Osny da Silva Filho
Professor associado da FGV Direito SP e sócio de Salama, Silva Filho

Em março de 2021, o NFT "Everydays: The First 5000 Days", produzido pelo artista digital norte-americano Mike Winkelmann, conhecido como Beeple, foi vendido na famosa casa de leilões Christie’s por pouco mais de US$ 69 milhões – um dos maiores valores já pagos por uma obra de arte vendida pela instituição. Nos meses seguintes, outros NFTs foram negociados por valores igualmente vultosos – de instalações complexas como o "Human One", também produzido por Beeple, leiloado por quase US$ 29 milhões, ao singelo "CryptoPunk #5822", edição especial de uma série de 10 mil NFTs, vendido há poucos dias por US$ 23 milhões.
NFT é a sigla de non fungible token – símbolo ou título infungível, em traduções aproximadas[1]. O nome remete ao conceito jurídico de infungibilidade, tema clássico do direito civil. A coincidência das palavras sugere que os NFTs sejam, do ponto de vista jurídico, bens tipicamente infungíveis, em contraste, neste caso, com tokens comuns (exemplarmente, as criptomoedas), que seriam, então, bens fungíveis. O conceito jurídico de infungibilidade estabeleceria a fronteira entre tokens comuns e NFTs.
Infelizmente não é tão simples.
Por um lado, blocos de hashs, timestamps e dados encadeados – componentes elementares de registros estabelecidos em blockchain – são, por definição, singulares, e nesse sentido infungíveis. Este é, aliás, um traço distintivo da tecnologia blockchain, ao lado da descentralização dos registros. Não seria tecnicamente incorreto estender essa característica – a singularidade das cadeias de blocos – à qualificação de tokens comuns, ou mesmo das moedas eletrônicas definidas em blockchain [2]. Neste caso, a distinção dos NFTs como bens infungíveis deixaria de fazer sentido.
Por outro lado, o próprio conceito jurídico de infungibilidade é menos trivial do que a qualificação irrefletida dos NFTs como bens infungíveis tende a sugerir. Para entender este ponto, convém dar alguns passos atrás na análise jurídica. Do que exatamente estamos falando quando nos referimentos a um bem infungível?
O artigo 85 do Código Civil fornece um bom ponto de partida. Ele nos informa serem fungíveis “os móveis” – no caso, os bens móveis – “que podem substituir-se por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade”. Por exclusão, bens que não possam ser substituídos nesses termos qualificam-se como infungíveis.
Dinheiro e obras de arte são as ilustrações mais recorrentes dessa dicotomia. Os R$ 10 guardados em minha carteira exprimem um bem tipicamente fungível; o "Desvio para o Vermelho I" de Cildo Meireles, um bem caracteristicamente infungível. Faz sentido que seja assim: meus R$ 10 podem ser facilmente substituídos por quaisquer outros R$ 10; já a obra de Cildo Meireles é insubstituível, tanto em seu corpo mecânico quanto em seu corpo místico.
Cildo Meireles, Desvio para o Vermelho I, instalação, 1967-1984. Inhotim: https://www.inhotim.org.br/item-do-acervo/desvio-para-o-vermelho/
A qualificação dos NFTs como bens infungíveis é mais complicada. NFTs comuns – overpriced JPEGs, como são jocosamente chamados – correspondem a registros (no caso, em blockchain) de endereços virtuais. Eles não se distinguem pelos seus objetos – em geral, sequências exemplarmente fungíveis de bits –, mas pela sua vinculação a um certo padrão de smart contracts (no caso do Ethereum, ERC-721 e ERC-1155).
Eis a primeira complicação: se quisermos qualificar NFTs comuns como bens infungíveis, temos que deixar seus objetos – os JPEGs que, na prática, os distinguem – em segundo plano. Porque esses JPEGs são, em si mesmos, bens fungíveis.
Acrescente-se que o próprio conceito de fungibilidade é mais fluido e complexo do que o artigo 85 do Código Civil pode sugerir. Não se trata, é verdade, de um conceito novo. A distinção entre bens fungíveis e infungíveis foi estabelecida há quase 500 anos. Mas 500 anos já não parecem tanto tempo quando consideramos que o dinheiro – caso exemplar de bem fungível – foi inventado há pelo menos 2.000 anos [3].
Os antigos reconheciam que as regras jurídicas aplicáveis aos contratos de troca ou permuta (que não envolviam dinheiro) não se aplicavam indistintamente aos contratos de compra e venda (que envolviam dinheiro). Eles também admitiam a diferença entre contratos de comodato (que hoje definimos como empréstimos de bens infungíveis) e de mútuo (empréstimos de bens fungíveis). O que os antigos não enxergavam – ao menos não abstraíam – era o conceito jurídico de fungibilidade [4].
Considere ainda que a qualificação de um bem como infungível nem sempre decorre de seu modo de ser originário: admite-se que a infungibilidade venha a ser determinada por atribuições subjetivas – no jargão jurídico, pela vontade humana. É o que ocorre quando escrevemos uma dedicatória em um livro de tiragem regular. Exemplares de livros são bens fungíveis; mas podem ser infungibilizados pelas nossas dedicatórias.
Para complicar ainda mais, a atribuição de caráter infungível não precisa ser específica, tampouco explícita. Pense no contrato de depósito. O bem que confiamos ao depositário pode ter valor inestimável para nós, ainda que não contenha traço que permita distingui-lo de bens similares. O custodiante pode substituir um bem prima facie fungível ao qual atribuímos valor sentimental por outro bem da mesma espécie, qualidade e quantidade?
CryptoPunks, CryptoPunk #5822, JPG, 2017. Reprodução: https://opensea.io/assets/0xb47e3cd837ddf8e4c57f05d70ab865de6e193bbb/5822
Convém retornar aos NFTs neste ponto. Sabemos que nem todo token é um NFT. Security tokens, por exemplo, certamente não são NFTs. São valores mobiliários. Isso sugere que os NFTs devam ser, ao menos em princípio, utility tokens. Mas mesmo essa qualificação pode ser disputada, sobretudo quando a utilidade do NFT em questão se esgota na titularidade (ou no conhecimento) de seu registro [5].
E a própria categoria dos NFTs pode ser desdobrada. NFTs comuns – CryptoPunks, Bored Apes ou CryptoKitties, por exemplo – são registros de endereços particularizados por smart contracts. Podem, talvez, ser descritos como combinações estáveis entre esses registros e seus respectivos objetos – e então como universalidades. Mas existem NFTs muito mais complexos. Pense nos generative NFTs, obras de arte digital programadas no código de seus próprios tokens, ou então no já citado "Human One", escultura cinética composta por quatro telas de alta resolução, estrutura metálica, arquivo de vídeo e dois servidores –, além, é claro, do token correspondente.
A infungibilidade não é, em suma, um aspecto inequívoco, tampouco suficiente para a definição dos regimes de propriedade, circulação e tributação de tokens não fungíveis – seja porque a própria qualificação dos NFTs como bens infungíveis não é trivial, seja porque não é possível reduzir a generalidade dos NFTs a uma categoria indistinta.
[1] A não fungibilidade pode ser encarada como uma categoria mais abrangente que a infungibilidade, mas neste texto vou considerá-las equivalentes.
[2] A extensão da infungibilidade das blockchains a tokens ou coins específicos é sugerida no white paper do Bitcoin: “We define an electronic coin as a chain of digital signatures.” Satoshi Nakamoto: Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System, 2008, p. 2. Disponível em https://bitcoin.org/bitcoin.pdf.
[3] Representações monetárias de dívida podem ser encontradas em tempos ainda mais remotos – da Idade do Bronze mesopotâmica ao domínio da dinastia Shang na China. Referências e discussão em David Graber, Debt: The First 5000 Years. New York: Melville, 2011.
[4] No direito romano do período clássico, bens que hoje qualificamos como fungíveis eram, de modo geral, descritos como consumíveis, ou caracterizados por expressões como genera, quantitates e res quae pondere numero mensura consistunt. A qualificação do dinheiro como bem consumível parece equivocada diante de entendimentos modernos a respeito do sistema monetário: o dinheiro, afinal, circula, pode eventualmente perder valor, mas não se consome. Referências em José Carlos Moreira Alves, Direito romano, vol. 1, 6. ed., Rio de Janeiro, Forense, 1987.
[5] Daí a importância de projetos recentes como o Token Safe Harbor da comissária Hester Pierce, da SEC, e o Clarity for Digital Tokens Act (disponíveis em https://www.sec.gov/news/public-statement/peirce-statement-token-safe-harbor-proposal-2.0 e https://republicans-financialservices.house.gov/uploadedfiles/tsh_xml_signed.pdf, respectivamente).