Direito Penal

Norma penal em branco escalonada

A possibilidade de todos os entes da Federação complementarem a norma penal em branco

icms, Estados pedem ao Congresso prorrogação do auxílio renda emergencial, suspensão do teto de gastos e do pagamento de dívidas
Crédito: Marcos Oliveira/Agência Senado

Norma penal em branco e sua origem

A norma penal deve ser estudada a partir de sua estrutura, tempo e da forma como é posta, pois há um pressuposto fático e sua respectiva consequência prático-jurídica. Diante da evolução social e da expansão do Direito Penal, faz-se necessária a utilização de novas técnicas legislativas, como a lei penal em branco, para a formulação de tipos penais que acompanhem a atual “sociedade de riscos”.

Por lei penal em branco, entende-se a norma que possui uma sanção determinada e preceito legal indeterminado, dependente de complementação por um outro ato normativo ou administrativo para possuir eficácia e, assim, integrar os limites da proibição feita pela norma. Como bem leciona Mir Puig

Fala-se de leis penais em branco para referir a certos preceitos penais principais que, excepcionalmente, não expressam completamente os elementos específicos do preceito da norma secundária, remetendo a outros preceitos ou autoridade para que completem a determinação daqueles elementos.[1]

A origem da norma penal em branco (Blankettstrafnormen) teve lugar com o penalista alemão Karl Binding[2], que empreendeu a primeira teorização sobre tais normas e estava diretamente relacionada com a autorização dada por um órgão legislativo superior para que um órgão legislativo inferior complementasse a norma principal.

Mais à frente, Edmund Mezger amplia o conceito para admitir que o complemento da norma em branco pudesse ser dado não apenas pela própria lei que a criasse, mas também por uma outra legislação de mesmo nível hierárquico ou outra de nível superior ou mesmo inferior à lei penal complementada, sem que isso acarretasse maiores consequências, pois se tratava de técnica legislativa externa própria desses tipos[3]. Surgiam assim as normas penais em branco homogêneas e heterogêneas.

As normas penais em branco homogêneas são aquelas em que o complemento normativo é oriundo da mesma fonte legislativa que editou a norma que necessita ser complementada. Um exemplo é o crime de uso de documento falso, previsto no art. 304 do Código Penal, onde o complemento do que seria “documento falso” está previsto nos arts. 297 a 302 do próprio Código Penal.

Já as normas penais em branco heterogêneas são aquelas em que o complemento da lei penal é oriundo de fonte diversa daquela que a editou. No Brasil, o exemplo clássico é a Lei nº 11.343/2006, onde há uma sanção determinada para o preceito legal indeterminado “drogas”. Nesse caso, o complemento é efetuado pela Portaria nº 344 da Anvisa – ligada ao Poder Executivo, autorizada pelo Decreto nº 5912/2006.

Atualmente, o entendimento doutrinário majoritário é que a utilização de normas penais em branco heterogêneas não viola a Constituição Federal, desde que o núcleo essencial da conduta esteja descrito na norma incriminadora e que o ato complementador exerça sua função dentro dos limites de sua competência técnica, estrutural e funcional. Desse modo, tais normas estariam tratando única e exclusivamente de complementação técnica e funcional de uma competência constitucional que já foi exercida anteriormente pela lei penal incriminadora que precisa ser complementada.

Possibilidade de todos os entes federativos complementarem a norma penal em branco dentro de suas competências – e até atos administrativos: a norma penal em branco escalonada.

Existem tipos penais que, pela sua própria natureza, demandam orientação uniforme em todo o território brasileiro, sob pena de gerar uma grave crise de tipicidade e insegurança jurídica entre os entes federativos. Contudo, existem normas penais em branco que, em razão do interesse constitucional ou legalmente previsto, só poderão ser complementadas por instâncias federativas distintas ou até mesmo atos administrativos inter partes.

Não se trata de inovação brasileira. Conforme advertido por Mir Puig[4], já em sua origem na Alemanha, a norma penal em branco era utilizada para explicar os casos em que a lei do Império (Código Penal do Reich) deixava a determinação do preceito incriminador nas mãos dos estados ou mesmo dos municípios.

Nilo Batista, em sua clássica obra “Introdução crítica ao direito penal brasileiro”, também parece aceitar que a complementação da norma penal em branco seja dada por ato administrativo, lei estadual ou municipal[5].

Pois bem. A Lei nº 8.137/90 estatui, em seu art. 2º, II, que constitui crime contra a ordem tributária “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos”. Obviamente, quando se tratar de tributo federal, como o Imposto de Renda, apenas a União poderá estabelecer o prazo legal, o valor e as especificidades do tributo.

Contudo, quando se tratar de tributos cuja instituição seja da esfera de competência constitucionalmente estabelecida para o estado, o município ou o Distrito Federal, apenas esses entes federativos poderão regulamentar o sistema tributário respectivo e, consequentemente, estarão complementando a norma penal em branco – sem que isso seja considerado legislar em matéria penal.

Um exemplo de lei penal em branco que depende de complementação inter partes é o art. 92 da Lei de Licitações. Como bem aponta Bitencourt, por se tratar de norma penal em branco[6], caso o agente dê vantagem em favor do adjudicatário sem autorização do respectivo instrumento contratual (ato que gera efeito entre o particular e a Administração e serve como complemento do art. 92), também estará configurado, em tese, o crime supracitado.

Outro caso interessante previsto no Direito Brasileiro é o crime previsto no art. 268 do Código Penal. A crise pandêmica causada pelo coronavírus, no ano de 2020, gerou intenso debate sobre a utilização desse tipo penal para a contenção da propagação da infecção viral. Afinal, poderia o poder público estadual, municipal ou distrital editar atos visando impedir introdução ou propagação dessa infecção contagiosa ou o “poder público” descrito na norma está restrito à União?

O caput do art. 268 do CP assim dispõe:

Art. 268 - Infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa:

Trata-se de crime que tutela a saúde pública e tem como objeto material a “determinação do poder público”. Para responder a questão de quem seria esse “poder público”, deve-se lembrar das lições de Mir Puir, Nilo Batista, Binding e Mezger de que a complementação da Blankettstrafnormen pode ser dada por entidade federativa ou administrativa diversa da que emitiu a norma originária, desde que a matéria estivesse dentro de suas atribuições legais e/ou constitucionais.

De forma mais direta, Heleno Fragoso também aponta que o poder público que edita a determinação pode ser qualquer autoridade competente para o ato (federal, estadual, distrital ou municipal), o qual deve constar do rol de suas atribuições legais[7].

Quando se trata do tema saúde, a Constituição Federal traz dois róis de competência, a saber, a comum (art. 23, II) e a competência legislativa concorrente (art. 24, XII).

Tendo em vista que a emergência pandêmica vem exigindo de todo o mundo a adoção de medidas urgentes e eficazes, com atuação, por vezes globalizada, por vezes específicas e regionais, em razão das peculiaridades de cada região e do modo como a doença avança, vários entes federados efetivaram medidas de contenção do avanço da infecção, com fundamento na Lei 13.979/2020, além da competência conferida pela Constituição Federal (art. 23, II e art. 24, XII) para atuar em prol da saúde pública, sendo, porém, reprimidos pela União.

Afim de preservar as competências constitucionais, a Ordem dos Advogados do Brasil ingressou com uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 672), para que fosse respeitada a determinação dos governadores e prefeitos, uma vez que “a atuação de estados e municípios torna-se ainda mais crucial porque são as autoridades locais e regionais que têm condições de fazer um diagnóstico em torno do avanço da doença e da capacidade de operação do sistema de saúde em cada localidade”.

Ao deferir a liminar na ADPF 672, o ministro Alexandre de Moraes adotou o entendimento de que poderia haver inequívoco conflito federativo e, portanto, “não compete ao Poder Executivo federal afastar, unilateralmente, as decisões dos governos estaduais, distrital e municipais que, no exercício de suas competências constitucionais, adotaram ou venham a adotar, no âmbito de seus respectivos territórios, importantes medidas restritivas (...) para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a recomendação da OMS (Organização Mundial de Saúde) e vários estudos técnicos científicos”.

Por óbvio, a decisão do Supremo Tribunal Federal não afasta a possibilidade de que cada ato seja avaliado individualmente para verificar que a restrição ao direito fundamental ali imposto é constitucional ou não.

Por ora, a pergunta que deve ser feita é se as medidas restritivas efetivadas por prefeitos e governadores estão dentro de suas competências legais e se são capazes de diminuir a infecção viral. Ao que tudo indica, estão dentro das competências constitucionais relativas à saúde e, portanto, complementam a norma penal em branco do art. 268 do Código Penal, na medida em que se trata de determinação do poder público, destinada a impedir a propagação de doença contagiosa.

Conclusão

É forçoso reconhecer que é constitucionalmente possível a edição de leis e atos administrativos pelos entes federativos, no âmbito de seus respectivos territórios e dentro de seus níveis de competência. Dentre esses atos estão aqueles que sejam reconhecidamente eficazes para a redução de infectados pelo coronavírus, por se tratar de matéria afeta do direito à saúde.

Por determinação constitucional, a definição de crimes e penas só pode ser estabelecida por lei em sentido estrito. Porém, a constante evolução da sociedade moderna demanda a utilização de novas técnicas legislativas para, de um lado, fazer com que a legislação se adeque à realidade social e, de outro, não viole os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, tão caros ao Estado Democrático de Direito.

No que tange às normas penais em branco, a preservação dos direitos e garantias fundamentais e o respeito ao princípio da legalidade estarão assegurados desde que a norma federal descreva o núcleo essencial do tipo e que o ato complementador esteja dentro de suas competências legais e não extrapole a conduta descrita no tipo incriminador.

Pode-se concluir que desde a sua origem, as normas penais em branco permitem que o seu complemento seja efetuado por normas ou atos administrativos de entidades federativas diversos. Isso evidencia diferentes graus de atribuições, que geram as normas penais em branco escalonadas, assim entendidas como normas penais em branco criadas dentro de sua competência constitucional (competência privativa da União), porém a norma complementadora é realizada por entidade federativa diversa, seja pelo Estado, Distrito Federal, Município ou mesmo uma autoridade administrativa.

 


Bibliografia

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

BINDING, Karl. Die Normen Und Ihre Ubertretung, Eine Untersuchung Uber Die Rechtmassige Handlung Und Die Arten Des Delikts. 2 ed. Leipzig: Wilhelm Engelmann, 1890. V. II, 1.

BUSATO, Paulo César. Direito penal: parte geral. São Paulo: Atlas, 2013.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012.

FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte Especial. São Paulo: José Bushatsky, 1959. v. 3.

GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral. São Paulo: Ed. RT, 2007. v. 2.

MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Editora Hammurabi, 2010.

MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases delderecho penal. 2 ed. Buenos Aires: Euros Editores, 2003.

MIR PUIG, Santiago. Derecho penal parte general. 8 ed. Barcelona: Reppertor, 2006.

[1] MIR PUIG, Santiago. Derecho penal parte general. 8 ed. Barcelona: Reppertor, 2006. p. 66

[2] BINDING, Karl. Die Normen Und Ihre Ubertretung, Eine Untersuchung Uber Die Rechtmassige Handlung Und Die Arten Des Delikts. 2 ed. Leipzig: Wilhelm Engelmann, 1890. V. II, 1.

[3] MEZGER, Edmundo. Tratado de Derecho Penal. Buenos Aires: Editora Hammurabi, 2010. p. 397

[4] MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases delderecho penal. 2 ed. Buenos Aires: Euros Editores, 2003. p. 36

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 73-74

[6] BITENCOURT, Cezar Roberto. Direito penal das licitações. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 255.

[7]FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de direito penal. Parte Especial. São Paulo: José Bushatsky, 1959. v. 3, p. 683logo-jota

Os artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade de ideias.