Coronavírus

No comércio internacional, salve-se o país que puder?

O Brasil e a fragilidade do sistema internacional para garantir produtos médicos no combate à Covid-19

Crédito: Pixabay

Na medida em que o vírus se espalha, alheio às fronteiras geográficas e políticas, governos nacionais reforçam o controle de suas fronteiras limitando o comércio e a circulação de bens, no melhor estilo “salve-se quem puder”. Máscaras de proteção, luvas, óculos e roupas cirúrgicas são essenciais para que os profissionais de saúde possam trabalhar. O acesso a ventiladores, respiradores, kits para testes e medicamentos diversos podem ser o limite entre a vida e a morte de pacientes em estado grave.

O comércio destes produtos totalizou quase USD600 bi ou 1,7% do comércio internacional em 2019. Isso demonstra a importância da circulação internacional dos produtos seja para suprimento direto a consumidores, seja para fornecimento a cadeias de valor. Por isso, a coordenação internacional tanto para a circulação mais fácil dos bens como para o atendimento aos países mais necessitados seria essencial. Contudo, prepondera hoje o baixo engajamento internacional dos países e isso tende a agravar o cenário de crise sanitária.

Na área do comércio internacional, a Organização Mundial do Comércio (OMC) assumiu os poucos dentes que lhe restam: a supervisão dos compromissos de seus membros com a liberalização comercial. A OMC tem, então, dado transparência aos dados sobre os principais exportadores e importadores de produtos médicos e às medidas restritivas ao comércio que os seus membros estão impondo.

O primeiro diagnóstico foi o de alta dependência da produção e da comercialização dos produtos médicos em torno de apenas quatro países: Alemanha, China, Estados Unidos e Suíça[1] – e essa limitação já tem sido reportada nos principais meios de comunicação no Brasil, a fim de repensar a estrutura produtiva do país neste setor.

O segundo diagnóstico é que países produtores e exportadores destes bens essenciais têm imposto medidas mais ou menos severas de restrição e de proibição das exportações, com o objetivo de privilegiar o suprimento aos seus mercados internos e o tratamento prioritário dos seus cidadãos.

Desde que a crise se alastrou globalmente, 80 países já introduziram medidas de restrição ou de proibição das exportações e, a cada dia, novas medidas estão sendo impostas ou alteradas. Além disso, há um rol de outras medidas opacas, contraditórias, ou implementadas à margem do regime internacional do comércio, no campo dos contratos privados ou simplesmente com base no poder de coerção de governos nacionais em seus territórios[2].

Concretamente, há exemplos de medidas de restrição oficiais em todos os continentes. A União Europeia, por exemplo, publicou um novo Regulamento, em 14 de março, passando a exigir autorização prévia às exportações de equipamentos de proteção individual (EPIs), como máscaras, luvas e roupas cirúrgicas para fora do mercado comum.

Suíça e Estados Unidos, que são grandes exportadores de ventiladores de uso médico, assim como a Índia, importante produtor de insumos farmacêuticos e medicamentos genéricos, também implementaram medidas de restrição às exportações de diversos produtos. China e Alemanha, também grandes exportadores de EPIs e equipamentos médicos, ainda que tenham anunciado a flexibilização de suas medidas restritivas à exportação em determinado grau, a imprensa continua a reportar dificuldades para exportações e embarques, além da falta de transparência nas regras impostas.

Qual a posição do Brasil neste cenário? O Brasil é essencialmente um país importador de produtos médicos e que tem uma tarifa vinculante relativamente alta (em torno de 31,4%). Por isso, assim como outros países essencialmente importadores, a maior parte em desenvolvimento, o Brasil apressou-se em baixar suas tarifas de importação e suspender a aplicação de algumas medidas de defesa comercial em relação a produtos necessários no combate à COVID-19.

O Brasil, desde 16 de março, já fez quatorze notificações à OMC sobre medidas associadas à COVID-19, algumas delas voltadas a facilitar o acesso ao mercado brasileiro de bens e insumos necessários às ações de combate à disseminação da Covid-19 no país.

Além de reduzir a zero as alíquotas do imposto de importação para diversos itens, também alterou regulamentos do INMETRO, ANVISA e MAPA, com a finalidade de facilitar o ingresso no país e a comercialização de produtos essenciais à saúde. Por outro lado, o governo brasileiro também impôs medida de restrição à exportação, ao estabelecer licença especial para exportação de produtos relacionados ao combate da Covid-19.

A experiência histórica e as projeções econômicas indicam os problemas de imposição de medidas de restrição ou proibição, em especial: (i) que não apenas prejudicam o mercado internacional mas no médio prazo também o mercado interno, e (ii) que as medidas protecionistas uma vez impostas são difíceis de serem retiradas.

Em termos legais, as medidas podem ser qualificadas em três tipos, nos termos dos acordos multilaterais sob a égide da OMC: (i) como proibidas, essa é a regra geral de liberalização, (ii) como temporariamente autorizadas desde que se caracterizem como emergenciais, em caso de escassez crítica de alimentos ou de produtos essenciais (Art. XI, parágrafo 2(a) do GATT); ou (ii) como exceções à regra geral, sob as condições da cláusula geral de exceções prevista no Art. XX (b) do GATT), se justa e necessária e como medida de proteção à vida e à saúde de seus cidadãos. Em qualquer das situações, as medidas vem ser notificadas à OMC e serem aplicadas de maneira transparente e não discriminatória.

A OMC urge em advertir que o comércio internacional e a manutenção do fluxo comercial de bens e serviços de saúde, vitais ao enfrentamento da pandemia, são cruciais para garantir o acesso das populações a medicamentos e a produtos e serviços médicos.

Fato é que o sistema multilateral de comércio já se encontrava em grave crise para coordenação de novos compromissos entre os membros e para a supervisão dos compromissos já existentes, deixar o seu Órgão de Apelação inoperante desde dezembro de 2019 é evidência disso. A pandemia veio como teste final de resistência. Os especialistas discutem no momento como viabilizar respostas à crise sanitária e reduções no impacto

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[1] De acordo com o relatório da OMC, Alemanha, Estados Unidos e Suíça exportam 25% dos produtos médicos para o mundo; Alemanha, China e Estados unidos exportam 40% dos equipamentos de proteção individual. Os dados em valores monetários constam da base pública criada pela OMC: https://medtrade.herokuapp.com/. Outra iniciativa de produção de dados, com enfoque bilateral, também foi disponibilizada pela OMC em https://timeseries.wto.org/

[2] Exemplos noticiados pela imprensa, mas nunca assumidos ou comprovados, são: ameaças de governos a fornecedores ao embarcar produtos para exportação, imposição de burocracia adicional, desvio de cargas, interceptação e apreensão de mercadorias em trânsito e atendimento a propostas de compras preferenciais por preços mais altos, cuja prática exige obviamente a aceitação de ambas as partes e, em alguns casos, rompimento de contratos. Alguns exemplos destas notícias são: US soop sees 3M masks allegedly diverted from Berlin https://app.ft.com/cms/s/03e45e35-ab09-4892-899d-a86db08a935c.html?sectionid=world; US denies hijacking Chinese medical supplies meant for Brazil. https://www.reuters.com/article/us-health-coronavirus-brazil-usa/u-s-denies-hijacking-chinese-medical-supplies-meant-for-brazil-idUSKBN21P315; The United States government has not purchased or blocked any medical supplies or equipment intended for delivery from China to Brazil https://br.usembassy.gov/the-united-states-government-has-not-purchased-or-blocked-any-medical-supplies-or-equipment-intended-for-delivery-from-china-to-brazil/