Vinício Guimarães Salvarezza

<a href="#_ftn1" name="_ftnref1"></a>
No dia 14 de dezembro, o presidente da República, Jair Bolsonaro, anunciou uma nova ação para o início da campanha de vacinação contra a Covid-19. Uma medida provisória exigindo que cada brasileiro assine um termo de responsabilidade para tomar qualquer vacina contra o famigerado vírus.
O anúncio foi duramente criticado pela opinião pública, visto que não guarda paralelo com a ação de qualquer outro país que está na corrida pela obtenção de vacinas para combate à pandemia. Enquanto grande parte das nações busca reforçar o discurso de credibilidade das vacinas em produção, a medida provisória pretende o caminho reverso: transferir uma responsabilidade constitucional do Estado– a garantia de doses seguras de vacina contra o vírus – para o cidadão.
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<blockquote class="jota-article__eye">O acréscimo de burocracia para a aplicação das vacinas esconde, ainda, um outro aspecto: a criação de uma arquitetura de escolha que reforça comportamentos autodestrutivos.</blockquote>
Segundo estudos de ciência comportamental, o processo cognitivo de tomada de decisão humana pode ser compreendido a partir da interação entre dois sistemas. Um “sistema 1” mais intuitivo, rápido, associativo e suscetível às emoções e ao ambiente externo; e um “sistema 2”, mais lento e reflexivo, controlado e autoconsciente. Decisões tidas por irracionais ou prejudiciais ao próprio tomador da decisão surgem, quase sempre, quando o “sistema 2” é incapaz de influenciar vieses e pré-compreensões construídas em um primeiro momento pelo “sistema 1”.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Cass Sunstein e Richard Thaler argumentam que essa suscetibilidade do sistema 2 às primeiras impressões construídas pelo sistema 1 demanda maior compreensão e transparência dos contextos que cercam o processo de tomada de decisões. Considerando que contextos e arquiteturas de escolhas seja algo onipresente e inevitável em qualquer processo decisório, cumpre ao Estado privilegiar aquelas arquiteturas (nudges) que nos “empurrem” em direção às escolhas que ampliem o bem-estar individual e da sociedade como um todo.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Em um cenário de pandemia, onde o mundo todo acompanha atentamente o processo de teste das múltiplas vacinas em produção para o combate ao vírus, é natural que o sistema 1 desenvolva alguma espécie de ansiedade e temor quanto a sua eficácia e riscos. Como resposta, muitos governos vêm adotando uma série de medidas educacionais e de combate à desinformação para incentivar as pessoas a tomarem vacinas. <a style="font-family: inherit; font-size: inherit; font-style: inherit; font-variant-ligatures: inherit; font-variant-caps: inherit;" href="https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/12/03/obama-bush-e-clinton-se-oferecem-para-promover-vacinacao-nos-eua.htm" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Personalidades políticas, inclusive, já se voluntariaram para tomar as doses frente ao público, como forma de conferir maior credibilidade aos imunizantes</a>.
Os nudges, contudo, não são a única espécie de arquitetura de escolhas existentes. Seu irmão gêmeo mau é o sludge (“lama”, em uma tradução livre), arquiteturas que criam fricções (entraves burocráticos, em geral) capazes de operar de duas formas. Desencorajando a pessoa de atuar em prol de seu próprio interesse ou encorajando-a comportamentos autodestrutivos.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
O presidente da República que,<a href="https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55107536" target="_blank" rel="noopener noreferrer"> desde o início da pandemia fez pouco caso do vírus</a> e <a href="https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/11/24/governo-recorre-ao-tcu-e-nao-apresenta-plano-de-vacinacao-contra-a-covid-19.ghtml" target="_blank" rel="noopener noreferrer">se comportou de forma negligente em relação ao projeto de imunização,</a> segue sua escalada de maus exemplos ao sugerir uma barreira burocrática para a aplicação das vacinas: a exigência inédita de assinatura de um termo de responsabilidade acerca de eventual efeito colateral ou ineficácia da vacina. Sem adentrar no equívoco técnico da proposta, o objetivo do termo parece claro. Criar um contexto que reforce o temor dos cidadãos quanto à confiabilidade na vacina. Em síntese, um sludge. 
A medida, embora sutil, revela muito da postura do presidente e do governo federal. Dar voz a movimentos “antivacinas” e teorias conspiratórias que circulam no Whatsapp e em redes sociais sobre os riscos e supostos interesses políticos obscuros que estariam por trás da campanha de vacinação em massa, indo de encontro ao dever do Estado de zelar pela saúde de todos. Há, ainda, uma outra consequência nefasta. Em um país em que <a href="https://acaoeducativa.org.br/wp-content/uploads/2016/09/INAFEstudosEspeciais_2016_Letramento_e_Mundo_do_Trabalho.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">quase 30% da população é composta por pessoas classificadas como “analfabetas funcionais</a>”, a exigência de assinatura de relatórios e termos de responsabilidade é um instrumento de discriminação contra essa parcela da população, que seria especialmente prejudicada pela exigência.
De positivo, cumpre destacar que a pressão da opinião pública parece, felizmente, ter freado os ânimos do presidente. A Câmara dos Deputados aprovou a medida provisória sem estipular, no texto-base, que seja exigida na vacinação a assinatura de um termo de responsabilidade, contrariando o projeto de Bolsonaro (o texto seguiu para o Senado). No entanto, fica o alerta quanto ao uso furtivo de mecanismos burocráticos, para que não pereçamos atolados na lama.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> KAHNEMAN, Daniel. Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar. Ed. Objetiva. 2018.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> THALER, Richard. SUNSTEIN, Cass. Nudges. Como tomar as melhores decisões sobre saúde, dinheiro e felicidade. 1ª Ed. Editora Objetiva. 2019. p.260.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> THALER, Richard. Nudge, not sludge (2018). Disponível em: https://science.sciencemag.org/content/361/6401/431

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JOTA

Uma análise da exigência, proposta por Bolsonaro, de assinatura de termo de responsabilidade para tomar vacina

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