meio de processo público e transparente. A existência de representantes do contribuinte garante ao CARF o respeito ao preceito do “no taxation without representation”[2], o que não se encontra no controle judicial, que conceitualmente funciona de maneira contramajoritária[3] e sem representatividade popular.
O CARF se presta a cumprir a tarefa de resolver conflitos em matéria tributária, não se limitando a reproduzir jurisprudência ou a aplicar a literalidade de dispositivos legais. Tanto o é, que julga teses que sequer foram apreciadas judicialmente. Inspirado pelo princípio da verdade real e pelos preceitos processuais do PAF e do CPC, busca a solução de litígios e a formulação de soluções que irão inspirar toda a administração tributária. 
O papel que o CARF assumiu ao longo dos anos não é o de mero instrumento administrativo criado para desafogar o Poder Judiciário. Fosse assim, não teria assumido uma estrutura tão próxima dos órgãos jurisdicionais.
 É conhecido o fato de que o CARF não pode afastar a constitucionalidade da norma, salvo quando o STF assim o decidir. A impossibilidade de julgar a inconstitucionalidade de uma norma, porém, advém de uma autorrestrição feita no art. 62 do RICARF, reproduzida na Súmula 2 do CARF. Não se trata, portanto, da falta de vocação para a interpretação constitucional.
O CARF e a modulação de efeitos
Ao modular os efeitos de uma decisão de inconstitucionalidade - conferindo efeitos ex nunc – o STF também está limitando os efeitos de seu julgamento e deixando de reconhecer uma nulidade com efeitos ab initio. Deixando de modular, o STF demonstrou que optou por reconhecer a nulidade da norma desde sua origem.
Podemos nos perguntar: diante de uma ausência de modulação dos efeitos da decisão do STF sobre a inconstitucionalidade de uma norma, poderia o CARF modular os efeitos? A resposta é certamente positiva, pois o fato de o STF não ter restringido sua declaração não impede que o CARF a faça de maneira limitada, enquanto tribunal que busca solucionar conflitos em prol de um sistema tributário funcional. Do contrário, o CARF se tornaria um mero executor de decisões judiciais.
Ofenderia a decisão do STF uma modulação feita pelo CARF, dentro desse contexto? Acreditamos que não, pois o CARF não deixaria de reconhecer a inconstitucionalidade da norma e a possibilidade criada pelo STF de afastar sua aplicação ao caso concreto. 
Além disso, cumpre lembrar que a decisão de não modular os efeitos em eventuais embargos de declaração no caso do ICMS na base de cálculo da COFINS, por exemplo, resultaria na rejeição dos embargos, sem concessão de efeitos infringentes. Ora, um acórdão de rejeição dos embargos de declaração não gera efeito integrativo em relação ao acórdão embargado, como é sabido. Dessa forma, o julgamento fixado em repercussão geral, transitado em julgado, nada terá falado sobre a modulação, apenas ficando como tese a ser seguida aquela registrada no extrato de ata publicado no Diário da Justiça em 20/03/2017.
Por honestidade intelectual, porém, teríamos que fazer o exercício inverso. Será que no caso de modulação determinada pelo STF poderia o CARF determinar o afastamento da norma, no caso concreto, com efeitos ex tunc? Nesse caso a resposta é negativa. 
Se houver modulação com aplicação de efeitos ex nunc a decisão do STF apenas retirou o elemento de validade da norma a partir daquele julgamento. Assim, o CARF não teria amparo para afastar a constitucionalidade da norma antes do julgamento, sob pena de ofender o art. 62 de seu regimento, bem como o enunciado n. 2 de sua Súmula. Para simplificar, seguindo a regra do art. 62 do RICARF, não pode o CARF afastar uma norma aonde o STF não afastou, em respeito ao princípio da presunção de constitucionalidade. 
Poder-se-ia perguntar qual a utilidade da presente construção argumentativa se o contribuinte pode judicializar a matéria após a apreciação do CARF. Precisamos, para sanar tal dúvida, fugir de visões minimalistas.
Devemos ter em mente, em primeiro lugar, que nem todo contribuinte se disporá a judicializar a questão, tendo que garantir o juízo ou provisionar os recursos, se a decisão apresentada se mostrar satisfatória em grande parte ou se a ele forem dados benefícios fiscais como os de adesão a um parcelamento. Em segundo lugar, porque o ativismo praticado pelo CARF permite que os processos administrativos não fiquem parados ad aeternum, aguardando uma definição da Suprema Corte que não se sabe quando e em que termos virá. Para muitos contribuintes é melhor receber agora um valor incontroverso do que eternizar a demanda, aguardando um posicionamento judicial. Em terceiro lugar, porque a decisão do CARF pode até mesmo inspirar os moldes da modulação a ser fixada pelo Judiciário, já que ninguém mais legítimo do que a administração tributária para fixar elementos de política tributária. Em quarto lugar, porque a conveniência e a oportunidade da modulação poderiam e deveriam ser respeitados pelo Judiciário, se entendermos que se situam no âmbito de decisões políticas conferidas àquele órgão de contencioso administrativo. Assim, poderíamos caminhar no sentido de se restringir a possibilidade de revisão, pelo Judiciário, apenas no que toca à legalidade das decisões do CARF, reconhecendo que o Conselho deveria ser soberano em questões de pura discricionariedade e de política tributária.
Conclusão
Em suma, a partir do papel assumido pelo CARF nos últimos anos, podemos concluir que nos casos em que o Supremo Tribunal Federal deixa de modular os efeitos, nada impede que o Conselho o faça, no caso concreto. A uma, porque a modulação é uma atividade de restrição dos julgados que não retira da lei a sua validade, mas, pelo contrário, reforça a presunção de constitucionalidade em um determinado período. Sendo a modulação inspirada pela segurança jurídica e pelo interesse público, representa valores constitucionais que merecem ser aplicados por todos os Poderes. A duas, porque nosso sistema de controle de constitucionalidade de nenhuma forma impõe uma exclusividade da interpretação judicial ao STF e nem mesmo impõe que os precedentes judiciais sejam obrigatórios em relação aos demais Poderes, salvo nos casos estritamente previstos constitucionalmente. A três, porque a ausência de modulação dos efeitos em embargos de declaração eventualmente rejeitados não passa a integrar o acórdão da repercussão geral, que, assim, nada disporá sobre a modulação. Haverá um vazio proposital sobre o tema.
Por outro lado, podemos concluir que a decisão do STF em modular os efeitos sempre vinculará o CARF. A uma, porque a modulação decorreria do acolhimento dos embargos, o que atrairá o efeito integrativo e passará a compor a súmula do julgamento em repercussão. A duas, porque aonde o STF não declarou inconstitucionalidade, não é dado ao CARF fazê-lo. 
Por fim, cumpre lembrar que a dinâmica relação entre os Poderes fará sempre com que os espaços não ocupados na seara das decisões políticas de um Poder acabem por permitir a atuação subsidiária dos demais. Por isso, talvez as conclusões deste breve artigo sejam ainda mais pertinentes nos casos em que o Judiciário é exageradamente moroso.
Esse argumento - de legitimação na prática de poderes atípicos quando há omissão - é muito utilizado pelo próprio Judiciário para justificar suas sentenças normativas e seu ativismo. Da mesma forma, portanto, diante da recusa do STF em decidir, de uma vez por todas, o alcance dos efeitos da decisão sobre a base de cálculo do PIS/COFINS, fica fortalecida a legitimidade para o preenchimento dessa lacuna pelos demais poderes, dentro da organicidade republicana, já que “pau que bate em Chico, bate em Francisco”.
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[1] Sobre o tema, vide Mark Tushnet. “Comparative constitutional law”. The Oxford Handbook of Comparative Law, (Mathias Reimann e Reinhard Zimmermann – ed.), Oxford-New York: Oxford University Press, 2008, p. 1243-1248. 
[2] A ideia de que não se pode tributar sem representação foi um verdadeiro mantra, justificando, em grande parte, a vontade dos colonos americanos de se livrarem do domínio inglês, já que não se sentiam representados no parlamento britânico. 
[3] Sobre o tema, interessante a leitura do clássico “Anti-Federalist Papers”, em especial nos artigos atribuídos a Brutus, de números XI, XII e XV, nos quais os autores contestam o sistema de judicial review adotado na recém aprovada Constituição norte-americana.

Wood and brass judges gavel on a law book

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JOTA

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O CARF e o weak-form judicial review

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