Análise

Notícias falsas na medicina

A importância do diálogo como mecanismo de promoção da autonomia do paciente

Crédito: unsplash

A relação médico-paciente é, inicialmente, assimétrica. De um lado, o paciente acometido de alguma questão de saúde e sem conhecimento técnico e, do outro, o médico dotado de conhecimento especializado.

No paradigma hipocrático-paternalista, o médico deveria utilizar seu conhecimento em prol do benefício do paciente, visando curá-lo da enfermidade que o acometesse, a partir da utilização das melhores técnicas.

Assim, não perpassava pelo paciente a decisão quanto às questões pertinentes à sua saúde (como a escolha ou recusa de algum tratamento), justamente por se entender que ele, paciente, não teria condições de decidir por ser desprovido do conhecimento necessário. Desta sorte, o poder decisório mantinha-se com os médicos.

Com o passar do tempo e, sobretudo, após os terrores do Holocausto – em que se observou uma intervenção desmedida da medicina sobre o corpo humano em experimentos, que buscavam, exclusivamente, o progresso científico, sem maior atenção à vontade do paciente -, a questão da autonomia do paciente sobre tratamentos e experimentos passou a ser considerada (VASCONCELOS, 2010).

De fato, em 1974, os Estados Unidos, no bojo do National Research Act, criaram uma comissão com o objetivo de estudar questões éticas ligadas a pesquisas em medicina, a qual acabou propondo “três princípios gerais fundamentais: 1) respeito pelas pessoas, 2) beneficência e 3) justiça” no chamado Relatório Belmont, de 1978 (ÁLVAREZ; FERRER, 2005, p. 122).

A partir do supracitado Relatório, os pesquisadores Tom L. Beauchamp e James F. Childress desenvolveram sua bioética dos princípios, a qual se aplicará não apenas à pesquisa em medicina, mas também às demais atividades biomédicas, a exemplo da relação médico-paciente.

Os princípios propostos por eles são: o respeito pela autonomia, a beneficência, a não-maleficência e a justiça.

Apesar de os referidos autores não indicarem um princípio que seria preponderante aos demais, Álvarez e Ferrer argumentam que o princípio que determina o respeito pela autonomia ocupa centralidade nessa teoria principialista.

A autonomia é analisada dentro do contexto da tomada de decisão, com foco na análise do consentimento e da recusa informados.

É nessa perspectiva que Beauchamp e Childress vão se preocupar mais com a ação autônoma que propriamente com as pessoas autônomas. A ação autônoma, segundo eles, demanda um agir intencional, com compreensão e livre de influências externas (ÁLVAREZ; FERRER, 2005).

Historicamente, a dificuldade no exercício da autonomia pelo paciente decorre da ausência de informações a respeito de termos e conceitos da área médica.

Contudo, nos últimos anos, especialmente com a popularização da internet e dos meios de informação digitais, o que se tem visto é um bombardeamento de desinformação, a dificultar ainda mais a tomada de decisões efetivamente autônomas em saúde.

De fato, a área de saúde parece ser uma das que vem sendo mais afetada com notícias falsas, levando, inclusive, o Ministério da Saúde a criar uma aba no seu site[1] para combatê-las.

Sobre a pandemia do novo coronavírus, por exemplo, não faltaram notícias falsas: divulgou-se que o uso de álcool em gel tornaria a pele mais permeável ao vírus[2], que as máscaras causariam infecção bacteriana[3] e reduziriam o nível de oxigênio no sangue[4], que a hidroxicloroquina teve sua eficácia comprovada contra a doença[5][6], que alguns alimentos curariam ou preveniriam a moléstia[7] e até que o swab comprometeria a barreira hematoencefálica[8].

Quanto às vacinas contra a Covid-19, que, em geral, ainda estão em fase de testes, já se disse que conteriam microchip de controle[9], criariam seres humanos geneticamente modificados[10] e que seriam produzidas a partir de células de fetos abortados[11]. Sobre esse tema, inclusive, Estados Unidos, Brasil e Espanha lideram em desinformação, com diversas notícias falsas sobre morte de voluntários e teses fantasiosas[12].

Nesse contexto, o fortalecimento da relação médico-paciente, através da boa comunicação se mostra ainda mais importante. É dizer, para viabilizar o exercício da autonomia do paciente, faz-se necessário um esforço no sentido da simetralização  do conhecimento, com o médico transmitindo conhecimentos essenciais (VASCONCELOS, 2010),  desmistificando crenças e permitindo o acesso do paciente ao consenso científico, ao menos no que diga respeito aos pontos relevantes para a sua tomada de decisão.

De fato, a prestação de informações ao paciente sobre o diagnóstico, prognóstico, riscos e opções de tratamento é obrigação do médico, assentada no art. 34 do Código de Ética Médica, além de ser um direito do paciente.

No contexto atual, contudo, é preciso ir além.

É absolutamente importante que o profissional da medicina esclareça, em linguagem acessível e adequada ao nível de instrução do paciente, todos os pormenores da condição dele, os tratamentos possíveis e os principais riscos atrelados.

Em seguida, deve checar a compreensão do paciente, questionando-o a respeito do que foi anteriormente exposto e oportunizando que ele exponha suas dúvidas, para que sejam sanadas sem julgamentos sobre as possíveis avaliações equivocadas ou as crenças infundadas.

No caso de aplicação do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) – instrumento utilizado para obtenção do consentimento em caso de tratamento ou intervenção médica -, recomenda-se que assuma a forma escrita, seja elaborado em linguagem simples e contemple a situação específica do paciente (OLIVEIRA; PIMENTEL; VIEIRA, 2010).

Após, importante que o médico leia o TCLE na companhia do paciente, esclarecendo suas dúvidas. Esse passo é absolutamente relevante, na medida em que o texto médico pode ser de difícil compreensão para boa parte dos pacientes, ainda que o profissional se dedique a redigi-lo em linguagem simples e sem jargões (BIONDO-SIMÕES; UEDA, 2007).

Por fim, caso exista tempo hábil, mostra-se interessante que o procedimento para o qual o consentimento está sendo colhido não seja realizado no mesmo dia, de modo a oportunizar que o paciente o leve para a casa e possa estudá-lo com mais atenção. Nesse cenário, o médico deve se mostrar disponível para, em outra oportunidade, esclarecer as dúvidas que surgirem após essa leitura solitária do paciente.

A comunicação médico-paciente não deve se desenrolar como um monólogo, no qual um expõe seus conhecimentos e o outro ouve passivamente, mas como um diálogo, no qual o paciente pode manifestar seus conhecimentos prévios, medos, crenças e notícias a que teve acesso, permitindo, assim, que o profissional da medicina os confirme ou faça os esclarecimentos pertinentes.

Somente assim, poderá o paciente decidir sobre questões relacionadas à sua saúde de forma mais autônoma, mitigando a influência das ondas de desinformação e fortalecendo a confiança como substrato da relação com o médico de sua escolha. A maior autonomia do paciente nas suas escolhas terapêuticas implica também sua maior responsabilidade sobre elas, minimizando ainda o risco de conflitos na relação médico-paciente.

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[1] https://www.saude.gov.br/fakenews

[2] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/27/verificamos-post-sistema-imunologico/

[3] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/14/verificamos-mascaras-infeccao-bacteriana/

[4] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/08/verificamos-mascara-oxigenio-protecao/

[5] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/31/verificamos-coquetel-hidroxicloroquina/

[6] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/24/verificamos-estudo-henry-ford-hidroxicloroquina-covid-19/

[7] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/02/verificamos-limao-melao-covid/

[8] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/15/verificamos-swab-teste-cerebro/

[9] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/04/verificamos-vacina-5g-microchip/

[10] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/22/verificamos-vacinas-covid-altera-dna/

[11] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/07/23/verificamos-coronavac-bebes-abortados/

[12] https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2020/08/27/coronavirus-vacinas-conspiracao/