Saul Tourinho Leal

Não há uma única Suprema Corte no mundo com um processo decisório tão aberto às partes, a seus advogados e à comunidade como a brasileira. Isso, por si só, não diz muito em termos de qualidade argumentativa e integridade jurisprudencial. Todavia, mostra que, no Brasil, é natural interagir com a Corte, seus juízes e gabinetes, algo crucial para quem se apresenta, por exemplo, como amicus curiae.  
Isso não ocorre por aí. Para ilustrar, a Corte Constitucional da África do Sul condiciona a admissão do amigo da Corte à concordância, por escrito, das partes do caso. Essa é a forma que o Tribunal tem de aferir a boa reputação, a legitimidade e o reconhecimento da capacidade de enriquecer a discussão. Excepcionalmente, o Chief Justice pode admitir sem passar pela aceitação das partes por escrito, mas é necessário, ainda assim, provar-se à altura da dignidade de subsidiar uma decisão da mais alta Corte do país.  
No Brasil, o NCPC, além do regramento geral do art. 138, dispõe que, na análise da repercussão geral, o relator pode admitir a manifestação de terceiros (art. 1.035, § 4º). Para apreciar o mérito, pode solicitar ou admitir manifestação de pessoas, órgãos ou entidades com interesse na controvérsia, considerando a relevância da matéria (art. 1.038, I). Também as propostas de súmula vinculante permitem a manifestação de interessados (art. 354-B do RISTF).
Quanto às ações do controle concentrado de constitucionalidade, como a ação direta de inconstitucionalidade, o relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, pode admitir a manifestação de outros órgãos ou entidades (Lei 9.868/99, art. 7º, §2º). Uma sutil diferença vem da arguição de descumprimento de preceito fundamental, na qual pode ser autorizadas, a critério do relator, sustentação oral e juntada de memoriais, por requerimento dos interessados (art. 6º, §2º da Lei 9.882/1999). 
Tanto o amigo da Corte, como o advogado que o representa, podem ser recebidos em audiência com qualquer ministro. Também com os assessores (clerks), quando essa é a prática do gabinete. É possível entregar peças, memoriais, estudos, pareceres e tudo o que se julgar importante. Não há limites de páginas, formatações obrigatórias ou multa por ser prolixo. Reina a liberdade, o diálogo e a abertura. 
No dia do julgamento, o advogado que representa o amicus curiae fala por 15 minutos diante dos julgadores. Isso, sem ser interrompido. É raro uma Corte Suprema impor o silêncio a seus juízes durante a explanação oral do advogado. Infelizmente, um dos efeitos colaterais dessa tradição brasileira é o empobrecimento da dialética. 
Isso porque, é nas intervenções feitas pelos julgadores aos advogados que o zelo do patrono pela causa e o seu conhecimento do processo são medidos, assim como a liderança dos ministros, uma liderança conquistada graças ao maior domínio do caso em julgamento.
Dessa combinação virtuosa vem a legitimidade da decisão. Respeita-se o que foi decidido, porque se sabe que tanto a Corte, como os envolvidos, incluindo o amicus curiae, esgotaram os recursos na busca pela decisão constitucionalmente mais justa. 
Mesmo com suas imperfeições, é certo afirmar que a Suprema Corte brasileira empoderou o amigo da Corte como nenhuma outra Corte. Ela lhe deu participação, influência e, principalmente, voz. Em troca, pediu um pouco de bom senso. Uma pena. Foi pedir algo escasso numa cultura processualmente egoísta.
Há um caso que ilustra bem esse egoísmo. Na sessão plenária de 25.05.2016, o Supremo retomou o julgamento do Agravo Regimental na ADI 3396, que discute a legitimidade recursal do amicus curiae na hipótese de o relator recusar o pedido por não ver nele chance de uma boa contribuição (art. 7º, § 2º da Lei nº 9.868/1999).  
A ação, que foi ajuizada pelo Conselho Federal da OAB, conta, como amici curiae, com doze grandes entidades representativas dos advogados, o que já é muito. Mesmo assim, a Corte colocou seus ministros para discutirem se um relator pode ser obrigado, pelo Plenário, a admitir como amigo da Corte uma pessoa física que ele julgou não ter com o que contribuir para o caso. Isso mesmo. Não é espantoso?
Esse é um tipo de liberdade que, se desprovida de responsabilidade, atrapalha mais do que ajuda. Ou o Supremo trata sempre coletivamente da admissão de todos os amici curiae que se dirigem à Corte ou permite que os relatores o façam e, consequentemente, empodera o relator com o benefício da confiança.    
Ainda mais espantoso é saber que, no caso concreto, entre agosto de 2008 e março de 2016 (o tempo também espanta), a referida pessoa física, mesmo não tendo sido aceita, se apresentou perante o Supremo quinze vezes por meio de manifestações escritas. 
Assustado, o Ministro Luiz Fux se recordou do recurso extraordinário com repercussão geral de sua relatoria sobre terceirização, que contou com 50 pedidos de ingresso como amigo da Corte (ARE 713.211/MG e RE 958.252/MG). 
Em seguida, o Ministro Luiz Roberto Barroso chegou a dizer que basta pautar um caso para se ver repleto de petições. “Toda vez que eu pauto, por exemplo, uma ação direta de inconstitucionalidade, automaticamente ingressam cinco, seis, dez pedidos de ingresso de amici curiae. E eu sei que nós temos a jurisprudência que diz que depois que pauta, não se admite”, desabafou.
Nesse particular, o próprio Supremo tem a sua parcela de culpa. Recentemente, foi liberada para julgamento a ADI 4785, ajuizada pela CNI contra a Lei 19.976/2011, de Minas Gerais, que criou uma taxa sobre a mineração. A ação foi ajuizada em 31.05.2012. Ninguém pediu ingresso como amigo da Corte. Mais de quatro anos depois, dia 15.06, ela foi liberada para inclusão em pauta. Esgotou-se, então, o prazo para o pedido. Dois dias depois, contudo, o Estado do Pará pediu o ingresso. O pedido foi aceito. Isso é um incentivo a se tentar a sorte sempre que um caso é liberado para julgamento, ainda que haja, como lembrou o Ministro Barroso, jurisprudência contrária à prática.
 Na sessão do dia 25.05, o Presidente, Ministro Ricardo Lewandowski, chegou a ponderar: “Esse plenário é uma ribalta extraordinária. Dá uma exposição tremenda. Quem é que não quer ser amicus curiae com essa exposição nacional que essa situação propicia?”, perguntou, numa reflexão quanto a um eventual comportamento oportunista adotado no uso do amigo da Corte.  
É lamentável. A degradação do instrumento em razão do uso que alguns tentam lhe emprestar é algo que deveria contar com o imediato repúdio do Supremo, não por autoritarismo, mas por ser ele, o Supremo, o local mais adequado a proteger esse veículo que, em benefício da melhor decisão, dá voz aos grupos que podem enriquecer a formação do convencimento dos julgadores. 
Não importa se é pessoa natural, jurídica ou ente plural. O que importa é se revestir de legitimidade perante a Corte e a comunidade para levar informações que tornem a análise da questão mais rica, mais profunda, mais erudita e, claro, mais abrangente das questões correlatas a casos geralmente complexos.  
Por outro lado, nós, advogados, precisamos ter bom senso. Se seguirmos fazendo mau uso desse poderoso instrumento, prejudicaremos inocentes. Numa democracia constitucional que conta com uma enorme presença da jurisdição constitucional na vida social, o amicus curiae é puro empoderamento, pois é ele o meio que temos para fazer a nossa voz ser ouvida. É preciso usá-lo para fazer a diferença, não para levar ao julgamento mais do mesmo. 
O Supremo fez muito pelo amicus curiae. Deu-lhe espaço e abertura raramente vistos. Até por reciprocidade, essa relação de amizade precisa ser mais respeitosa. O STF merece ter um amigo que lhe seja leal, que fale francamente, com um comportamento honesto e uma postura intelectualmente desafiadora. É de um amigo desses que a Suprema Corte precisa.

stf-sigilo-bancario-sessao-extraordinaria

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Um tipo de liberdade que, se desprovida de responsabilidade, atrapalha mais do que ajuda

O amigo que a Suprema Corte precisa

Um tipo de liberdade que, se desprovida de responsabilidade, atrapalha mais do que ajuda