João Vitor Silva

Renato Toledo

Após intensos debates no Congresso Nacional, a Lei nº 13.874/2019 foi finalmente publicada no dia 30 de setembro de 2019. Fruto da conversão em lei da Medida Provisória nº 881/2019, ela tem como principal e expresso objetivo instituir uma Declaração de Direitos de <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/lei-da-liberdade-economica-dois-anos-23072021">Liberdade Econômica</a> no ordenamento jurídico brasileiro.
 O objetivo é ambicioso. Em primeiro lugar, pela mudança cultural que lhe é subjacente: apesar de a livre iniciativa figurar tanto como princípio da ordem econômica nacional (art. 170, caput, CF/88) quanto como um dos fundamentos da própria República (art. 1°, IV, CF/88), historicamente a sociedade brasileira é marcada por uma forte dependência do Estado para empreender e se lançar à dinâmica de mercado. Trata-se da chamada cultura do oficialismo, na expressão cunhada por <a href="https://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI199284,71043-Estado+e+livre+iniciativa+na+experiencia+constitucional+brasileira" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Luís Roberto Barroso</a>.
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 Em segundo lugar, pela amplitude das mudanças normativas que pretende introduzir: não bastasse criar, modificar ou revogar uma série de dispositivos do Código Civil de 2002, da Lei de Sociedades Anônimas, da Consolidação das Leis do Trabalho e de outros tantos diplomas legais extravagantes, a Declaração de Direito de Liberdade Econômica igualmente pretende servir como vetor hermenêutico para os mais variados ramos do Direito (art. 1o, §1o). Em outras palavras: ao mesmo tempo em que pretende mudar os contornos ordenamento jurídico brasileiro, ela busca mudar a lente por meio da qual o intérprete deve analisá-lo.
 Como qualquer nova lei dessa envergadura, a Lei nº 13.874/2019 também traz consigo alguns questionamentos. Nada mais natural. Por mais bem informado que tenha sido o processo de elaboração normativa, não se pode exigir que o legislador anteveja e mensure todas as potencialidades e os impactos que uma lei causará na prática. Não por outra razão, sinalizar os gargalos e identificar os possíveis caminhos para contorná-los são tarefas que vêm sendo tradicionalmente atribuídas à literatura e aos Tribunais, cada qual dentro do espaço de atuação que lhe cabe.
 Um desses questionamentos está relacionado ao seu art. 4o, que prevê para a Administração Pública e demais entidades sujeitas à lei o dever de “evitar o abuso de poder regulatório”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote1sym" name="sdfootnote1anc">1</a>. A pergunta que se coloca é a seguinte: para a configuração de abuso do poder regulatório basta que o regulador público incorra em uma das condutas listadas no referido dispositivo, como redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado (inciso II)?
 Uma primeira interpretação poderia concluir que sim, ao argumento de que abuso de poder regulatório corresponde a uma espécie de exercício anormal e indevido da competência atribuída por lei ao regulador público. Dentro dessa ordem de ideias, sua configuração seria objetiva: constatada uma das condutas listadas no art. 4o da Lei nº 13.874/2019, ter-se-á abuso de poder regulatório, sendo desnecessária qualquer análise quanto à conduta do agente público responsável ou o processo regulatório em si. A existência de dolo ou culpa é irrelevante.
 De um lado, essa conclusão encontra amparo na atual disciplina do Código Civil de 2002, que dispensa o elemento volitivo para a responsabilização por abuso de direito (art. 187)<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote2sym" name="sdfootnote2anc">2</a>. Como explica a literatura especializada que trata do ponto, “a aferição de abusividade no exercício de um direito deve ser exclusivamente objetiva, ou seja, deve depender tão-somente da verificação da desconformidade concreta entre o exercício da situação jurídica e os valores tutelados pelo ordenamento”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote3sym" name="sdfootnote3anc">3</a>. 
 De outro lado, também parece encontrar suporte no entendimento tradicional de Direito Administrativo acerca do abuso de poder pelo administrador público. As palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello ilustram bem este último ponto: “[t]rata-se, pois, de um vício objetivo, pois o que importa não é se o agente pretendeu ou não discrepar da finalidade legal, mas se efetivamente dela discrepou”<a class="sdfootnoteanc" href="#sdfootnote4sym" name="sdfootnote4anc">4</a>.
 No entanto, essa não é a única leitura possível – e talvez sequer seja a mais adequada. Outra possibilidade seria entender o dispositivo como uma diretriz para o regulador público exercer sua atividade regulamentadora, e não uma regra que leva necessariamente à nulidade do ato regulamentar. Nessa perspectiva, o art. 4º da Lei nº 13.874/2019 revelaria um postulado apto a orientar a interpretação quanto à validade de uma norma regulatória que venha a restringir direitos econômicos. 
 Significa dizer que nem toda norma que, e.g., crie restrições ao mercado ou introduza limites à livre formação de atividades econômicas será ilegal. Sua juridicidade está condicionada à efetiva conduta do regulador ao longo do processo de elaboração do regulamento, em especial no decorrer da Análise de Impacto Regulatório exigida pelo art. 5o da mesma lei. Só haverá abuso de poder regulatório se ficar constatado que (i) o administrador público não considerou os elementos pertinentes ou que o fez de maneira inadequada, evidenciando sua negligência, imprudência ou imperícia (culpa); ou (ii) que a restrição foi deliberadamente guiada por motivações caprichosas e não republicanas (dolo).
 Tal orientação seria reforçada pelo uso da expressão “evitar” o abuso do poder regulatório prevista no caput do dispositivo, a deslegitimar apenas a restrição arbitrária ou desidiosa à livre iniciativa. Interpretação diversa, nesse sentido, poderia levar a um verdadeiro princípio da “supremacia da liberdade econômica”, ignorando outras finalidades públicas a serem atendidas pela Administração Pública.
Seja como for, a figura do abuso de poder regulatório, a despeito de suas dificuldades metodológicas, institui um avanço para o direito brasileiro. O art. 4º da Lei nº 13.874/2019 confere racionalidade à atividade administrativa, exigindo um ônus argumentativo robusto para que se criem restrições às atividades econômicas. Independentemente dos parâmetros exigidos para a sua aplicação, sua efetividade é de grande relevância para o cenário regulatório nacional.
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<div id="sdfootnote1">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote1anc" name="sdfootnote1sym">1</a> O dispositivo possui a seguinte redação: Art. 4º  É dever da administração pública e das demais entidades que se vinculam a esta Lei, no exercício de regulamentação de norma pública pertencente à legislação sobre a qual esta Lei versa, exceto se em estrito cumprimento a previsão explícita em lei, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a, indevidamente: I - criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; II - redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; III - exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado; IV - redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; V - aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; VI - criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; VII - introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas; VIII - restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e IX - exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a mitigar os efeitos do inciso I do caput do art. 3º desta Lei.
</div>
<div id="sdfootnote2">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote2anc" name="sdfootnote2sym">2</a> O dispositivo possui a seguinte redação: Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.
</div>
<div id="sdfootnote3">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote3anc" name="sdfootnote3sym">3</a> TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloísa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin. Código civil interpretado conforme a constituição da república. Vol. 1. 3. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. p. 346. No mesmo sentido, Caio Mário da Silva Pereira ensina que “O dispositivo [art. 187] oferece os extremos da caracterização do abuso do direito, assentando que o exercício dele há de ser limitado. O parâmetro instituído no Código está em que o sujeito de um direito subjetivo não o pode exercer em afronta à finalidade econômica ou social dele, ou contrariando o princípio da boa-fé ou os bons costumes. Não importa, na caracterização do uso ilícito do direito, a deliberação de malfazer – animus nocendi. É suficiente determinar que, independentemente desta indagação subjetiva, abusa de seu direito aquele que leva o seu exercício ao extremo de convertê-lo em prejuízo para outrem. O propósito de causar dano não requer apuração de intenção íntima do titular”” PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de direito civil. Vol. 1. 26. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2013. p. 565.
</div>
<div id="sdfootnote4">
<a class="sdfootnotesym" href="#sdfootnote4anc" name="sdfootnote4sym">4</a> MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 30. ed. rev. e atual. até a Emenda Constitucional nº 71, de 29.11.2012. São Paulo: Malheiros, 2012. p. 996.
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JOTA

Como interpretar o art. 4º da Lei nº 13.874/2019?

O abuso do poder regulatório na lei de liberdade econômica

Como interpretar o art. 4º da Lei nº 13.874/2019?