Grupo de Estudos sobre Política Tributária

Com a aprovação pelo Congresso da <a href="https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/medida-provisoria-n-1.152-de-28-de-dezembro-de-2022-454516132">MP 1152/22</a>, que introduz a nova política brasileira de preços de transferência, aguarda-se a sanção presidencial que deverá ocorrer nos próximos dias. O texto aprovado pelo Senado, em 10 de maio, não teve alteração em relação ao aprovado antes pela Câmara dos Deputados.
Este estudo se destina a analisar as regras sancionadoras contidas no art. 36 da MP e a sua compatibilidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/STF">STF</a>).
<h3>As multas da MP 1152</h3>
De acordo com o art. 36, será passível da imposição de multa o contribuinte que descumprir ou cumprir intempestivamente as obrigações acessórias referidas no art. 35. Estas obrigações dizem respeito à apresentação de documentação e informação sobre (i) a transação controlada, (ii) as partes relacionadas, (iii) a estrutura e o funcionamento do grupo econômico e (iv) a alocação global de receitas e ativos, e os tributos suportados pelo grupo. A saber:
<ul>
<li>não apresentação tempestiva de documentos ou informações, multa de “dois décimos por cento, por mês-calendário ou fração, sobre o valor da receita bruta do período”;</li>
<li>prestação de informações inexatas, incompletas ou omitidas acerca da estrutura e do funcionamento do grupo econômico, e da alocação global de receitas e ativos, e dos tributos suportados pelo grupo, multa de “cinco por cento do valor da transação [...] ou de dois décimos por cento do valor da receita consolidada do grupo multinacional do ano anterior”;</li>
<li>cumprimento das obrigações acessórias sem observância dos requisitos para tanto, multa de “três por cento sobre o valor da receita bruta do período”;</li>
<li>“falta de apresentação tempestiva de informação ou de documentação requerida pela autoridade fiscal durante procedimento fiscal ou outra medida prévia fiscalizatória, ou por outra conduta que implique embaraço à fiscalização durante o procedimento fiscal, multa [...] de cinco por cento sobre o valor da transação”.</li>
</ul>
Em todos os casos, a multa tem o limite mínimo de R$ 20 mil e o limite máximo de R$ 5 milhões, sendo aplicável, na hipótese “c”, o limite máximo se (1) não houver informação sobre a receita consolidada do grupo multinacional no ano anterior ou (2) a informação não for devidamente comprovada.
A aplicação de quaisquer dessas penalidades não exclui outras que porventura sejam devidas relacionadas à obrigação principal (Cf. art. 37, § 1º, da MP).
O art. 37, § 1º, prossegue para determinar que, na eventualidade haver autorização conferida pelas autoridades fiscais à retificação das informações prestadas e em sendo esta realizada, nenhuma penalidade será aplicada.
<h3>A orientação da OCDE</h3>
As orientações (Guidelines) da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/OCDE">OCDE</a>), direcionadoras da política objeto da lei recém-aprovada, não sugerem um modelo sancionador; consideram ser matéria específica de cada ordenamento jurídico. A prática internacional, por sua vez, normalmente envolve a imposição de multas de valor fixo ou percentuais que variam entre 10 e 200, em função da culpabilidade, sobre o valor do tributo devido, do ajuste devido ou da transação controlada.
Na visão da Organização, se a imposição da penalidade constitui um elemento essencial à eficácia da política, a boa-fé do contribuinte deve ser avaliada para a gradação da sanção, principalmente frente à complexidade e incerteza que afetam tais obrigações.
<h3>A jurisprudência do STF</h3>
O tema das multas tributárias vem sendo examinado pelo STF, desde longa data. Quanto às obrigações principais (de pagar tributo, um dar), a jurisprudência da Corte, tradicionalmente, refere-se ao controle de proporcionalidade e à vedação do confisco por meio da fixação de limites percentuais máximos, em função da espécie de multa: (i) 100% do tributo para a multa punitiva<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a> e (ii) 20% do tributo para a multa moratória<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Em ambos os casos, não se avaliou situações de sonegação, fraude ou conluio.
Quanto às obrigações acessórias (como apresentar declaração e informação, e não obstar a fiscalização; um fazer ou deixar de fazer), o tema somente foi analisado quando do julgamento do Recurso Extraordinário nº 606.010 (Tema 872 da repercussão geral), da relatoria do ministro Marco Aurélio, em 24/08/20.
Nesse caso, discutia-se a proporcionalidade da multa de até 20% do tributo, em razão da entrega em atraso da Declaração de Débitos e Créditos Tributários Federais (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/DCTF">DCTF</a>) (art. 7º, II, da Lei 10.426/02). Concluiu-se pela sua constitucionalidade, pois (i) a base de cálculo da multa era o próprio tributo, estando em consonância com a proporcionalidade, capacidade contributiva e igualdade; e (ii) o percentual máximo de 20% do tributo não era confiscatório ou desproporcional.
Mais recentemente, o tribunal retomou o tema, ao iniciar o julgamento do Recurso Extraordinário 640.452 (Tema 487 da repercussão geral) e da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.465, ambos da relatoria do ministro <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/luis-roberto-barroso">Luís Roberto Barroso</a> – o julgamento foi suspenso em razão do pedido de vista do ministro Dias Toffoli.
Nessa oportunidade, examina-se a constitucionalidade de multa isolada por descumprimento de obrigação acessória, quando há obrigação principal subjacente, sem que haja sonegação, fraude ou conluio.
Ao sistematizar as multas tributárias, o relator concluiu que as multas por violação à obrigação principal ou acessória visam a tutelar um mesmo bem jurídico, o interesse arrecadatório e, por via de consequência, a capacidade contributiva, a igualdade e a livre concorrência entre os agentes econômicos. Ao mesmo tempo, há um escalonamento de reprovabilidade das condutas que deve se refletir nas multas aplicadas, especialmente porque o descumprimento da obrigação principal é mais grave do que o descumprimento da obrigação acessória. A lógica subjacente é que a obrigação acessória existe em virtude da obrigação principal, ou seja, não é um fim em si mesma, ainda que seja autônoma em relação à obrigação principal.
Quanto à base de cálculo da multa isolada, o ministro Barroso sustentou que esta deve, sempre que possível, ser o tributo, e o percentual fixado não deve exceder 20% deste, dado o escalonamento entre os ilícitos tributários: a multa por descumprimento de obrigação acessória não deve superar o menor limite máximo da multa devida no caso de descumprimento de obrigação principal (limite da multa moratória).
O relator ainda endossou o princípio da consunção<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, segundo o qual, quando o descumprimento da obrigação acessória (ilícito-meio) for um meio para o descumprimento da obrigação principal (ilícito-fim), a multa do ilícito-meio deve ser absorvida pela multa do ilícito-fim, vedada a sua cumulação.
Enfatizou, por fim, que o legislador ordinário, ao disciplinar as multas em razão do descumprimento de obrigação acessória, deve tipificar o maior número possível de condutas, de modo a individualizar as penalidades de acordo com a gravidade do ilícito, além de prescrever elementos atenuantes e/ou agravantes, à condição de que não exceda o percentual máximo fixado.
<h3>A desproporcionalidade das multas do art. 36 da MP</h3>
Com essa base jurisprudencial, retomam-se as multas do art. 36 da MP. Como visto, variam entre dois décimos por cento e cinco por cento sobre o valor da receita bruta do período, da transação correspondente e da receita consolidada do grupo multinacional do ano anterior, atendidos os limites mínimo de R$ 20 mil e máximo de R$ 5 milhões. Em nossa opinião, essas multas poderiam vir a ser questionadas em razão da desproporcionalidade entre a gravidade do ilícito e a penalidade, sobretudo em razão da base de cálculo eleita pela lei.
Embora a Suprema Corte não tenha vedado a utilização de base de cálculo diversa do tributo, a sua utilização, sempre que possível, deve ser conversível na ou referível à multa por descumprimento de obrigação principal, viabilizando assim a comparação entre as penalidades e o correspondente juízo de proporcionalidade. Alerta-se, na situação em que se calcula a multa em função da receita consolidada do grupo multinacional, para o risco substancial de que o quantum devido exceda o próprio tributo.
É preocupante, ainda, a ausência de tipificação do maior número possível de condutas e variantes, para atender novamente à proporcionalidade – aqui entendida como um comando de individualização da multa –, mormente diante da complexidade e indeterminação das regras de preço de transferência. Mesmo nas hipóteses do artigo 37, em que o contribuinte poderá ser autorizado a não sofrer penalidades, as balizas descritas nos seus incisos são amplas e se antecipa a discricionaridade na sua aplicação.
<h3>A absorção da multa isolada pela multa de ofício</h3>
Acrescente-se às considerações anteriores o princípio da consunção, que determina que, na eventualidade de existir uma conexão entre o descumprimento da obrigação acessória e do descumprimento da obrigação principal, a multa daquela deve ser absorvida pela multa desta. Esse tratamento não apenas obedece ao modo de cometimento do ilícito dada a sequência de atos e omissões direcionados ao atingimento de um único fim, assim como respeita a proporcionalidade.
Autoria
Raquel Novais - Sócia de Direito Tributário do Machado Meyer, mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Email: rnovais@machadomeyer.com.br
Clara Gomes Moreira - Advogada sênior de Direito Tributário do Machado Meyer, professora do mestrado profissional do Instituto Brasileiro de Direito Tributário, doutora e mestre em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo. Email: cgmoreira@machadomeyer.com.br
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Cf. RE 1.335.293 (Tema 1.195 da repercussão geral), Rel. Min. Nunes Marques, pendente de julgamento.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Cf. Agravos Regimentais nos Agravos de Instrumento nºs 727.872 e 682.983, Primeira Turma, relatoria do Ministro Luís Roberto Barroso, julgamento em 28.04.15 e 04.08.15; Recurso Extraordinário nº 882.461 (Tema 816), relatoria do Ministro Dias Toffoli, julgamento ainda pendente de conclusão.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Cf. STJ, REsp nº 1.496.354, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgamento em 17/03/15.

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