Paulo Rubens Carvalho Marques

Pablo Coutinho Barreto

Octávio Celso Gondim Paulo Neto

Em 18 de setembro de 2020, entrou em vigor a Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, a LGPD), que disciplinou o uso, a proteção e a transferência de dados de pessoas naturais no Brasil.
Conforme disposto em seu artigo 4º, inciso III, a LGPD não se se aplica ao tratamento de dados pessoais realizado para fins exclusivos de: a) segurança pública; b) defesa nacional; c) segurança do Estado; ou d) atividades de investigação e repressão de infrações penais. O § 1º do mesmo artigo dispõe que nesses casos o tratamento de dados pessoais será regido por legislação específica.
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Visando atender, parcialmente, ao mandamento legislativo contido no § 1º do art. 4º da LGPD<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, a Câmara dos Deputados, por meio de Ato do Presidente de 26 de novembro de 2019, instituiu comissão de juristas destinada a elaborar anteprojeto de legislação específica para o tratamento de dados pessoais no âmbito da segurança pública, investigações penais e repressão de infrações penais.
A mencionada Comissão de Juristas apresentou anteprojeto da chamada "LGPD Penal" em 5 de novembro de 2020, mediante texto<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a> que poderá afetar severa e negativamente as atividades de todos os órgãos envolvidos, direta ou indiretamente, na investigação criminal, repressão penal e/ou segurança pública.
Conforme apontado na própria Exposição de Motivos do anteprojeto, a Comissão de Juristas foi fortemente influenciada pela Diretiva 2016/680, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 27 de abril de 2016.
Ocorre que uma simples leitura comparativa entre o texto apresentado pela Comissão de Juristas e a normativa europeia evidencia inegável descompasso, notadamente em relação aos objetivos normativos e às dimensões do tratamento dos dados pessoais. Vejamos.
A Diretiva (EU) 2016/680 enuncia expressamente seus objetivos, quais sejam os de (i) proteger os direitos e liberdades fundamentais das pessoas singulares, nomeadamente o seu direito à proteção de dados pessoais, e (ii) assegurar o livre intercâmbio desses dados pelas autoridades competentes na União Europeia (Considerando 93).
Para a concretização deste duplo objetivo, o sistema esquadrinhado pela Diretiva Europeia alcança o tratamento de dados pessoais realizado pelas autoridades competentes para efeitos de prevenção, investigação, detecção ou repressão de infrações penais ou execução de sanções penais, incluindo a salvaguarda e prevenção de ameaças à segurança pública (artigo 1º, 1).
A seu turno, embora influenciado pela Diretiva (EU) 2016/680, o texto do anteprojeto apenas importou as lógicas da investigação e repressão de infrações penais, esquecendo os importantíssimos pilares da prevenção e da detecção de condutas desviantes, que reclamam a utilização de massas de dados, em ambientes restritos e controlados.
E mais. Em vez de estabelecer balizas para o intercâmbio de dados entre as autoridades competentes, o anteprojeto estabeleceu restrições desproporcionais e distantes da realidade, como as previstas nos artigos 14, § 2º, 43 e 45, § 1º, “sem oferecer, em contrapartida, uma melhoria palpável dos direitos das pessoas em causa” <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em verdade, o compartilhamento de bancos de dados entre os atores da persecução penal e da segurança pública consiste em emanação concreta do princípio da eficiência, contribuindo sobremaneira para a proteção suficiente de bens jurídicos de relevância constitucional, notadamente o direito fundamental à segurança. É o caso daqueles tutelados pelos crimes de lavagem de dinheiro, de financiamento do terrorismo e pela miríade de crimes compreendidos pela chamada “criminalidade dos poderosos” – praticados por indivíduos que não eram alcançados pelos métodos tradicionais de investigação por não se enquadrarem na chamada “criminalidade conforme ao estereótipo”.
A tentativa de impor restrições desproporcionais à circulação de dados entre as autoridades competentes também contraria premissas básicas da própria Diretiva Europeia, como aquela assentada no Considerando 27:
(27) Para efeitos de prevenção, investigação ou repressão de infrações penais, é necessário que as autoridades competentes tratem os dados pessoais, recolhidos no contexto da prevenção, investigação, deteção ou repressão de infrações penais específicas para além desse contexto, a fim de obter uma melhor compreensão das atividades criminais e de estabelecer ligações entre as diferentes infrações penais detetadas.
Nesse contexto, não causa estranheza que o anteprojeto tenha incorrido em confusão conceitual que pretende atribuir natureza probatória a todo “dado pessoal”, ignorando que em boa parte dos casos o manejo de dados, sobretudo nos campos da prevenção e da detecção de infrações penais, serve ao propósito de orientar a atuação dos órgãos de persecução e auxiliar na prospecção de trilhas investigativas <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Também deve ser destacada a excessiva amplitude do conceito de dado pessoal, entendido como qualquer “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável” (art. 5º, inciso I), disponibilizada em “suporte eletrônico ou físico” (art. 5º, V).</blockquote>
Assim, ao pretender regular todos os aspectos referentes ao tratamento de dados pessoais, físicos ou eletrônicos, na persecução penal e na segurança pública, o anteprojeto impacta diretamente temas regulados por outros diplomas, como o da prova penal e das técnicas especiais de investigação, causando embaraços ao processo penal.
Para reforçar o hiato existente entre a normativa europeia e a práxis que o anteprojeto pretende instituir, é válido mencionar a experiência de Portugal, que, ao transpor a Diretiva (EU) 2016/680 para o seu ordenamento jurídico, expressamente excluiu do âmbito de incidência de sua LGPD Penal os dados constantes de processo penal, decisão judicial, registro criminal e os demais referentes ao sistema judicial (cf. art. 68 da Lei nº 59/2019, de 8 de agosto de 2019).
Não é só. Também vem de Portugal um exemplo de como tratar adequadamente  a questão do compartilhamento de dados entre as autoridades competentes. O artigo 69 da mencionada lei é taxativa ao afirmar que o disposto na lei de proteção de dados pessoais “não implica qualquer restrição ou limitação na partilha e intercâmbio de dados entre os órgãos de polícia criminal e destes com as autoridades judiciárias, no âmbito do dever de cooperação estabelecido na lei de organização da investigação criminal (...)”.
Pelas bandas de cá, Ministérios Públicos e Polícias, nas esferas federal e estaduais, têm se notabilizado pelo desenvolvimento e compartilhamento de métodos inovadores para a análise otimizada de massas de dados, a fim de fortalecer não apenas os mecanismos de repressão como de prevenção à corrupção, à lavagem de capitais, ao financiamento do terrorismo e a outros crimes graves, em linha com as recomendações do Grupo de Ação Financeira contra a Lavagem de Dinheiro e o Financiamento do Terrorismo (GAFI/FATF). Tal cenário, entretanto, seria profundamente afetado com a eventual aprovação, ainda que parcial, de texto semelhante ao do Anteprojeto acima referido.
Pode-se afirmar, sem qualquer exagero, que eventual aprovação do Anteprojeto promoverá a proteção de dados em direção à insegurança pública e à não persecução penal.
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O episódio 46 do podcast Sem Precedentes discute se o contrato de trabalho intermitente é ou não constitucional. Ouça:
https://youtu.be/o8E3sXtx7j0
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Diz-se “parcialmente” porque o anteprojeto da Comissão de Juristas não se debruçou sobre a temática da proteção dos dados pessoais nos campos da defesa nacional e da segurança do Estado.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> O anteprojeto é composto por 11 capítulos e 68 artigos, podendo ser acessado no seguinte link: &lt;https://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/comissao-de-juristas-dados-pessoais-seguranca-publica/documentos/outros-documentos/DADOSAnteprojetocomissaoprotecaodadossegurancapersecucaoFINAL.pdf&gt;.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Advertência formulada pela relatora Ursula Männle, deputada ao Parlamento do Estado da Baviera, no Parecer do Comitê das Regiões sobre o pacote de Proteção de Dados (2012/C 391/13). Como se vê, a questão não se resolve em termos de limitação à livre circulação de dados, mas na exigência da adoção de mecanismos de segurança que assegurem um elevado nível de proteção de tais dados pessoais.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Ou seja: em vez da atuação em casos levados a conhecimento das autoridades apenas tardiamente - e sujeitos, ao menos na fase inicial, aos vieses, interesses e versões dos noticiantes - , o cruzamento de bases de dados possibilita uma atuação sólida e tempestiva. Neste modelo, somente após deparar-se com a necessidade de atuar, é que são deflagradas as investigações e, aí sim, produzidas provas.

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JOTA

O anteprojeto impacta na prova penal, nas técnicas especiais de investigação e no processo penal

O anteprojeto da 'LGPD penal' e a (in) segurança pública e (não) persecução penal

O anteprojeto impacta na prova penal, nas técnicas especiais de investigação e no processo penal