José Roberto Afonso

Negro era a cor do buraco em que a política fiscal brasileira se meteu até o final de 2014. Feliz e acertadamente, mudou a equipe econômica e a orientação dessa política. Mas é forçoso reconhecer que até hoje não se conhece como realmente evoluíram os gastos nos últimos anos e qual foi o verdadeiro tamanho da dívida que restou no setor público. O passado não foi tirado do buraco.
Sem uma noção correta da situação fiscal e sem maior debate, a poucos dias do início deste ano, a sua meta de superávit primário do setor público foi fixada na lei de diretrizes orçamentárias – LDO (Lei 13.080/2015) em 1,2% do PIB, que se esperava crescer 0.8%. No projeto original (em abril de 2014), a mesma meta era de 2,5% (para um crescimento de 3%). Passado meio ano, o superávit realizado segue muito longe da meta, e o próprio governo já assumiu uma recessão do PIB na casa de 1% do PIB.
Não mais se comenta como mudou drasticamente o cenário e muito menos se pode reconhecer que a meta foi fixada à escura, quando ninguém esperava que 2014 fechasse com déficit primário de 0.6% do PIB e já descontadas medidas atípicas. Pecam ainda as análises comparadas do desempenho deste contra o ano anterior por se tratar de abrangências diferentes, uma vez que a mídia já noticiava há tempos – e depois o Tribunal de Contas da União (TCU) comprovou e denunciou – que alguns gastos do Tesouro foram pagos por terceiros (inclusive bancos federais) e dívidas não foram contabilizadas. Como as atuais autoridades monetárias e fiscais não republicaram as séries fiscais passadas, como já recomendou o TCU (relatório TCU 021.643/2014‐8), o passado fiscal continua no buraco negro.
É bom alertar que não foi por falta de leis que se perdeu a credibilidade da política fiscal: faltou cumpri‐las e responsabilizar quem as ignorou. É o caso, por exemplo, de a Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF (LC 101/2000) determinar que gastos e resultados sejam apurados segundo os compromissos assumidos – o regime de competência (art.50, II) –, usando, apenas em caráter complementar, o regime de caixa. Passados quinze anos de LRF, essa regra é ignorada pelo Tesouro Nacional – STN e pelo Banco Central – BC, que usam a mesma metodologia atrasada e parcial desenhada quando o país foi ao FMI em (sic) 1983. Curioso é que a STN editou manuais e demonstrativos de excelente qualidade, os quais revisa periodicamente e exige que sejam seguidos por governos estaduais e municipais, mas ignora sua regra para fazer o próprio cálculo de primário, apesar de alertas sucessivos do TCU (como o Acórdão 1776/2012).
O mesmo ocorre com as dívidas, que, pela LRF (art.5, § 1) e os mandamentos contábeis, deveriam estar integralmente computadas no orçamento (operações de crédito) e nos balanços (passivo) da União. Mesmo no caso de contas que aí aparecem, como restos a pagar (este ano foi aberto com mais de R$ 226 bilhões devidos), seguem ignorados pelo BC quando calcula a dívida pública – embora deduza o caixa em valor bruto. Créditos acima de quatro centenas de bilhões de reais foram repassados pelo Tesouro para seus bancos por fora do orçamento público (sob alegação de que foram em títulos e não em dinheiro). Gastos com a equalização de juros nessas operações foram incluídos parcialmente e com isso os bancos públicos escrituraram em seus ativos quase meia centena de bilhões de reais a receber do Tesouro, que os omitiu em seu passivo (outra denúncia do TCU já citada) – o hilário é que os conselheiros nomeados pela União aprovaram os balanços daqueles, mas ignorados pela STN. Logo, nem a dívida bruta – e no conceito internacional (na casa de 65% do PIB) – mede adequadamente tudo que os governos devem.
Como não se sabe bem de onde se partiu, por que importa precisar aonde se quer chegar e em que ritmo? Parece irrelevante como evoluiu no passado e qual a dimensão no presente, porque se tenta olhar só para o futuro – quando o governo garante que a reduzirá e analistas acreditam ao menos na sustentabilidade. O objeto, em si, o montante da dívida, parece contar menos. Não preocupa o negro do buraco, porque se prometeu cores para breve.
Isso remete a alguns questionamentos sobre o ajuste fiscal. Não há dúvida quanto à sua imperiosidade, mas sim sobre sua dosagem, seu ritmo, sua articulação com as demais políticas econômicas: ser necessário não o torna suficiente como condição para retomada do crescimento. Se o combate ao incêndio que tomou a economia ao final do ano passado puder enfrentar também os seus problemas estruturais, o ajuste vira consolidação fiscal – na expressão que entrou na moda entre organismos multilaterais depois da crise global (entendo ser uma forma indireta de reconhecer que os resultados desejados não podem ser alcançados no curto prazo, mas, com reformas, se promete que serão entregues no prazo mais longo). É o ideal de transformar crise em oportunidade para mudanças. Desde a década passada, o Brasil não fez nenhuma reforma institucional de fôlego e agora mergulha numa estagnação, na contramão do resto do mundo, sobretudo dos emergentes que seguem crescendo bem mais.
Uma forma de exemplificar tais reflexões é comentar a tributação de combustíveis. É um caso exemplar para mostrar como se prometia uma política, mas se praticava outra, na direção completamente oposta e para propor medidas corretivas que mirem o longo prazo e dissemine impactos positivos na economia.
Vermelho é a cor que, no Brasil, virou a política que deveria seria verde, para enfrentar as mudanças climáticas, e que, na tributação, deveria punir o que mais polui e premiar a energia limpa. Por mais que o país tenha aderido a pactos internacionais nessa direção, foi exatamente o oposto que fez ao adotar medidas impostas por forças das circunstâncias, sem planejamento estratégico, pois pareciam as mais fáceis, nem que fosse para postergar os problemas.
Assim, à custa das maiores renúncias tributárias conhecidas, da desoneração do IPI à guerra fiscal do ICMS estadual, se reduziu, continua e fortemente, a carga sobre a venda de automóveis (mas não sobre os transportes de massa) e, pior, sobre combustíveis fósseis (caso dos derivados de petróleo). E, neste último caso, nenhum outro país do mundo dispunha do etanol, produzido em escala continental, como uma alternativa muito mais viável para produção, emprego e renda, e ainda interessante para o meio ambiente e a saúde.
Essa combinação perfeita foi arrasada pela política oportunista de administrar, como já confessado por Ministro de Estado, os preços da gasolina e do diesel para tentar frear a inflação. Fez isso sem separar dotação no orçamento para cobrir os correspondentes subsídios. Estes, na prática, foram transformados em redução de tributos sobre aqueles bens e, depois, em prejuízos bilionários, e já mensurados, para Petrobras, de modo que o governo perdeu receita e também 
patrimônio. Esse caminho tortuoso jogou na crise importantes setores da economia – do agronegócio à construção pesada – e tornou inglório repetir o ajuste fiscal feito tantas vezes no passado, porque nunca foi tão deprimida a arrecadação proveniente desse setor estratégico.
Os números evidenciam como se espalhou o vermelho nas contas públicas e nacionais. A contribuição específica -a CIDE (criada pela Lei 10.336/2001) representava 14% do preço na bomba da gasolina em 2002, contra atuais 2.2%, mesmo depois do reajuste do início do ano – se fosse mantida aquela proporção, a alíquota deveria subir de 0,10 para 0,62 centavos por litro. Já o PIS/COFINS, também cobrado como um valor fixo por litro vendido, ficou congelado (em R$ 0,2616) por quase dez anos (só reajustado pelo Decreto 8.395/2015). Somados esses três tributos, a PETROBRAS deveu R$ 16,2 bilhões em 2014 contra R$ 29,8 bilhões em 2006 – tal perda de receita equivale, por exemplo, a um ano do gasto com atenção básica à saúde no orçamento federal. Outro valor, equivalente, deve ser perdido com royalties sobre petróleo, em que o efetivamente arrecadado tem caído muito mais que os preços internacionais e apesar da produção agora em alta. A carga tributária total da Petrobras caiu para o piso de 1,71% do PIB neste primeiro trimestre, 0,6 ponto abaixo do mesmo há quatro anos (detalhes na apresentação disponível em: <a href="http://bit.ly/1LcNuGw">http://bit.ly/1LcNuGw</a> ). Nem é preciso dizer quanto faz falta tal receita oriunda de petróleo e derivados para o ajuste fiscal.
Outros números mostram como o vermelho também se espalhou para a produção na economia e para a própria saúde humana. Já foram fechadas 70 usinas, e 30 estão em recuperação judicial, com perda de 60 mil empregos diretos. A venda de máquinas para o setor caiu pela metade. Mesmo assim, estudos projetam que, depois do carro flex, se reduziu a emissão de gases estufa em 250 milhões/t de CO2 e se evitaram 9 mil internações por problemas respiratórios e cardíacos.
Verde é a cor da esperança de se mudar a política tributária, fiscal e econômica. Como já dito, ao menos a crise abre oportunidade ímpar para se promover mudanças que, além do ajuste, promovam uma consolidação.
É recomendado recuperar paulatinamente a antiga proporção de tributos sobre derivados de petróleo que já tiveram a CIDE mais o PIS/COFINS (somadas deveriam ser 23,2% do preço de bomba da gasolina C). Mais importante é que, depois, tais contribuição passem a ser reajustadas automaticamente com os preços de revenda.
O maior espaço para aumento de arrecadação federal parece estar na taxação dos lucros do setor de petróleo, que seriam ampliados, ainda que só uma vez, se as compensações tributárias fossem realizadas só na apuração da declaração anual (e não na estimativa mensal), e, de forma permanente, se lucros gerados no exterior neste setor passassem a receber o mesmo tratamento dispensado aos demais setores.
Também os royalties e participações na extração poderiam passar a ser cobrados e/ou fiscalizados pela Receita Federal (afinal esta não é uma taxa para custeio de agência reguladora, como no caso das demais cobranças por elas realizadas). O cálculo da participação especial deveria ser reestruturado (basta Decreto presidencial) para atender ao princípio legal de alcançar a rentabilidade dos campos - qualquer produção deveria ser alcançada, sem isenção, e introduzida uma fórmula que funcione como curva e não escada.
No próprio ICMS, poderiam ser pactuadas uma revisão e a redução gradual dos incentivos para produção e consumo de fontes poluidoras (como combustíveis e como veículos) em troca de uma nacionalização das menores alíquotas já praticadas por alguns estados no caso de fontes limpas (como etanol).
Enfim, há uma enorme oportunidade aberta pela crise para o Brasil atender às metas mundiais com o meio ambiente e, ao mesmo tempo, recuperar receitas, consolidar o ajuste fiscal, estimular a agroindústria nacional e ainda gastar menos com saúde. Neste campo, há de se avançar rumo ao passado na tributação de combustíveis, que conciliava disciplina e crescimento mas foi desperdiçado em troca da inflação, da qual não se escapou e só se adiou a conta para hoje. É hora de trocar o negro do buraco das contas públicas e o vermelho das finanças dos setores de energia pelo verde, como novo norte para a política tributária e fiscal e também para nova e melhor economia.
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Economista, doutor pela UNICAMP, professor do programa de mestrado do IDP, e pesquisador do IBREF/FGV.

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Negro, vermelho e verde - atualidades da fiscalidade brasileira

O ajuste que pode impulsionar a economia