Guilherme Jardim Jurksaitis

Edcarlos Alves Lima

A nova Lei de Licitações (<a href="http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2021/lei/L14133.htm">Lei 14.133/2021</a>) contém uma exigência específica para os editais de licitação de “grande vulto”, que são aqueles com valor estimado igual ou superior a R$ 200 milhões: a obrigatoriedade de que o licitante vencedor constitua um programa interno de compliance, em até 180 dias a contar da assinatura do contrato. A lei dispõe que serão definidos em regulamento os elementos para verificação do efetivo cumprimento da medida, bem como as consequências para o seu não atendimento pelo contratado (artigo 6º, XXII e artigo 25, §4º).
Embora inovadora numa lei de compras nacional, a medida não é totalmente inédita. Antes de sua edição, entes subnacionais editaram normas próprias para exigir de seus contratados a constituição e manutenção de programas de compliance. No estado do Rio de Janeiro, por exemplo, a exigência se aplica às contratações com valores superiores a R$ 650 mil, para compras e serviços comuns, e a R$ 1,5 milhão, para obras e serviços de engenharia (Lei Estadual 7.753/2017, artigo 1º). No Distrito Federal, a obrigatoriedade alcança contratos com valores superiores a R$ 5 milhões (Lei Distrital 6.112/2018, artigo 1º).
As leis do Rio de Janeiro e do Distrito Federal sugerem que é alto o valor estabelecido pela nova Lei de Licitações a partir do qual passa a ser obrigatória a constituição de programa de compliance. Há uma hipótese para explicar isso. A elaboração desses programas passa por um diagnóstico preciso da organização em que se insere, de sua cultura corporativa e das relações que desenvolve com seus colaboradores, fornecedores e clientes.
E sua implantação pode exigir algum grau de convencimento dos atores envolvidos e, principalmente, mudanças profundas nas dinâmicas da empresa e no comportamento de seu quadro de pessoal. Não são tarefas simples, que possam ser bem executadas em pouco tempo ou com baixo custo. Por esses motivos, faz sentido limitar a exigência de constituição de programas de compliance em contratações públicas, a depender, por exemplo, dos valores envolvidos.
Além disso, um outro elemento que pode ajudar a esclarecer o elevado limite é que a elaboração da Lei 14.133/2021 foi pensada para a realidade da União, em que contratações de “grande vulto” podem ser mais frequentes do que nos entes subnacionais, em especial os de âmbito municipal.
<h3>Competência para exigência de compliance por entes subnacionais</h3>
Na prática, o valor previsto pela Lei 14.133/2021 pode afastar a exigência de constituição de programas de compliance de parcela significativa das licitações realizadas no país. Afinal, parte expressiva delas serve para o atendimento de necessidades públicas básicas e de custo comparativamente baixo, como a distribuição de medicamentos para primeiro atendimento, o fornecimento de merenda escolar e a manutenção de vias e próprios públicos. Esses serviços são comumente contratados pelas administrações municipais, individualmente, no “varejo”, sem que haja escala para alcançar a cifra de R$ 200 milhões prevista pela nova lei e a partir da qual passa a ser mandatório o desenvolvimento de programa de compliance.
De outro lado, é inegável que a nova Lei de Licitações procurou incentivar a criação de programas de compliance por fornecedores do Poder Público. Além do disposto no artigo 25, §4º, a lei reconhece o desenvolvimento de programa de compliance como critério de desempate (artigo 60, IV) e como elemento a ser considerado para a gradação das sanções (artigo 156, §1º, V). A lei também exige a implantação de programa de compliance como condição para a reabilitação de licitante apenado do direito de contratar com o poder público, em decorrência da apresentação de documentação falsa, da prática de ato lesivo ao erário ou de oferta indevida a agente público (artigo 163, parágrafo único).
Nesse contexto, é razoável questionar: os entes federativos subnacionais podem instituir, por lei, valor inferior ao estipulado pela nova lei para exigir de seus contratados a implantação de programas de compliance?
A resposta passa pela conhecida discussão sobre os limites da competência atribuída para a União legislar sobre “normas gerais de licitação e contratação” (CF, artigo 22, XXVII). Em artigo publicado neste Jota <a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, Egon Bockmann Moreira criticou a visão tradicional, que "assentou um conteúdo material restritivo da 'generalidade'", a partir do que se estabeleceu que “normas de licitação serão gerais desde que não desçam a minúcias e não agridam a independência das pessoas políticas”. Como reconheceu o autor, essa visão “não resolve o problema”, deixando em aberto o que seria ou não norma geral e, portanto, de competência legislativa privativa da União. A solução proposta por Egon é considerar como norma geral todo o conteúdo da lei nacional, editada pela União, admitindo que “apenas as particularidades dos demais entes [da Federação] poderão autorizar normas infraconstitucionais especiais”.
Na mesma direção é a opinião de Rodrigo Aguirre de Castro e Mirela Mirá Zilotto, para quem “as normas gerais são abertas, traçam diretrizes, diferentemente dos atos e normas que são editados para atender às peculiaridades de cada ente, o que fica a cargo das normas especiais” <a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. Comentando especificamente o expressivo valor previsto pela nova lei para a exigência de constituição de programa de compliance em contratos públicos, esses dois autores defendem se tratar de norma especial, aplicável apenas à União, cabendo aos estados, ao Distrito Federal e aos municípios definirem valores mais adequados a suas próprias realidades.
<h3>Contexto importa muito em contratações públicas</h3>
Concordamos com os três autores citados anteriormente. Em matéria de contratações públicas, o contexto pode importar, e muito. Por isso, é necessário conferir espaço adequado para que os entes subnacionais possam adequar os comandos da Lei 14.133/2021 para suas próprias realidades. Em vários dispositivos, a nova Lei de Licitações se mostrou mais sensível a isso do que ao tratar da exigência de programa de compliance.
Primeiro, ao conferir prazo diferenciado e estendido, de até seis anos a contar de sua edição, para que municípios com menos de 20 mil habitantes se adequem a algumas regras de governança e de realização de licitações por meio eletrônico (artigo 176). São 3.782 municípios nessa condição, o que corresponde a 67,92% de um total de 5.568 municípios.
Segundo, porque em diversos artigos a lei reconheceu a necessidade de regulamentação posterior para sua plena eficácia, abrindo margem para que os entes subnacionais possam decidir como implantar as exigências da nova lei em suas rotinas. Mas é difícil a tarefa de identificar a competência normativa para a edição de cada um dos regulamentos previstos pela nova lei, que em larga medida foi omissa a esse respeito.
<h3>Limites para exigência de compliance dos contratados</h3>
A partir do quadro acima, é seguro afirmar que não é estranha à nova lei a possibilidade de entes subnacionais adaptarem seu conteúdo em face de suas próprias peculiaridades e desafios. No tema do compliance, inexistindo norma expressa nesse sentido, é preciso ter cautela.
Há ao menos uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que pode oferecer parâmetros para que os entes subnacionais não extrapolem suas competências normativas em matéria de licitação e contratos. No caso, o STF julgou inconstitucional uma lei editada pelo estado de Mato Grosso do Sul, que exigia a apresentação de “certidão negativa de violação a direitos do consumidor” como condição de habilitação em certames públicos <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Para a Corte, “somente será legítimo inovar [no direito de participar de licitações em condição de igualdade] se tiver como objetivo estabelecer condições específicas, nomeadamente quando relacionadas a uma classe de objetos a serem contratados ou a peculiares circunstâncias de interesse local”.
Esse entendimento, aliás, foi expressamente invocado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) ao julgar pela inconstitucionalidade de lei de Mauá (SP), que, antes mesmo da edição da Lei 14.133/2021, exigia a implantação de programa de compliance, por parte de todo e qualquer contratado da Administração Pública local (Lei Municipal 5.398/2018, artigos 1º e 2º) <a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
O TJSP verificou usurpação da competência reservada à União para a edição de “normas gerais de licitação e contratação” (Constituição, artigo 22, XXVII). Além do precedente do Supremo acima referido, o TJ paulista citou ainda decisões suas que condenaram leis municipais que criaram hipótese nova de dispensa de licitação<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> e instituíram a obrigatoriedade de contratar seguro garantia para qualquer contrato público <a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>. É preciso destacar que a inconstitucionalidade da lei editada pelo município de Mauá foi declarada antes da edição da nova Lei de Licitações. Portanto, naquela altura, não havia qualquer orientação, em norma geral, editada pela União, quanto à exigência de programa de compliance em contratações públicas.
Em todos os casos acima referidos, tanto o STF quando o TJSP declararam a inconstitucionalidade de leis editadas por entes subnacionais cujo conteúdo criava verdadeira exceção às regras gerais, sem qualquer justificativa de acomodação à realidade local. Não se tratava de normas especiais, específicas, editadas com o intuito de conformar a norma geral às peculiaridades e necessidades locais do respectivo ente federativo. Nos casos apreciados, na prática, entes subnacionais legislaram para afastar – indevidamente – normas gerais legitimamente editadas pela União, dentro de sua competência legislativa.
<h3>Entes subnacionais podem estabelecer valores próprios</h3>
Voltando ao caso do município de Mauá. Talvez fosse outro o destino da lei local declarada inconstitucional pelo TJSP se duas circunstâncias estivessem presentes.
A primeira é a própria obrigação de constituição de programa de compliance, nos termos do artigo 25, §4º da nova Lei de Licitações, que não existia à época do julgamento. Isso mostraria que a exigência questionada, ainda que feita por lei local, estaria de algum modo aderente à previsão constante de lei geral, editada pela União. Mas essa circunstância não seria suficiente para, sozinha, garantir a constitucionalidade da lei municipal.
E aqui vem o segundo e mais importante elemento a ser considerado pelos entes federativos ao editarem leis prevendo obrigação semelhante para seus contratados: a exigência deveria ser condicionada conforme as especificidades e particularidades do respectivo ente federativo. A lei impugnada deveria ter estabelecido parâmetros a partir dos quais a exigência de programa de compliance passaria a se impor, à luz da realidade e das necessidades do respectivo ente federativo.
Essas cautelas parecem atender aos parâmetros mencionados pelos tribunais e as orientações da literatura acima referidos, no sentido de reconhecer aos entes subnacionais competência normativa em matéria de licitações e contratos, desde que para adequar as providências instituídas pela lei nacional a suas realidades e particularidades.
Atendidos esses pressupostos, é seguro afirmar que os entes podem, sim, estabelecer valores específicos a partir dos quais passa a ser obrigatória a constituição de programas de compliance em suas licitações, a exemplo do que fez o artigo 25, §4º da Lei 14.133/2021. Mas desde que sejam capazes de demonstrar, se questionados, que os valores estabelecidos estão de acordo com suas próprias realidades e não se prestam a limitar, ainda que por meio indireto, a ampla competição que se espera nas licitações públicas. Nas palavras do professor Egon Bockmann Moreira, no artigo já citado, “[a]penas as particularidades dos demais entes [em relação à União] poderão autorizar normas infranacionais especiais – e o ônus legislativo/argumentativo é dos estados, Distrito Federal e municípios”.
*As opiniões expressas neste texto são de exclusiva responsabilidade dos autores e não se confundem com as das instituições que integram.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Egon Bockmann Moreira, “Por uma nova compreensão das normas ‘gerais de licitação” in Jota, 4/5/2021. Disponível em: <a href="https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/por-uma-nova-compreensao-das-normas-gerais-de-licitacao-04052021">https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/publicistas/por-uma-nova-compreensao-das-normas-gerais-de-licitacao-04052021</a>. Acesso em 15/12/2021.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Rodrigo Aguirre de Castro e Mirela Mirá Zilotto, “Comentários ao artigo 25, §4º da Lei 14.133/2021” in Augusto Neves Dal Pozzo, Márcio Cammarosano, Maurício Zockun (coord.), Lei de Licitações e Contratos Administrativos Comentada. São Paulo: Revista dos Tribunais, p.:184, nota de rodapé 12.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STF. Plenário. ADIN 3735/MT, j. 8/9/2016.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> TJSP. Órgão Especial. ADIN 2033600-80.2020.8.26.0000, j. 16/9/2020.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> TJSP. Órgão Especial. ADIN 2243243-15.2019.8.26.0000, j. 13/5/2020.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> TJSP. Órgão Especial. ADIN 2234310-53.2019.8.26.0000, j. 12/2/2020.

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Entes subnacionais podem adequar a exigência em face de suas realidades

Nova Lei de Licitações e o compliance de contratos municipais de &#8216;grande vulto&#8217;

Nova Lei de Licitações e o compliance de contratos municipais de 'grande vulto'

Entes subnacionais podem adequar a exigência da nova Lei de Licitações sobre programas de compliance de contratados em face de suas realidades