Liberdade de expressão

O abuso do direito de propriedade sobre a marca e o caso Legião Urbana

Não se pode conferir a ninguém o direito de veto ao patrimônio social

legião urbana
Integrantes da banda Legião Urbana. Crédito: Wikimedia Commons

Há tempos se noticia a novela Legião Urbana: Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá buscam a declaração judicial para que o herdeiro de Renato Russo se abstenha de impedi-los do legítimo direito ao uso da expressão Legião Urbana em suas atividades profissionais.

Muito embora o caso concreto esbarre em questões processuais relevantes e suficientes para obstar o processamento da causa (e.g. utilização de ação rescisória como sucedâneo recursal), a principal discussão travada nos autos diz respeito à utilização da marca por aqueles que participaram do processo de criação da banda e que contribuíram diretamente para o seu sucesso e para o seu renome nacional e internacional.

Não se questiona quem é seu titular, tampouco se há “titulares”. Trata-se de demanda judicial entre particulares e que, portanto, não envolve interesse jurídico do Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI), tendo em vista que inexiste pedido de declaração de nulidade ou qualquer outra repercussão direta no registro da marca. Por essa razão, foi afastada, inclusive, a competência da Justiça Federal.

Em síntese, a controvérsia pode ser resumida a um simples questionamento: Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá têm o legítimo direito de utilizar o nome Legião Urbana exclusivamente no exercício de suas funções profissionais enquanto músicos?

A controvérsia chegou ao Judiciário em três capítulos: inicialmente, Dado e Marcelo ajuizaram ação declaratória contra a Legião Urbana Produções Artísticas Ltda. – empresa que administra a marca –, para que pudessem utilizar o nome da banda no exercício da sua profissão. Após vencerem o processo, a empresa ajuizou ação rescisória. Paralelamente, ajuizou ação de cobrança contra Dado e Marcelo buscando o pagamento de 1/3 dos valores arrecadados nos shows que realizassem com o nome Legião Urbana.

Na ação rescisória, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) negou provimento ao recurso especial interposto pelo herdeiro de Renato Russo. Aliás, nada poderia ser mais justo. Dado e Marcelo foram muito além de ex-integrantes da banda. Foram, sobretudo, corresponsáveis, ao lado de Renato Russo, pela construção da identidade da Legião Urbana, pela idealização de uma cultura musical a nível nacional e pela composição dos maiores sucessos musicais que inequivocamente marcaram gerações de pais e filhos. Não por acaso, a Legião Urbana é rememorada pela trajetória construída conjuntamente pelos seus integrantes, e não pelo sucesso de um ou de outro.

O entendimento firmado pelo STJ prestigia o acesso e a difusão da cultura nacional e garante o exercício da liberdade artística e profissional daqueles que incontestavelmente participaram ativamente da criação e do sucesso da banda. Tem sido bastante comum a utilização de argumentos de direito autoral e do seu aspecto patrimonial, por parte de herdeiros de pessoas públicas, como forma de restringir a liberdade de expressão[1].

Contudo, essa posição patrimonialista do direito de marca desconsidera diversos valores bastante caros ao modelo de democracia constitucional implementado pela Constituição de 1988. Esse viés desconsidera que a liberdade de expressão ocupa uma posição preferencial[2] no ordenamento jurídico. A liberdade de expressão possui uma dimensão intrínseca: está associada à necessidade humana de se manifestar, porque a projeção da personalidade na sociedade, as suas opiniões e as suas manifestações são um importante traço da dignidade humana. Por outro lado, ela é também instrumental para a democracia, ao garantir que o debate público seja aquecido com diferentes argumentos, ideias e pontos de vista[3].

A censura, pública ou privada, é vedada expressamente (artigo 5º, IX e 220, § 2º, CF) e a liberdade de expressão goza de uma primazia prima facie frente a outros direitos e liberdades diante de sua centralidade para um Estado democrático de Direito. Não é diferente em relação ao presente caso: a garantia de livre manifestação não pode ficar condicionada ao pagamento de taxa ou indenizações, nem ser um poder de veto a priori de quem quer que seja. Trata-se de uma visão patrimonialista descompromissada com as liberdades fundamentais e com a democracia, valores mais caros e fundantes de qualquer sociedade democrática.

Também desconsidera a liberdade artística, cultural e de reunião, uma vez que os indivíduos são livres para se reunir, para produzir música, poesias, crônicas, peças, filmes ou qualquer outra forma de expressão. Traduz verdadeiro mecanismo de censura privada a exigência de que artistas tenham que pedir autorização a herdeiro ou a qualquer outra pessoa para que possam produzir e reproduzir a sua arte. Daí porque o Supremo Tribunal Federal (STF), na ADI 4.815, julgada em 10/06/2015, corretamente declarou a inconstitucionalidade da exigência prévia de autorização do biografado ou dos seus sucessores para a publicação de obra biográfica. Aliás, entender que existiria um direito potestativo de terceiro no sentido de autorizar ou proibir o desempenho de atividade profissional viola também o direito fundamental à liberdade profissional.

A discussão se mostra ainda mais interessante na medida em que se analisa os demais fundamentos jurídicos que justificam o porquê de Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá poderem utilizar a expressão marcária em suas atividades profissionais.

O principal deles é que a controvérsia circunscrita à exploração da marca deve ser analisada sob a perspectiva do direito fundamental de propriedade. Sendo assim, o intérprete da norma jurídica deve observar o princípio da função social, tal como determina o art. 5º, XXIII, da Constituição Federal. Aliás, como entende alguns autores de Direito Civil, após o marco da Constituição de 1988, a função social constitui o próprio direito de propriedade, de modo que o exercício desse direito sem que se observe a função social viola a Constituição. Assim, o direito de propriedade não é irrestrito, muito menos absoluto, sendo injustificável, do ponto de vista jurídico, que Dado e Marcelo sejam impedidos de utilizar uma marca que diretamente contribuíram para criação, sob pena de configurar abuso do direito.

Muito embora a controvérsia tenha sido devidamente dirimida quando do julgamento do REsp 1.860.630/RJ, aguarda-se a palavra final a ser proferida pela 2ª Seção do STJ que julgará os embargos de divergência opostos pela empresa do herdeiro de Renato Russo. Outra vitória relevante na novela Dado e Marcelo v. Legião Urbana Ltda. ocorreu recentemente quando o ministro relator do AREsp 1.757.331 deu provimento monocrático ao recurso dos músicos, para anular o acórdão do TJRJ, que não enfrentou a tese alegada por Dado e por Marcelo de que o uso que fizeram da marca Legião Urbana teria ocorrido no contexto do direito autoral – relacionado ao nome do primeiro álbum da banda musical de que eram membros e, por isso, igualmente titulares –, e não no âmbito da propriedade marcária.

Embora o caso não tenha terminado, tudo indica que o STJ vem entendendo que não se deve prestigiar uma posição absolutista em favor do direito de marca – e, por conseguinte, do direito de propriedade – a ponto de gerar resultados questionáveis do ponto de vista lógico-jurídico, como a proibição de que os membros de Legião Urbana se apresentem publicamente como Legião Urbana. Imaginem se Paul McCartney e os herdeiros de John Lennon pudessem proibir Milton Nascimento de cantar a famosa música “Para Lennon e McCartney”, com base na alegação de utilização não autorizada do nome dos ex-integrantes dos Beatles. Ou, ainda, se processassem Fernando Brant e Márcio e Lô Borges, compositores da música. Ou mesmo se Chico Buarque tivesse que indenizar todos os artistas citados em “Paratodos”. Se uma sociedade é marcada por sua cultura, pelos artistas, pelas obras e pelas músicas que produz, não se pode conferir a ninguém o direito de veto ao patrimônio social.

Urbana Legio Omnia Vincit – Legião Urbana vence a tudo.


[1] Utilizando o artigo 20 e 21 do CC, declarados parcialmente inconstitucional pelo STF na ADI 4.815, herdeiros de pessoas públicas proibiram a publicação de biografias que retratavam seus pais. Para fica com alguns exemplos, os filhos de Garrincha proibiram a veiculação do livro “Estrela Solitária – Um Brasileiro Chamado Garrincha”. Os herdeiros de Guimarães Rosa impediram a circulação de “Sinfonia de Minas Gerais – A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa – Tomo I” (o processo contava inclusive com argumentos sobre violação de direito autoral). Para um inventário de obras biográficas proibidas com base na exigência de prévia autorização, confira-se a obra de um dos autores deste artigo: LOPES, Eduardo Lasmar Prado. Um esboço das biografias no Brasil: a liberdade de expressão, a personalidade e a Constituição de 1988. São Paulo: Almedina, 2015, p. 55-96.

[2] A doutrina da posição preferencial da liberdade de expressão desenvolveu-se na Suprema Corte dos Estados Unidos. Destacam-se os casos “Murdock v. Commonwealth of Pennsylvania”, 319 U.S. 105 (1943) e “Thomas v. Collins”, 323 U.S. 516 (1945). Sobre o tema, no Brasil, confiram-se SCHREIBER, Simone. Liberdade de expressão: justificativa teórica e a doutrina da posição preferencial no ordenamento jurídico. In: BARROSO, Luís Roberto (Org.). A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro: Renovar, 2007; LOPES, Eduardo Lasmar Prado. Um esboço das biografias no Brasil: a liberdade de expressão, a personalidade e a Constituição de 1988. São Paulo: Almedina, 2015.

[3] Sobre o valor intrínseco e instrumental, confira-se: LOPES, Eduardo Lasmar Prado. Regulação é censura? Igual liberdade de expressão e democracia na Constituição de 1988. DADOS – Revista de Ciências Sociais, 2022 (no prelo).