Telecomunicações

Neutralidade de rede, infraestrutura de telecomunicações e bens públicos

Quem dá origem ao aumento de tráfego tem de contribuir para o crescimento dos investimentos

neutralidade de rede
Crédito: Unsplash

Começamos este artigo a partir da discussão do conceito de bem público. Não do ponto de vista do direito, mas do ponto de vista da economia, há décadas consolidado na literatura econômica. O bem público, nesta perspectiva, é uma mercadoria ou serviço que é considerado “não excludente” e “não rival”, como preconiza o economista britânico Ronald Coase.

A não excludência associa-se a uma condição em que o consumo desta mercadoria ou serviço não permite, tecnicamente ou operacionalmente, a exclusão de qualquer consumidor – não há forma de se cobrar pelo bem ou serviço diretamente do consumidor.

O exemplo clássico é o farol marítimo. Qualquer navio que passe pela sua região se beneficiará de sua iluminação. A não rivalidade decorre do não conflito no consumo, já que o consumo do bem por um indivíduo não conflita com o consumo de outro. Simplesmente não há rivalidade porque o bem não é escasso. Porém, como não há escassez, o preço deste bem ou serviço será zero.

A não excludência e a não rivalidade, a princípio, podem parecer características positivas, mas não são, pois não gera incentivo à produção. Se uma empresa não pode excluir ninguém do consumo e, além disso, o preço cobrado por este bem é negligível, zero, qual o incentivo para o produtor produzir e comercializar este bem ou serviço?

Os incentivos seriam muito baixos ou mesmo inexistentes. No exemplo do farol marítimo, como observa Coase, “a impossibilidade de assegurar o pagamento pelos proprietários de navios que se beneficiam das luzes do farol faz com que não seja lucrativo para qualquer indivíduo ou firma manter o farol”.

Por isso, o bem público, conforme a análise da literatura econômica, representa uma falha de mercado: suas características não geram interesse para que ele seja produzido ou comercializado pelo mercado privado. Portanto, sua oferta é abaixo do socialmente desejável.

Adentremos na neutralidade de rede. De acordo com este princípio, as operadoras dos serviços de internet precisam dar tratamento igual a tudo que trafega pela internet. Este é um princípio extremamente positivo, principalmente quando tratamos de agentes atomizados – quando todos os usuários da rede não possuem poder de mercado relevante e consomem baixo volume de dados.

Nesta condição, nenhum agente conseguiria dominar individualmente o tráfego nas redes de internet. Mas, e se alguns destes usuários deixassem de ser atomizados e começassem a representar uma parcela realmente significativa do volume de tráfego (superior a 50%), exercendo dominância de mercado? Será que a neutralidade de rede nestas condições estaria sendo mantida?

Hoje, diferente de anos atrás quando a internet foi popularizada e o tráfego era atomizado e pulverizado, o tráfego é em grande medida dominado pelas big techs (elas possuem mais de 50% do tráfego das redes no Brasil). No momento em que oligopolizam o uso das redes de telecomunicações, elas permitem a manutenção da neutralidade de rede?

Acreditamos que não, pois podem deteriorar o tráfego para outros usuários (aplicações de saúde, educação, segurança pública, cidades inteligentes, indústrias, por exemplo), limitando, dessa forma, a neutralidade da rede. E a superutilização das redes deve ser compensada pelo aumento dos investimentos e da capacidade de tráfego. Porém, o importante é definir quem é responsável por estes investimentos. Quem dá origem ao aumento de tráfego, no caso as big techs, tem de contribuir para o crescimento dos investimentos, preservando os outros usuários e o uso racional das redes.

Onde entra a discussão do bem público nesta história? As redes estão sendo tratadas, ao menos parcialmente, como se fossem um bem público (lembrando, no sentido econômico). De fato, não há exclusão de nenhum consumidor, inclusive as big techs, do uso das redes.

No que tange à não rivalidade, as redes estão sendo tratadas como um bem não rival e, portanto, com características de bem público (um uso não rivaliza com outro) sem ser um bem público (de fato, um uso está rivalizando com outro)! Explicamos.

As big techs consomem intensivamente as redes, como um bem público, sem pagar nenhum preço por este uso; mas o bem que estamos tratando é efetivamente rival, por ser escasso. Assim, o uso intensivo das redes pelas big techs poderá deteriorar não só as redes, mas a qualidade dos serviços para os demais usuários.

Há, dessa forma, o estabelecimento de uma imensa falha de mercado. E a falha de mercado, como sabemos, impede seu bom funcionamento e uma alocação eficiente de recursos. Portanto, ela precisa ser mitigada. Isso pode ser feito por meio de uma contribuição marginal de quem usa intensivamente as redes, permitindo garantir investimento adequado, tornar o uso destas sustentável e sem deteriorar a qualidade para os demais usuários.

Em resumo, sem ser estabelecido algum tipo de contribuição a ser paga pelos grandes usuários das redes de telecomunicações (as big techs), os prejudicados serão todos os demais usuários das redes fixa e móvel.logo-jota

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