João Vitor Morais

Na primeira cena do filme “The Report” (O Relatório), é apresentado ao telespectador um instigante diálogo: um agente do Senado dos Estados Unidos procura consultoria jurídica com um advogado, por conta de uma acusação feita pela CIA.
Na trama, discute-se se o agente havia roubado um documento classificado como sigiloso pelo Governo. Em sua defesa, ele argumenta que não o roubara, limitando-se, apenas, a realocá-lo. Na sequência, o advogado pronuncia a frase que inspirou a realização deste texto: “cada um tem suas próprias palavras. A linguagem é construída para escolher lados”.
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É difícil que, para aqueles que trabalham com o Direito, a fala do personagem não remeta à reflexão sobre algumas controvérsias jurídicas. Principalmente, àquelas relacionadas à interpretação e à argumentação.
Isso porque a ideia que o advogado buscou transmitir para o agente – e que parece ser a opinião popular sobre o Direito – é que, dependendo da narrativa que se pretende contar, o significado das palavras pode ser flexionado: para o agente, não havia roubo; para a CIA, sim.
A conclusão dependia diretamente de qual significado estava sendo atribuído ao ato do agente, isto é, roubo ou realocação de documento. No entanto, estaria o advogado correto? Isto é, a linguagem está à disposição do intérprete, podendo utilizá-la como melhor lhe servir?
A constatação do advogado revive a conhecida piada de que a resposta para qualquer problema jurídico é “depende”. Em outras palavras, traduz a ideia de que, no âmbito jurídico, tudo é relativo, inexistindo certezas.
<blockquote class="jota-article__eye">Diante disso, penso em várias indagações: no âmbito jurídico, as palavras mantêm seu significado ou lhes é atribuído o significado que melhor convir no momento?</blockquote>
Seria o papel dos intérpretes interpretar os enunciados normativos de acordo com seus próprios interesses? A argumentação jurídica é um campo de vale-tudo, no qual basta uma retórica convincente para atingir o resultado almejado?
Seria a justificação da decisão judicial uma forma de convalidar, por meio de razões jurídicas, convicções de cunho pessoal? A argumentação deve ser conduzida por critérios subjetivos? O quanto a interpretação pode se afastar do significado “usual” do termo em exame?
Como fenômeno histórico-cultural que é, ao longo dos anos, a ciência jurídica – principalmente no seu aspecto metodológico – sofreu amplas reformas: do formalismo ao ceticismo, do legalismo ao constitucionalismo, e por aí vai.
Hoje, o pensamento jurídico contemporâneo é marcado pela transformação da hermenêutica jurídica. Reconhece-se o papel criativo e normativo da atividade jurisdicional, que passa a ser considerada como uma função essencial ao desenvolvimento do Direito.
Admite-se a distinção teórica entre texto e norma. Consagram-se as máximas da proporcionalidade e da razoabilidade na aplicação das normas. Há uma expansão da técnica legislativa das cláusulas gerais, que exige dos juízes um papel ainda mais ativo na criação do Direito.<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>
Desde o século passado, o Direito tem se distanciado cada vez mais das ciências exatas. A razão disso é simples: a ciência jurídica funciona de forma diferente das ciências exatas. Vale a máxima de que “o Direito não é matemática”.
Com a derrocada do formalismo interpretativo, atualmente, parece inviável questionar o fato de que o Direito é uma prática argumentativa. Essa argumentação, todavia, tem sua aplicação prática restringida, pois deve se submeter à lei, à dogmática, aos precedentes judiciais e às demais normas que compõem o ordenamento. Ademais, é na argumentação que são identificadas as escolhas interpretativas feitas pelo intérprete.
A interpretação consiste na individualização de possíveis significados de fatos, provas e textos normativos; na valoração argumentativa de cada um desses possíveis significados; e, por fim, na escolha de um dos diferentes significados concorrentes.<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>
Porém, apesar da indeterminação da linguagem – e da linguagem jurídica especialmente – não parece adequado sustentar que os textos legais são folhas em branco colocadas à disposição do julgador.
Referido posicionamento implicaria na crença de que “o legislador, ao aprovar um enunciado normativo, não manda, proíbe ou permite nada, não quer dizer nada: se limita a oferecer aos juízes e juristas umas quantas palavras para que eles se entretenham em dota-las de sentido normativo.”.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
Portanto, compreender a interpretação como um ato de atribuição de significado não significa dizer que inexistam significados previamente ligados ao uso linguístico comum. Tais significados prévios à atividade interpretativa são de suma importância, pois representam uma espécie de freio ao agir hermenêutico do intérprete, fazendo com que esse tenha que levá-los em consideração. A regra deveria ser clara: “quem quer compreender um texto deve estar disposto a deixá-lo dizer alguma coisa.”.<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>
Por fim, acresço à frase do jurista fictício uma outra de um jurista real, Richard A. Posner: “a linguagem é o portão da percepção, e seus mestres, portanto, veem mais do que o resto de nós.”.<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> Aos poucos, vou ficando mais inclinado a concordar com o juiz americano. Realmente, talvez certas coisas não possam ser vislumbradas por todos, sendo seu alcance, quem sabe, limitado a um seleto grupo de onze pessoas.
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O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
https://youtu.be/-hMj5lwWXEE
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 18. ed. rev. ampl. atual. Salvador: Ed. Jus Podivm, 2016. v.1. p. 43-46.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> ARENHART, Sérgio Cruz; MARINONI, Luiz Guilherme; MITIDIERO, Daniel. Código de processo civil comentado. 6. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 615.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> HIERRO, Liborio L. Sostiene Barberis. Consideraciones sobre el trayecto genovês desde el realismo jurídico al constitucionalimo. In: MELLO, C. A. O realismo metodológico de Riccardo Guastini. Revista Brasileira de Estudos Políticos, Belo Horizonte, n. 113, p. 187-244, jun./dez. 2016. p. 221. DOI: 10.9732/P.0034-7191.2016V113P187. Disponível em: &lt;https://pos.direito.ufmg.br/rbep/index.php/rbep/article/view/409&gt;.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2020. p. 139.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> POSNER. Richard A. The essential holmes. Chicago:  The University of Chicago Press, 1992, p. 13.

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JOTA

No âmbito jurídico, palavras mantêm seu significado ou lhes é atribuído significado que melhor convir no momento?

No jogo de linguagem, a regra não é clara – mas deveria ser

No âmbito jurídico, palavras mantêm seu significado ou lhes é atribuído significado que melhor convir no momento?