César Augusto Luiz Leonardo

Daniel Guimarães Zveibil

Júlio Camargo de Azevedo

Em tempos de digitalização das relações, diversas ferramentas foram elaboradas e desenvolvidas para que a solução extrajudicial de controvérsias seja feita online, evitando que as partes precisem pessoalmente comparecer em algum local a fim de viabilizar uma solução consensual. São as chamadas Online Dispute Resolutions (ODRs).
Existem ferramentas interessantes para a pronta solução de conflitos, de forma virtual (online) e bastante célere, com altos índices de resolutividade. Como exemplo, no campo consumerista, pode-se citar a plataforma consumidor.gov.br e o sistema de resolução de conflitos do Mercado Livre.
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Algumas tendências mais restritivas do acesso à justiça, contudo, indicam movimento cada vez mais frequente na doutrina no sentido de autorizar a extinção judicial de demandas de consumo por suposta carência de interesse processual, quando não comprovado pelo autor – por exemplo – o uso prévio da plataforma consumidor.gov.br. Nessa linha, sustentam os defensores da tese a viabilidade do indeferimento da inicial, com fulcro nos artigos 6º, 10, 321 e 330, inciso III, do CPC/2015 – excetuados os casos de tutela de urgência, da resposta não se dar em prazo razoável, ou de fornecedores não atenderem, de ordinário, os pedidos de consumidores<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
<blockquote class="jota-article__eye">Em perspectiva diversa, a despeito da relevância e potencial da aludida plataforma, não se deve ignorar a realidade de parcela da população do país, que em função de vulnerabilidades específicas (socioeconômica, etária, linguística etc.), suporta maiores dificuldades com sistemas eletrônicos, alimentando um círculo vicioso de exclusão digital.</blockquote>
Com efeito, a compreensão do acesso à justiça em seu sentido material (acesso à ordem jurídica justa<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>) impede que seja o uso de plataforma digital vista como caminho obrigatório, devendo, antes, ser encarada como mais um instrumento possível para exercício da pretensão de direito material e para a resolução extrajudicial de conflitos em um sistema multiportas. Para justificar a existência de interesse processual, basta que o autor tenha buscado sem êxito a solução por qualquer meio lícito – SAC, e-mail, ouvidoria, PROCON, telefonema etc. – inexistindo fundamento jurídico para impor o esgotamento de uma determinada plataforma digital.
Ademais, nas hipóteses em que verificado o não exercício da pretensão, à luz dos princípios da eficiência e da primazia do mérito (art. 4º, CPC/15), possível sustentar a aplicação analógica do artigo 23 da Lei Geral de Mediação, a fim de se permitir a suspensão do processo, fixando-se prazo razoável para que a parte autora busque a solução consensual do problema<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>.
Em vista do exposto até este ponto, se por um lado deve-se estimular o uso de ferramentas modernas que podem facilitar um acesso substancial à Justiça, elegê-las como único caminho válido ofenderia o direito à inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CRFB/1988), em detrimento da população carente e vulnerável, sobretudo daqueles digitalmente excluídos. Ora, se nem mesmo a lei poderia excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça de lesão, ao juiz não é dado exigir condicionantes ilegítimas ao exercício do direito de ação.
Em estudo minucioso, tratando de como a Itália regulamentou internamente a Diretiva 2013/11/EU por meio do Decreto Legislativo n. 130, de 06 de agosto de 2015, o qual alterou o Código do Consumidor italiano, Elisabetta Silvestri ressalta que a legislação impõe princípios referentes aos procedimentos a serem observados perante órgãos competentes para resoluções alternativas de disputas (organismi ADR) e, destaque-se, ela aponta que entre as obrigações impostas a esses órgãos está disponibilizar o acesso ao procedimento de ADRs nas formas offline e online.<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>
Deve-se ponderar também que, no âmbito da União Europeia, especificamente sob a projeção da aludida Diretiva 2013/11/EU, o regulamento sobre Online Dispute Resolutions (ODRs) para os consumidores leva em consideração especialmente os conflitos entre consumidores e fornecedores de Estados membros diversos, constando no segundo considerando do regulamento que a falta desse tipo de plataforma online coloca o consumidor em desvantagem, obstaculiza em particular as operações transnacionais online, e cria situações de desequilíbrio para os próprios fornecedores, freando o desenvolvimento geral do comércio online.<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a> Ou seja, na realidade específica da União Europeia é fundamental que cada Estado membro crie plataformas ODRs para a melhor concretização da livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas, dentro de marco jurídico que não fragilize o consumidor perante fornecedores em negócios online e localizados em Estados membros diversos.
Uma das lições possíveis de retirarmos da realidade Europeia, é o fato de que não podemos aplicar no Brasil as tecnologias desenvolvidas nos países centrais em matéria de acesso à Justiça, sem que haja maiores reflexões a respeito de nossa realidade socioeconômica, marcada por uma das mais profundas desigualdades do mundo – refletindo enormes assimetrias informacionais e em grande número de pessoas totalmente alijadas do ambiente digital, ou com extrema dificuldade de transitar por meios tecnológicos.
Ademais, e aqui abrimos parêntese, entre vantagens e desvantagens possíveis atribuídas aos meios consensuais de resolução de conflitos, sabe-se que a doutrina não recomenda sua aplicação quando as partes não se encontrem em situação de paridade, pois a parte economicamente ou culturalmente mais fraca pode ser forçada, pela situação concreta, a aceitar acordo inconveniente.<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a> Por outro lado, nessa perspectiva, válida a advertência de Maria Cecília de Araújo Asperti sobre os riscos inerentes à prática de incentivar o uso da conciliação, da mediação e de outros mecanismos análogos de solução de disputas, somente tendo em perspectiva metas quantitativas de redução do acervo de processos e do ingresso de processos judiciais (filtros), sem maiores preocupações com a qualidade do procedimento e de seus resultados.<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a> A esse conjunto de preocupações podemos agregar a ponderação de José Ignacio Botelho de Mesquita, no sentido de que a utilização inadequada dos meios consensuais “constitui fator de enfraquecimento do direito, enquanto método para solução dos conflitos intersubjetivos, porque abala a confiança no império da lei. Torna desconfiados os homens simples e mais confiados os aventureiros. Para cada processo a que põe fim, estimula o nascimento de outros tantos. Abala os alicerces da coesão social.”<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>
Em conclusão, entendemos ser necessária, no Brasil, a aplicação e ampliação do acesso às plataformas ODRs e outras tecnologias que facilitem o acesso do consumidor à justiça. Entretanto, toda cautela é pouca para que os mais vulneráveis não sejam esmagados por exigências economicistas e eficienticistas tão em voga, mas que muitas vezes não se conciliam com direitos e garantias fundamentais do jurisdicionado.
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<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> ROQUE, Andre Vasconcelos; GAJARDONI, Fernando da Fonseca; DELLORE, Luiz; MACHADO, Marcelo Pacheco; OLIVEIRA JR., Zulmar Duarte de. Releitura do princípio do acesso à Justiça: A necessidade de prévio requerimento e o uso da plataforma consumidor.gov.br. Migalhas, Tendências do Processo Civil. 17 jun. 2019. Disponível em: www.migalhas.com.br/TendenciasdoProcessoCivil/134,MI304544,91041-Releitura+do+principio+do+acesso+a+Justica+A+necessidade+de+previo. Acesso em 15 set. 2019.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> Expressão de Kazuo Watanabe, cf. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; WATANABE, Kazuo (Coords.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 128.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Em sentido semelhante: WATANABE, Kazuo; DUARTE, Ricardo Quass; GONÇALVES, Caroline Vicentini Ferreira. Parecer à empresa Mercado Livre Atividades de Internet Ltda.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> SILVESTRI, Elisabetta. Consumatori e metodi alternativi di risoluzione delle controversie. In: SILVESTRI, Elisabetta (a cura di). Forme alternative di risoluzione delle controversie e strumenti di giustizia riparativa. Torino: G. Giappichelli, 2020, item n. 03, p. 91.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> SILVESTRI, Elisabetta. Consumatori e metodi alternativi di risoluzione delle controversie. In: SILVESTRI, Elisabetta (a cura di). Forme alternative di risoluzione delle controversie e strumenti di giustizia riparativa. Torino: G. Giappichelli, 2020, item n. 05, p. 93.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> V. mais amplamente, na perspectiva de “meios alternativos ao processo judicial”: SILVESTRI, Elisabetta. Risoluzione delle controversie e alternative al processo: un’introduzione teorica. In: SILVESTRI, Elisabetta (a cura di). Forme alternative di risoluzione delle controversie e strumenti di giustizia riparativa. Torino: G. Giappichelli, 2020, item n. 03, p. 06/07.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> ASPERTI, Maria Cecília de Araújo. A mediação e a conciliação de demandas repetitivas. Belo Horizonte: Forum, 2020, item n. 2.3.2, p. 87/88.
<a href="applewebdata://1A030A68-2280-42CF-9965-4C2ECDBB98E2#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> MESQUITA, José Ignacio Botelho de. As novas tendências do direito processual: uma contribuição para seu reexame. In: Teses, Estudos e Pareceres de Processo Civil. Vol. 1, p. 290.

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JOTA

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