Laura B Valls

Caio Klein

O Brasil é um dos países mais violentos e que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo. A vulnerabilidade dessas pessoas é um resultado da profunda discriminação que sofrem e da miséria a que estão submetidas por serem frequentemente expulsas da escola e do mercado de trabalho. Felizmente, nos últimos anos, percebemos um aumento da consciência sobre a necessidade do Estado proteger essas pessoas, apesar de isso não se expressar na formulação de leis pelo Legislativo. Mas é consenso, pelo menos entre aqueles que se importam minimamente com uma questão social tão gritante, que se deve interpretar os dispositivos legais existentes de forma a garantir a dignidade de todas as pessoas, considerando as suas particularidades. É por isso que se torna chocante a decisão da 10ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que entendeu que uma mulher transexual não teria direito à proteção da Lei Maria da Penha.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>
A Lei Maria da Penha indica a criação de mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Ela refere-se à categoria mulher de forma ampla, cabendo a interpretação de que a Lei 11.340 de 2006 inclui a proteção de todas as mulheres, inexistindo no texto legal qualquer leitura sobre o conceito de mulher estar adstrito ao de genitália. A decisão do TJSP, de maio de 2021, foi fundamentada no tradicional, porém anacrônico,  conceito de biologização do gênero.
<blockquote class="jota-article__eye">A leitura biológica da categoria mulher atua contra os objetivos da própria Lei Maria da Penha, que em seu artigo 5º conceitua violência utilizando a expressão "qualquer ação ou omissão baseada no gênero", o que indica o caráter sociológico da categoria.</blockquote>
A decisão também vai na contramão de decisões anteriores de tribunais brasileiros. Em 2018, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT) decidiu que a Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher é competente para o julgamento de casos de violência doméstica contra mulheres trans, e a elas devem ser concedidas as medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha. Nessa ocasião, o acórdão entendeu que:
“O gênero feminino decorre da liberdade de autodeterminação individual, sendo apresentado socialmente pelo nome que adota, pela forma como se comporta, se veste e se identifica como pessoa. A alteração do registro de identidade ou a cirurgia de transgenitalização são apenas opções disponíveis para que exerça de forma plena e sem constrangimentos essa liberdade de escolha. Não se trata de condicionantes para que seja considerada mulher. Não há analogia in malam partem ao se considerar mulher a vítima transexual feminina, considerando que o gênero é um construto primordialmente social e não apenas biológico. Identificando-se e sendo identificada como mulher, a vítima passa a carregar consigo estereótipos seculares de submissão e vulnerabilidade, os quais sobressaem no relacionamento com seu agressor e justificam a aplicação da Lei Maria da Penha à hipótese”.
(TJDFT,1° Turma Recursal, RSE 2021161007612-7. 0006926-72.2017.807.0020, JUIZADO ESPECIAL CRIMINAL E JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER DE ÁGUAS CLARAS, Acórdão n° 1089057, Relator Des. George Lopes Leite.)
Em janeiro de 2020, no mesmo sentido, foram deferidas em primeiro grau pelo Tribunal de Justiça do Acre (TJAL) medidas protetivas em face de uma mulher trans. A decisão destaca que “a despeito de ainda encontrar-se em trâmite projeto de lei que estende aos transgêneros e transexuais a proteção da Lei Maria da Penha, cabe ao Poder Judiciário enfrentar a questão, definindo o alcance da Lei 11.340/2006 com base em uma leitura moralizante da Constituição, fulcarada em axiomas e princípios, de modo a emprestar maior efetividade ao princípio da dignidade humana” (TJAL, <a href="https://www.conjur.com.br/dl/juiz-determina-aplicacao-lei-maria.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Autos n° 0700654-37.2020.8.02.058</a>, 4° JUIZADO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER, Relator Juiz de Direito Alexandre Machado de Oliveira, de 22 de janeiro de 2020.
É importante frisar também que tramita no Congresso Nacional o PL 191/2017, que visa incluir de forma expressa na Lei Maria da Penha, em seu art. 2º, que toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social. Apesar de já existir jurisprudência que considere gênero em sua leitura sociológica e da própria Lei 11.340 trazer a categoria em seu artigo 5°, a aprovação do PL 191/2017 pode garantir a universalização do acesso à proteção prevista pela lei, desencorajando leituras equivocadas e biologizantes do feminino, produzindo os efeitos que a Lei Maria da Penha prevê desde a sua publicação: o de coibir a violência contra a mulher em todas as suas dimensões, visando assegurar à pluralidade das mulheres oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservando a sua saúde física e mental e o seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.
É evidente que há elementos na legislação e na jurisprudência para justificar a concessão da medida protetiva prevista na Lei Maria da Penha às mulheres trans e travestis. A decisão do TJSP, entretanto, precisa nos alertar para um outro procedimento: o ativismo judicial conservador, que é dedicado a eliminar a diversidade e retroceder nos direitos conquistados pelas mulheres, pelas pessoas LGBTI+ e demais populações que têm o seu direito à dignidade negado historicamente. Decisões como essas merecem mais do que uma análise técnica de dispositivos legais. Demandam um posicionamento dos juristas e do Estado Brasileiro contra um ataque frontal aos direitos humanos.
<div id="sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6" role="main"></div>
<script type="text/javascript" src="https://d335luupugsy2.cloudfront.net/js/rdstation-forms/stable/rdstation-forms.min.js"></script> 
<script type="text/javascript"> new RDStationForms('sdr-inbound-form-artigos-impacto-nas-instituicoes-8c5227dd4ede3347a6c6', 'UA-53687336-1').createForm();</script>
Referências:
<a href="https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/lei-maria-da-penha-na-visao-do-tjdft/sujeitos-e-requisitos/sujeitos/transexual-feminina-como-sujeito-passivo" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Transexual feminina como sujeito passivo — Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios</a>
<a href="https://www.conjur.com.br/dl/juiz-determina-aplicacao-lei-maria.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/dl/juiz-determina-aplicacao-lei-maria.pdf</a>
<a href="https://www.conjur.com.br/2020-jan-26/juiz-alagoas-aplica-lei-maria-penha-favor-mulher-trans" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/2020-jan-26/juiz-alagoas-aplica-lei-maria-penha-favor-mulher-trans</a>
<a href="https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/conceito-mulher-nao-cabe-interpretacao-tj-sp-negar-pedido" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/2021-mai-20/conceito-mulher-nao-cabe-interpretacao-tj-sp-negar-pedido</a>
<a href="https://www.conjur.com.br/dl/juiz-determina-aplicacao-lei-maria.pdf" target="_blank" rel="noopener noreferrer">https://www.conjur.com.br/dl/juiz-determina-aplicacao-lei-maria.pdf</a>
&nbsp;

A non-binary femme in a gender neutral bathroom-2

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Brasil é um dos países mais violentos e que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo

Negar medidas protetivas às mulheres trans é um atentado aos direitos humanos

Brasil é um dos países mais violentos e que mais mata pessoas transexuais e travestis no mundo