Ariel Uarian

O <a href="https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=192235">PL 1446/1991</a>, apresentado pelo Poder Executivo, foi uma tentativa de resposta do governo Collor aos diversos escândalos de malversação de recursos públicos que pairavam sobre ele. A ideia geral era de criar limites aos agentes públicos, bem como estabelecer parâmetros de probidade.
Essa proposição resultou na <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8429.htm">Lei 8.429/1992</a>, conhecida como Lei de Improbidade Administrativa (LIA). Como bem se sabe, ela não atendeu ao fim inicial desejado, já que o presidente Fernando Collor acabou renunciando no mesmo ano de 1992. Todavia, os efeitos de sua sanção foram sentidos por anos a fio na administração pública.
Como toda legislação resposta – fruto de algum escândalo ou de alguma comoção social –, a LIA foi confeccionada de modo açodado e sem o devido debate legislativo. Resultando em imprecisões técnicas e conceitos excessivamente abertos, os quais não regulam devidamente temas complexos.
Foi preciso construções jurisprudenciais e doutrinárias para delimitar a amplitude da lei e que pudessem dar algum contorno e segurança jurídica na sua aplicação. Entretanto, elas não foram suficientes, já que o próprio texto era muito abstrato e trazia uma série de problemas.
Dentre as várias críticas que eram feitas, uma que era comum entre os doutrinadores e operadores do direito dizia respeito ao fato de que a redação original da antiga LIA não diferenciava o gestor que age com má-fé daquele que agia de boa-fé. O que gerava um cenário de insegurança dos agentes públicos e um receio generalizado de tomar decisões, causando uma paralisação da máquina pública, algo conhecido como "apagão das canetas".
Buscando enfrentar os problemas da antiga lei e melhorar o sistema como um todo, a <a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2021/Lei/L14230.htm">Lei 14.230/2021</a> alterou a antiga LIA e constituiu um novo sistema de apuração dos atos de improbidade administrativa. Dentre as diversas mudanças, a novidade legislativa acabou com a possibilidade de atos culposos serem enquadrados como improbidade administrativa. Portanto, é preciso que o agente público deseje praticar a conduta e alcançar determinado resultado ou tome o risco para tal.
Essa alteração foi alvo do julgamento do Tema 1.199 de Repercussão Geral (ARE 843.989) no STF e, em relação à extinção da improbidade administrativa culposa, <a href="https://www.jota.info/stf/do-supremo/stf-lei-de-improbidade-nao-deve-retroagir-salvo-para-processos-em-curso-18082022">foi aprovada a tese</a> de que a Lei 14.230/2021 retroage aos processos que ainda não foram alvo de julgamento transitado em julgado.
Também ficou assentado que a retroatividade não seria aplicada indistintamente, devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente. Essa disposição tem como objeto o fato de que durante a vigência da lei antiga não havia uma definição clara nas ações de improbidade do ato, já que tanto a culpa quanto o dolo configurariam improbidade.
A retroatividade é um acerto e a tese deveria ter se encerrado aqui. A determinação de que o juízo deve avaliar o dolo por parte do agente parece equivocada, pois cria uma abertura interpretativa grande e que gerará mais discussão no âmbito da aplicação da lei.
Um dos motivos para isso é que a nova LIA modificou significativamente a forma de processamento da ação de improbidade. A título exemplificativo, se antes o autor da ação poderia se valer de descrição vaga dos fatos, agora ele tem de descrever de forma individualizada as condutas e elementos probatórios (I e II, §6º, art. 17), sob pena de rejeição da inicial (§6-B, Art. 17).
É uma mudança significativa no processamento das ações de improbidade, visto que o STJ tinha jurisprudência consolidada no sentido de que a petição inicial das ações de improbidade administrativa não precisa descrever em minúcias as ações ou omissões praticadas pelos réus, bastava somente indícios<a href="#_ftn1" name="_ftnref2">[1]</a>. Desse modo, o juízo de admissibilidade da acusação não poderia antecipar-se à instrução do processo, mostrando-se necessário o prosseguimento da ação para viabilizar a produção probatória, necessária ao convencimento do julgador<a href="#_ftn2" name="_ftnref3">[2]</a>.
Partindo dessa premissa, era comum que se entrasse com ação de improbidade apenas narrando fatos genéricos imputando condutas diversas aos agentes, sem qualquer indicação precisa e individualizada dos atos praticados pelo agente público. Deixando para a fase instrutória a definição específica dos atos de improbidade.
A situação se assemelhava à pesca de arrastão, na qual se joga uma rede grande e pesada que é arrastada ao longo do fundo do lago ou rio para pegar tudo o que estiver em seu caminho, sem qualquer critério ou diferenciação. No caso das ações de improbidade, o autor apresentava ação completamente genérica e o que se comprovasse no decorrer do processo ele sustentaria como condenação.
A mudança legislativa invalidou esse entendimento e prática, pois, conforme visto acima, o autor da ação de improbidade tem o dever de individualizar e demonstrar que os fatos narrados possuem o dolo necessário para enquadrá-los como de improbidade administrativa, sob pena de rejeição da petição inicial.
Como bem se sabe, muitas vezes os órgãos judiciais não seguem a textualidade da norma. A ressalva feita no julgamento do Tema 1.199 do STF, num cenário de mudança de cultura e base legislativa, abre um espaço para o juiz siga uma lógica e um entendimento jurisprudencial que não tem mais fulcro na legislação.
Exemplificando: na hipótese de ação de improbidade com uma descrição de fato genérico e com apenas a imputação de improbidade culposa, o juiz vai permitir que o autor modifique o cerne da sua ação e indique o elemento subjetivo ou se aplica imediatamente a retroatividade julgando improcedente a ação?
A resposta que melhor parece se adequar à lei é aquela que indica a extinção da ação. Contudo, pela tese aprovada pelo STF, há uma abertura interpretativa para que isso não ocorra e o autor da ação possa modificar o fundamento jurídico de sua pretensão, passando da revogada improbidade culposa para a dolosa contida na nova lei.
O mais problemático, contudo, é que a discussão sobre a questão muito provavelmente não será objeto de definição pelo STF, mas sim do STJ, a quem cabe a interpretação sobre os aspectos da aplicação das normas infraconstitucionais. Percebe-se que a tese do STF, ao invés de resolver futuros casos, criou focos de discussão novos.
É comum dizer que a realidade é mais complexa do que a lei e as teses apresentam. No que se refere às ações de improbidade, essa assertiva é verdadeira e a tese firmada pelo STF, ao invés de trazer segurança, tornam as coisas ainda mais inseguras. Assim, a única certeza que se tem é que novos capítulos envolvendo as alterações da Lei de Improbidade Administrativa virão.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> AgInt no AREsp n. 1.678.296/SP, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 22/3/2021, DJe de 26/3/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn3">[2]</a> AgInt no AREsp n. 1.372.557/MS, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 1º/10/2019, DJe 7/10/2019; AgInt no AREsp n. 1.305.372/MS, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 9/4/2019, DJe 12/4/2019 e AgRg no AgRg no AREsp n. 558.920/MG, relatora Ministra Assusete Magalhães, Segunda Turma, julgado em 27/09/2016, DJe 13/10/2016

Fachada do edifício sede do Supremo Tribunal Federal – STF

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JOTA

Tese do STF, ao invés de resolver futuros casos, criou outros focos de discussão

Novos capítulos virão: a retroatividade da nova Lei de Improbidade

Tese do STF sobre a nova Lei de Improbidade, ao invés de resolver futuros casos, criou novos focos de discussão