Guilherme Jardim Jurksaitis

Rafael Carvalho de Fassio

A nova lei de contratações públicas já está em vigor e produzindo regulares efeitos. Mas o artigo 191 do novo diploma manteve vivo o regramento pretérito por mais dois anos, criando um período de transição em que a prática consolidada em torno do regime antigo poderá servir para que a Administração se adapte à nova realidade.
De certo modo, a regra é o reconhecimento de que a aplicação integral da Lei 14.133/2021 altera as rotinas administrativas das contratações públicas, o que demanda a adoção de diversas providências a serem realizadas de modo centralizado pela União, como a criação do Portal Nacional de Contratações Públicas (PNCP), ou individualmente, pelos entes federados.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>No entanto, já está correndo e há de terminar o prazo de dois anos que nos separam da revogação completa da Lei 8.666/1993, da Lei do Pregão e da Lei do Regime Diferenciado de Contratações. O que fazer até lá? Como criar condições para que a nova lei seja assimilada pela praxe administrativa antes da supressão do antigo regime das licitações e contratos públicos?
O objetivo deste texto é apresentar uma proposta de transição gradual e ordenada rumo à lei nova, chamando a atenção para alguns aspectos (nem sempre jurídicos) que precisam ser considerados ao longo desse processo. Os quatro passos apresentados a seguir não são um roteiro universal, nem pretendem sê-lo.
Ao contrário, devem ser analisados à luz da realidade e das particularidades de cada órgão e entidade que compõem essa máquina heterogênea, complexa e diversificada que chamamos de Administração Pública.
Primeiramente, é de suma importância que o uso pontual da nova lei seja fomentado e incentivado desde já, e antes do exaurimento do prazo de dois anos para a revogação das leis anteriores. Criar um espaço de experimentação do novo regime jurídico das licitações e contratos pode ser interessante para que os atores envolvidos possam testá-la na prática, perceber suas dificuldades e identificar os pontos que merecem ajustes ou atenções adicionais.
Para tanto, pode fazer sentido delimitar objetos específicos, rotineiros e simples, como materiais de escritório ou serviços de recapeamento de asfalto, para serem contratados exclusivamente com base na nova lei. Alternativamente, pode-se estabelecer um cronograma segundo o qual se tornaria compulsória a aplicação das modalidades de licitação e contratação previstas na lei nova a partir de dado momento, afastando gradualmente a discricionariedade de optar pela legislação pretérita.
Um decreto editado pelo chefe do Poder Executivo local, por exemplo, poderia estabelecer, autorizar ou aprovar esse cronograma, evitando que a mudança para o novo regime ocorra no mesmo momento, de uma só vez.
Em segundo lugar, é necessária a adequação dos sistemas eletrônicos de contratação, orçamento e gestão de patrimônio às regras da nova lei. A variabilidade, aqui, é imensa: muitos entes federados mantêm sistemas próprios para a gestão de suas contas, abrangendo desde a reserva orçamentária até as fases de empenho, liquidação e pagamento.
Outros sistemas, mais complexos, incluem a administração de estoques de materiais permanentes, a publicação de atos na imprensa oficial e até mesmo e realização de procedimentos de contratação na própria plataforma do ente federado, como dispensas pelo valor e pregões.
Esses sistemas eletrônicos foram desenvolvidos e parametrizados com base nas regras do regime antigo e demandam adaptações (ou reformulações, em alguns casos) para serem adequados à Lei 14.133/2021.
Por exemplo, a lei nova determina a necessidade de gravação em áudio e vídeo de sessões presenciais, uma importante medida de transparência que não estava prevista no regime anterior (artigo 17, § 2º). O grau de intervenção necessário em cada caso depende da abrangência e das características técnicas de cada sistema de TI.
<blockquote class="jota-article__eye">Mas parece certo afirmar que a realização de contratações em descompasso com os sistemas eletrônicos em uso pela Administração pode suscitar uma desorganização gerencial, com consequências negativas não apenas para a correta aplicação da lei, mas também para o controle dos gastos públicos e para a gestão das contas do governo.</blockquote>
Em terceiro lugar, e em sintonia com as etapas anteriores, será necessário dedicar especial atenção à elaboração dos regulamentos internos de cada ente federado, definindo as competências, o conteúdo dos documentos de planejamento interno e as demais providências necessárias para a adequação das rotinas administrativas das contratações públicas às regras da nova lei.
Nem sempre será possível reconhecer a recepção de atos normativos antigos, editados sob a égide da Lei 8.666/1993, pelo regime estabelecido na Lei 14.133/2021. Além disso, a regulamentação é especialmente relevante em temas que foram tratados de forma inédita pela nova lei, como a disciplina dos agentes de contratação (art. 8º), a modalidade diálogo competitivo (art. 32) e o credenciamento, que remete de forma expressa a regulamento (art. 79).
Em paralelo, é importante a elaboração de novos modelos de editais, contratos e outros documentos padronizados que simplifiquem a aplicação da lei nova pelos gestores, minimizando erros e favorecendo uma transição alinhada com as recomendações da Advocacia Pública e dos órgãos de controle interno e externo de cada ente.
Em quarto lugar, não deve ser menosprezada a importância da realização de programas de capacitação e treinamento dos servidores públicos. Segundo o IPEA, a falta de uma carreira estruturada e horizontal de gestores de compras no Brasil faz com que o tema seja tratado de maneira bastante difusa pela Administração, ficando frequentemente a cargo de servidores com formação incompatível com o nível de responsabilidade assumido (<a href="http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/3362/1/td_1990.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">FIUZA; MEDEIROS, 2014</a>).
O cenário destoa das melhores práticas internacionais. Por exemplo, um levantamento realizado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico revela que 18 entre os 29 países consultados possuem carreira específica para a gestão da área de compras (<a href="https://read.oecd-ilibrary.org/governance/government-at-a-glance-2013_gov_glance-2013-en#page137" target="_blank" rel="noopener noreferrer">OCDE, 2013, p. 135</a>).
A nova lei de licitações manteve o modelo atual, mas oferece uma oportunidade para que as escolas de governo ampliem a oferta de capacitação, atuando em parceria e fazendo uso intensivo da tecnologia (p. ex. art. 173). De todo modo, é necessário ir além dos tradicionais cursos de formação de pregoeiros, difundindo as novidades trazidas pela lei e preparando a aplicação de regulamentos, sistemas eletrônicos e documentos padronizados.
Por fim, é importante destacar o papel do controle interno, da Advocacia Pública e dos Tribunais de Contas para que as etapas necessárias à aplicação da nova lei sejam tempestivamente adotadas. Não cabe ao controle definir esses passos, que devem ser eleitos à luz das especificidades de cada ente, nem estabelecer o melhor momento para a sua adoção.
Mas é claro que os Tribunais de Contas irão preencher esse espaço caso se perceba, com o passar do tempo, que pouco ou nada tem sido feito em proveito da Lei 14.133/2021. Monitorar o engajamento da Administração na implantação das rotinas administrativas das contratações públicas, conforme estabelecidas pela nova lei, pode ser um aspecto a ser considerado nas auditorias e inspeções realizadas pelos Tribunais de Contas, como forma de assegurar a aplicação integral da Lei 14.133/2021 tão logo se opere a revogação da legislação anterior.
Independentemente dos quatro passos sugeridos neste artigo, o maior risco é que a aplicação da lei nova fique presa às amarras da lei velha. E a inação parece ser o caminho mais rápido para que esse temor se torne realidade. “Qualquer caminho serve se você não sabe para onde vai”, na conhecida paráfrase de Lewis Caroll.
Agora, mais do que nunca, é o momento de aproveitar o regime de transição estabelecido pelo artigo 191 da Lei nº 14.133/2021 para definir um cronograma realista e pôr em marcha as ações que irão definir, daqui a dois anos, se teremos dado um passo adiante ou para trás na regulação das compras públicas em nosso país.
As opiniões expressas neste artigo são de exclusiva responsabilidade de seus autores e não se confundem com as das instituições que integram.
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