Alexandre Barreto de Souza

Sofia Signorelli

Na Sessão Plenária do último dia 23 de março, o <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/tcu">Tribunal de Contas da União</a> (TCU), por meio do Acórdão TCU 589/2022 Plenário, prolatado nos autos do processo TC 017.012/2020-1, emitiu decisão paradigmática com enorme impacto para o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência.
Ao analisar, por provocação de um procurador do Ministério Público de Contas, a dosimetria utilizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/cade">Cade)</a> no estabelecimento de suas sanções e, por arrastamento, a métrica utilizada para cálculo das contribuições pecuniárias nos Termos de Compromisso de Cessação celebrados pela Autarquia<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o TCU enterrou de vez o vez o fantasma da “vantagem auferida”.
Em resumo, a corte de contas, por unanimidade, não constatou nenhuma irregularidade na forma como o Cade vem conduzindo a dosimetria das penas aplicadas. O TCU não viu nem mesmo a necessidade de emitir mera recomendação para hipotético aprimoramento da atividade administrativa<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que havia sido proposto pelo relator original do processo, mas que teve a adesão de apenas mais um julgador. Ao final, prevaleceu o voto divergente do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/bruno-dantas">Bruno Dantas</a>, que simplesmente arquivou o processo e foi acompanhado pela maioria maciça do Tribunal de Contas.
Em seu voto, o ministro Dantas, foi cirúrgico ao perceber a complexidade e a pluralidade dos métodos que podem ser utilizados para estimar a hipotética vantagem auferida. Diga-se, aliás, que tal característica é percebida há tempos nas discussões travadas acerca do tema em diversos fóruns, tanto no Brasil como em autoridades de outros países e  sempre esteve presente nas sólidas discussões travadas no próprio Cade até um passado muito recente.
O ministro foi ainda além ao afirmar, em seu voto, que o próprio relator original da matéria na reconheceu as razões pelas quais o Cade consolidou sua jurisprudência pela adoção da metodologia tradicional de definição de multa a partir dos critérios existentes no artigo 37, c/c o artigo 45 da Lei 12.529/2011, com o objetivo de garantir a eficácia da política de defesa da concorrência
Além disso, também reconheceu o TCU que a adoção de critérios subjetivos de dosimetria traz consigo “o risco de contestação de legalidade [das decisões do Cade] pelo Poder Judiciário, com prejuízo à estabilidade da política de defesa da concorrência e segurança dos agentes econômicos afetados”, e ainda que “a adoção de tal prática pode ter efeitos adversos para o sistema de defesa da concorrência”.
Com essa decisão, o TCU afastou o fantasma da vantagem auferida, essa jabuticaba adormecida nos armários do direito antitruste, que por vezes vem à tona, trazida por aqueles que normalmente estão iniciando seus estudos na matériaVale lembrar que esta discussão nada tem de nova, já tendo sido motivo de extensos debates no Conselho Administrativo de Defesa Econômica<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
A legislação nacional definiu a vantagem auferida (ou pretendida) como o benefício direto ou potencial que o agente obtém ao praticar ato lesivo contra a Administração Pública, estipulando-a como o piso mínimo para o valor da multa a ser aplicada ao ente infrator (Lei nº 12.846/2013, art. 6º, I e Lei nº 12.529/2011, artigo 37, I).
Entretanto, diferentemente da lei anticorrupção (Lei 12.846/2013), que também se utiliza do conceito de vantagem auferida ao dispor sobre a dosimetria da multa, a Lei 12.529/2011 não especificou  o que devemos entender, ou como aplicar, o conceito de vantagem auferida, mantendo-o, portanto, como um conceito jurídico indeterminado<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
Ora, para além da indeterminação do conceito, importa ressaltar a diferença entre os bens jurídicos tutelados em cada uma das normas. Assim, ao passo em que a lei anticorrupção tutela atos lesivos à administração pública, rol que restou definido no seu artigo 5º, a LBDC restringe-se às infrações à ordem econômica. Assim, haverá intercessão entre estes conjuntos apenas nos casos que envolvam cartéis em Licitações Públicas.
Esta diferença com relação ao tipo de ato lesivo tutelado pelas normas é  crucial em se tratando da definição do que viria a ser uma vantagem auferida. Tomemos como base, por exemplo, o caso dos cartéis.
Apesar das estimativas de vantagem auferida comumente utilizadas na literatura partirem da premissa de que o objeto dos cartéis limita-se à combinação dos preços, é possível que a estratégia de um cartel também procure limitar a quantidade ofertada, como é o caso dos próprios cartéis em licitação, onde normalmente ocorrem conluios para a divisão de mercado sem que necessariamente haja indícios sobre combinação de preços<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>, hipótese em que o impacto sobre os preços, ainda que seja uma consequência lógica, poderá não acontecer. Outro exemplo que distancia-se da combinação de preços é, por exemplo, a troca de informações sensíveis – que tampouco necessariamente gerará sobrepreços monetariamente estimáveis.
Ainda com relação aos cartéis, é necessário lembrar que nem sempre as vantagens advindas da composição de um cartel serão igualitariamente repartidas entre os seus participantes. Um exemplo claro disso pode ser observado nos cartéis do tipo hub and spoke, onde esquemas paralelos de compensação para o coordenador do cartel desmistificam a premissa dos ganhos igualitários.
Outro exemplo, é quando temos a formação de cartéis em situações de disputa pelo mercado, e não no mercado, como é o caso típico de cartéis em licitações públicas. Se há conluio entre os participantes de uma licitação pública, não há dúvidas que falamos de um cartel; mas se apenas o adjudicante irá auferir renda advinda da prestação dos serviços ou da venda dos bens, qual terá sido a vantagem auferida pelos demais cartelistas?
Ora, tudo isso contribui para a inevitável conclusão de que preencher o conceito jurídico indeterminado da LBDC é tarefa árdua, para não dizer impossível, e por isso, como bem ressaltou o ministro Dantas, seria “desarrazoado e inoportuno” que o Tribunal de Contas iniciasse uma avaliação dos critérios utilizados pelo Cade para tanto.
Isto porque os diferentes métodos de quantificação de danos geram extrema incerteza com relação ao que se pode esperar a título de multa, contrariando as diretrizes internacionais da própria Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/ocde">OCDE</a>), que defendeu a existência de métodos de dosimetria claros, com o objetivo de garantir previsibilidade e uniformização no tratamento de violações comparáveis, aumentando o caráter dissuasório das multas<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Enfim, a história demonstra que aqueles que se dedicaram com responsabilidade à tarefa de conceituar, para fins práticos, o que seria a vantagem auferida, tanto do ponto de vista jurídico quanto econômico, chegaram à conclusão quanto à impossibilidade de sua utilização, por ausência de robustez metodológica nas frustradas tentativas.
Nesse contexto, a decisão do Tribunal de Contas da União vem no sentido de fortalecer a atuação do Cade, baseada em premissas coerentes com a construção jurisprudencial que vem se consolidando nos últimos anos. Afinal, deve a autoridade antitruste servir como um elemento de estabilidade e de segurança jurídica para o ambiente de negócios – e não fonte de incertezas na aplicação da lei. Por outro lado, vale a ressalva de que isso não significa que não possa haver evolução da jurisprudência, como reconhece o próprio TCU, mas que a construção dos precedentes deve ver dialogar com as conclusões advindas de debates anteriores, de forma a resguardar a responsabilidade inerente a uma mudança de entendimento.
Neste episódio, além de um final feliz, presenciamos, sem sombra de dúvidas, mais uma vitória para o direito concorrencial brasileiro.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Termos de Compromisso de Cessação são acordos celebrados pelo Cade com pessoas físicas e jurídicas investigadas pela autarquia, conforme previsão no artigo 85 da Lei 12.529/2011. Em breve resumo, ao compromissário é concedido desconto na multa que lhe seria aplicada, em troca do compromisso de cessar com a conduta ilícita e contribuir com a investigação.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Na hierarquia das sanções/ações corretivas previstas na Lei Orgânica do TCU – Lei 8.443/1992 estão, da mais gravosa para a menos, o julgamento pela irregularidade das contas, a aplicação de multa aos gestores, a determinação para o cumprimento de uma decisão e, por fim, a recomendação – a qual não tem efeito cogente, estando vinculada à discricionariedade do gestor que a recebeu.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Como exemplo, pode-se citar o julgamento do Processo Administrativo nº 08012.002586/2005-51, referente ao caso de cartel de GLP no Pará, que abrangeu profundas discussões, relativas tanto à possibilidade de utilização da estimação de danos ou de vantagem auferida para cálculo de multa, quanto à realização da estimação desses valores e as repercussões jurídicas e econômicas dessas constatações.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Lei 12.529/2011, Art. 37 “A prática de infração da ordem econômica sujeita os responsáveis às seguintes penas: I - no caso de empresa, multa de 0,1% (um décimo por cento) a 20% (vinte por cento) do valor do faturamento bruto da empresa, grupo ou conglomerado obtido, no último exercício anterior à instauração do processo administrativo, no ramo de atividade empresarial em que ocorreu a infração, a qual nunca será inferior à vantagem auferida, quando for possível sua estimação (...)”.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Neste sentido foi a observação apresentada pelo ex-Conselheiro Márcio de Oliveira Júnior, ao apresentar seu voto-vista no caso do Cartel de GLP, instaurado Ex Officio pelo Cade em face das Representadas Liquigás, Supergasbras e Paragás Distribuidora (Processo n. 08012.002568/2005-51).
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> “O Cade deveria esclarecer a metodologia para o cálculo de multas. Por exemplo, estabelecendo uma abordagem que se baseie em dados prontamente identificáveis e que evite cálculos complexos em relação à vantagem auferida pela empresa como resultado da infração concorrencial”.  In OCDE (2019), Revisão por Pares da OCDE sobre Legislação e Política de Concorrência: Brasil, p. 4. Disponível em &lt;<a href="https://www.oecd.org/daf/competition/revisoes-por-pares-da-ocde-sobre-legislacao-e-politica-de-concorrencia-brasil-2019-web.pdf">https://www.oecd.org/daf/competition/revisoes-por-pares-da-ocde-sobre-legislacao-e-politica-de-concorrencia-brasil-2019-web.pdf</a>&gt;. Acesso em 05/05/2022.

cade

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JOTA

A autoridade antitruste deve servir como elemento de segurança jurídica para o ambiente de negócios

O Cade, o TCU e a vitória do direito concorrencial brasileiro

Deve a autoridade antitruste servir como elemento de segurança jurídica para o ambiente de negócios