Leonardo Matschulat

Gustavo Matschulat

Foi prorrogada até o próximo dia 3 de outubro a <a href="https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/mpv/mpv1175.htm">Medida Provisória 1175/2023</a>, que tem como objetivo a redução dos preços dos chamados automóveis populares. Através de uma série de incentivos fiscais destinados a produtores de veículos que atingirem determinados critérios, a medida atribui pontos pela chamada “densidade produtiva” do material, que considera a porcentagem de utilização de produtos nacionais para a montagem do veículo, privilegiando, assim, a utilização de equipamentos domésticos.
Por um lado, seria possível elogiar a intenção de tornar os veículos mais acessíveis em um mercado ainda abalado pelas consequências econômicas desastrosas da pandemia da Covid-19 e a grave crise global que se seguiu. Contudo, é também razoável criticar o privilégio à indústria automotiva, ramo intrinsecamente ligado à exploração de combustíveis fósseis, bem como a prioridade do governo para com automóveis de uso individual em vez de medidas destinadas ao transporte público em geral.
De qualquer modo, a MP 1175 pode também ser alvo de uma análise de legalidade a partir de tratados internacionais aos quais o Brasil está vinculado, quais sejam, as normas expressas no Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), no Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas ao Comércio (TRIMs) e no Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM), todos da Organização Mundial do Comércio (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/omc">OMC</a>).
Estes acordos vinculam a atuação do Estado brasileiro em relação aos demais membros da OMC. Nesse sentido, deixar de cumprir os seus preceitos pode justificar denúncia trazida diante do Órgão de Resolução de Controvérsias da Organização, cuja principal tarefa é tornar claras e previsíveis as obrigações decorrentes dos acordos celebrados no âmbito da OMC.
A MP 1175 trabalha com um sistema de pontos atribuídos a veículos automotores produzidos e vendidos sob condições específicas. O maior acúmulo de pontos dá às montadoras o direito de obter crédito presumido a ser descontado do valor recolhido a título de PIS/Cofins, gerando, desta forma, um benefício fiscal.
Entre os critérios utilizados para cômputo dos pontos, destaca-se a “densidade produtiva”, descrita pelo art. 2º, inciso III, da MP como “nível de agregação de valor à atividade produtiva e de efeito de transbordamento para atividades correlatas, medido por meio do Índice de Conteúdo Regional - ICR, calculado de acordo com a fórmula ICR = (1 - valor CIF de autopeças importadas de extrazona Mercosul/preço “ex-fábrica”) x 100”.
Em outras palavras, trata-se de concessão de pontos para montadoras que vendem veículos que possuam a maior parte de seus componentes originados no Mercosul, calculados a partir da participação dos integrantes domésticos no valor final, avaliado na saída da fábrica. Dessa forma, privilegia-se o uso de componentes produzidos dentro do Mercosul em detrimento de componentes importados.
O modo de funcionamento da MP contraria o previsto no artigo III:4 do GATT<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, que proíbe a discriminação injustificada contra bens importados em benefício de produtos similares de origem nacional. Tal restrição se reflete também no art. 2.1 do Acordo TRIMs<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, que proíbe a aplicação de medidas de investimento relacionadas ao comércio que promovam tal distinção.
O uso de requisitos de conteúdo nacional para a concessão de benefícios pela legislação de determinado país já foi objeto de diversas disputas pretéritas perante o Órgão de Resolução de Controvérsias da OMC. Em Canadá - Medidas relacionadas ao programa de tarifa feed-in<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, o órgão se debruçou sobre a denúncia feita pela União Europeia sobre medidas adotadas pelo governo da província canadense de Ontário. Nelas havia requisitos de conteúdo nacional que deviam ser cumpridos na construção de determinadas instalações de geração de energia para se qualificar para os preços de eletricidade oferecidos pelo programa Feed-In Tariff (FIT). O painel, posteriormente confirmado pelo Órgão de Apelação, confirmou a existência do requisito e da consequente violação ao princípio do tratamento nacional pela discriminação aplicada.
Os exatos mesmos resultados poderiam ser esperados de uma eventual denúncia contra a MP 1175. Como na disputa envolvendo o governo canadense, a exigência de maior uso de peças nacionais para concessão de benefício fiscal configura uma violação do princípio de tratamento nacional, violando os acordos GATT e TRIMs.
Relembre-se, também, que o Brasil já foi denunciado em outras ocasiões pela discrepância injustificada de concessões aplicadas a países do Mercosul em relação a outros países. Em Brasil - Pneus reformados<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o Órgão de Resolução de Disputas considerou que o banimento da importação de pneus reformados pelo Brasil não poderia ser justificado, considerando que a medida não se aplicaria aos países do Mercosul, configurando uma discriminação ilícita.
A MP 1175 também pode ser caracterizada como um subsídio para aplicação das normas referentes ao Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (SCM), instrumento multilateral anexo ao GATT. Prevê o art. 1º do Acordo que considerar-se-á a ocorrência de um subsídio quando, dentre outras hipóteses, “receitas públicas devidas são perdoadas ou deixam de ser recolhidas (por exemplo, incentivos fiscais tais como bonificações fiscais)”. A MP, ao permitir o acúmulo de créditos para menor pagamento de PIS/Cofins, deixa de recolher receitas públicas normalmente devidas.
Pelo exposto, resta concluir que a MP 1175 destoa dos padrões estabelecidos pela OMC. É imperioso, nesse contexto, relembrar a importância do cumprimento das diretrizes da organização, buscando um desenvolvimento que promova não só o crescimento da indústria nacional, mas também a garantia de um comércio livre que, no longo prazo, será capaz de gerar benefícios para empresas, consumidores e o próprio governo.
Se o Brasil deseja perseguir um comércio internacional livre, que permita ao consumidor brasileiro importar produtos externos desejados com menores obstáculos, enquanto tem também a sua exportação recebida de braços abertos por seus parceiros comerciais, há que se dar exemplo: cumprir as obrigações da OMC, de forma a inspirar confiança nas normas de comércio internacional.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> “Os produtos de território de uma Parte Contratante que entrem no território de outra Parte Contratante não usufruirão tratamento menos favorável que o concedido a produtos similares de origem nacional, no que diz respeito às leis, regulamento e exigências relacionadas com a venda, oferta para venda, compra, transporte, distribuição e utilização no mercado interno. Os dispositivos deste parágrafo não impedirão a aplicação de tarifas de transporte internas diferenciais, desde que se baseiem exclusivamente na operação econômica dos meios de transporte e não na nacionalidade do produto.” Disponível em &lt;http://mdic.gov.br/comercio-exterior/negociacoes-internacionais/1885-omc-acordos-da-omc&gt;
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> “Sem prejuízo de outros direitos e obrigações sob o GATT 1994, nenhum Membro aplicará qualquer TRIM incompatível com as disposições do Artigo III ou do Artigo XI do GATT 1994.” Disponível em &lt;https://www.gov.br/siscomex/pt-br/arquivos-e-imagens/2021/05/omc_trims.pdf&gt;
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Canadá - Medidas relacionadas ao programa de tarifa feed-in, WT/DS426, relatório do Órgão de Apelação aprovado em 24/05/2013. Disponível em <a href="https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds426_e.htm">DS426 Canada — Measures Relating to the Feed-in Tariff Program</a>.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Brasil - Medidas que afetam as importações de pneus reformados, WT/DS332, relatório do Órgão de Apelação aprovado em 17/12/2007. Disponível em <a href="https://www.wto.org/english/tratop_e/dispu_e/cases_e/ds332_e.htm">DS332 Brazil — Measures Affecting Imports of Retreaded Tyres</a>.

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JOTA

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