Covid-19

O negacionismo pandêmico mata

Uma análise sobre a liberdade de expressão e os limites de propagar ‘bullshit’

Crédito: Unsplash

“I don’t have a short temper. I just have a quick reaction to bullshit” –  Elizabeth Taylor

Um dos maiores avanços civilizatórios, ao lado da invenção da escrita, da máquina de Gutenberg e dos emojis, foi a conquista do direito fundamental de falar besteira.  George Orwell dizia que “se a liberdade significa alguma coisa, significa o direito de dizer às pessoas o que elas não querem ouvir”. Indo mais no âmago da questão, Oscar Wilde arrematou: “posso não concordar com você, mas defenderei até a morte o seu direito de ser um idiota”.

A liberdade de expressão representa, de fato, não só o direito de dizer coisas banais que todos aceitam ouvir, mas também, e sobretudo, o direito de expressar ideias “odiadas”, para fazer alusão à famosa citação de Holmes.

Odiamos, de um modo geral, o embuste, a ignorância e a estupidez, que são os ingredientes daquilo que a epistemologia contemporânea tem denominado de bullshit, uma das principais commodities no mercado de ideias em que vivemos.

Harry G. Frankfurt, no seu tratado filosófico On Bullshit (“Sobre Falar Merda”, na tradução portuguesa), sugere que uma bullshit possui dois componentes essenciais: a intenção de convencer e a indiferença em relação ao valor de verdade da mensagem (FRANKFURT, 2005, p. 58).

O mentiroso (lier) difere do falador de merda (bullshiter) porque o mentiroso conhece a verdade, mas se esforça intencionalmente para escondê-la e deturpá-la. Já falador de merda (bullshiter) está pouco se lixando para a verdade.

Para ele, não interessa os rigores de uma hipótese metodologicamente testada, nem a crença validada pelos experts daquela área de conhecimento. O único interesse do interlocutor é persuadir, impressionar e obter vantagem com isso. Ele irá produzir bullshit sempre que seja proveitoso se manifestar sobre algum tópico que exceda o seu conhecimento e não terá qualquer pudor em apresentar suas opiniões absurdas como “verdade”, mesmo que seja um completo ignorante no assunto.

Bullshits costumam ser tão disparatadas que chamam a atenção e, portanto, dão um bom retorno de audiência para quem as propaga. Ninguém dará muita bola para um vídeo da NASA no Youtube que demonstra que a Terra é redonda. Porém, se alguém divulga um vídeo com “a prova definitiva de que a Terra é plana”, muitas pessoas vão cair nesse clickbait e perder o seu precioso tempo assistindo às parvoíces do espertalhão. E na economia da atenção, vence quem consegue capturar o foco das pessoas por mais tempo.

É relativamente fácil refutar uma bullshit. Basta ter um mínimo de discernimento, uma capacidade básica de pensar analiticamente e o cuidado de consultar fontes confiáveis. Porém, mesmo sendo fácil desmascarar um propagador de bullshit, é uma tarefa que demanda tempo. E convenhamos: em pleno século XXI, quem é a pessoa minimamente capacitada que vai gastar tempo, caracteres e energia mental para discutir com alguém que acredita que a Terra é plana?

Há até um princípio metadiscursivo criado para se referir a esse fenômeno: a Lei de Brandolini, também conhecida como “princípio da assimetria de bullshit”. De acordo com esse princípio, “a quantidade de energia necessária para refutar uma bullshit é uma ordem de magnitude maior do que para produzi-la”.

Como a energia para desmascarar uma bullshit é sempre maior do que a energia para produzi-la, a tendência é que as bullshits passem a ocupar cada vez mais e mais espaço. Em um jardim que não é devidamente podado, são as ervas daninhas que crescem com mais facilidade.

Seria tentador pensar em simplesmente proibir a propagação de bullshit. Afinal, se uma bullshit é uma mentira absurda, irracional e sem sentido, por que permitir que ela seja divulgada livremente?

O problema é que até mesmo as bullshits podem ter algum valor epistêmico. Acompanhe o raciocínio.

Em um debate científico, um pesquisador sem prestígio defende que o álcool em gel não funciona para combater o coronavírus. Ele sustenta que, como o álcool evapora rápido, o vírus irá se propagar em alta velocidade em um ambiente repleto de álcool, aumentando, portanto, a taxa de contaminação. É uma hipótese completamente disparatada e contrária às crenças do conhecimento científico atual. Para a comunidade científica, o álcool mata o vírus e, portanto, dificulta a sua propagação. Logo, a hipótese seria considerada absurda, uma verdadeira bullshit.

Porém, mesmo sendo bullshit, a proposta poderia ter o efeito de estimular a pesquisa sobre a eficácia do álcool em gel. Talvez, por conta disso, os cientistas poderiam descobrir qual a forma mais eficiente de usar o produto, qual a duração da proteção, quais são os efeitos colaterais e problemas do uso excessivo e assim por diante. Ou seja, a “mentira” (melhor dizendo: a hipótese disparatada) estaria a produzir um claro ganho epistêmico, contribuindo, ainda que indiretamente, para o avanço do conhecimento científico.

Daí porque a censura pura e simples das bullshits, pelo mero fato de serem bullshits, não é a melhor solução. Há diversas opções mais promissoras.

Por exemplo, refutar racionalmente pode ser uma boa estratégia, embora demande tempo, esforço e paciência (e uma dose de sangue frio para ouvir asneiras sem embrulhar o estômago). Mas mesmo a refutação tem uma externalidade negativa: ela proporciona um efeito de holofote no propagador da bullshit, aumentando a sua fama que é exatamente o que ele pretende.

Por isso, ignorar é outra estratégia bem razoável, e tem sido a que costumo adotar na maioria das vezes. Ridicularizar de acordo com o grau de absurdidade da bullshit também está valendo como forma de baixar o nível do debate para equalizar as armas discursivas. E até xingar pode ser uma boa alternativa, já que, muitas vezes, a vontade que dá mesmo é simplesmente mandar os propagadores de bullshit para o quinto dos infernos. Mas proibir a livre expressão será, em linha de princípio, uma má ideia. Como diria George Washington, “quando a liberdade de expressão nos é tirada, logo poderemos ser levados, como ovelhas, mudos e silenciosos, para o abate”.

Embora silenciar um discurso na marra seja, em princípio, uma péssima ideia, mesmo os mais fervorosos defensores da liberdade de expressão acreditam que há alguns discursos que não merecem ser protegidos. Por exemplo, Oliver Wendell Holmes Jr., que já citamos no início do texto como autor da máxima de que a liberdade expressão protege até mesmo ideias que odiamos, também é o autor de outra frase famosa: “a proteção mais rigorosa da liberdade de expressão não protegeria um homem que falsamente gritasse fogo em um teatro, causando pânico”. Dentro dessa lógica, um discurso que tivesse o potencial de criar um perigo claro e imediato não estaria protegido, sendo legítimo ao poder público estabelecer mecanismos de controle para prevenir e reprimir a sua propagação.

Outro ícone da liberdade de expressão é John Stuart Mill, que tinha um poderoso argumento contra toda forma de censura. Para ele, devemos sempre manter uma humildade intelectual para aceitar opiniões divergentes, já que somos falíveis e nada pode garantir que a nossa visão é a correta.

Além disso, mesmo as mensagens mais absurdas podem conter alguma dose de verdade que não foi devidamente percebida pela opinião dominante. E mesmo que não contenha verdade alguma, seria um erro reprimi-las, pois a expressão da falsidade tende a tornar mais clara e mais vívida a compreensão da realidade. Apenas o choque de opiniões antagônicas é capaz de permitir que a verdade venha à tona, razão pela qual deveríamos sempre encorajar o confronto de ideias e não tolher a liberdade de pensamento. O silêncio forçado poderia até produzir “uma espécie de pacificação intelectual”, mas isso ocorreria às custas do sacrifício de “toda a coragem moral da mente humana” (MILL, 2003).

O próprio John Stuart Mill, contudo, relativiza a sua defesa eloquente de um mercado livre de ideias com o princípio do dano. De acordo com ele, seria legítimo ao estado estabelecer restrições à liberdade para evitar que as pessoas causem danos umas às outras. Por exemplo, não seria aceitável permitir um discurso de incitação à violência ou tolerar que alguém instigue uma multidão furiosa a praticar algum ato pernicioso contra outro ser humano. Desse modo, mesmo na perspectiva de um autêntico expoente do liberalismo, a fala poderia ser limitada quando causar uma violação direta e clara a direitos de terceiros.

A questão é que nem toda bullshit possui um potencial danoso. Muitos absurdos que são propagados nos dias de hoje são inofensivos. Talvez ofendam a inteligência humana, mas, a rigor, não causam danos no sentido estrito do termo. Por exemplo, defender que a Terra é plana é um absurdo equivalente a achar que Elvis não morreu. É um completo nonsense, mas não interfere de modo negativo no direito de quem quer que seja.

Por outro lado, há situações em que a bullshit pode produzir danos. Em questões de saúde, por exemplo, a propagação de absurdos pode ter um enorme efeito prejudicial à população, inclusive ao ponto de colocar em risco vidas humanas.

Vamos a um exemplo hipotético para depois voltar ao debate real. Imagine que um médico fale a um paciente que a sua doença será curada se ele ingerir uma elevada dose de cicuta. O paciente, cumprindo a recomendação do médico, compra o veneno e ingere exatamente a dosagem prescrita. Alguns minutos depois, ocorre a sua morte fulminante. Nesse caso, não há a menor sombra de dúvida de que o médico deve ser responsabilizado pela morte do paciente. O médico não poderá invocar a liberdade de expressão ou de prescrição para defender o seu direito de recomendar a cicuta a seus pacientes.

No caso acima, a relação de causalidade entre o discurso do médico e a morte do paciente entra no conceito de plausibilidade extrema. É fácil inferir que, quando um médico recomenda uma alta dosagem de cicuta, a sua prescrição irá causar a morte do paciente que tomar o veneno. O discurso, portanto, produz não só um perigo claro e imediato, mas um dano efetivo. John Austin diria que o ato de fala do médico teria uma elevada força perlocutória, ou seja, de motivar a ação, já que os pacientes tendem a seguir a orientação do médico.

Porém, nem sempre é fácil estabelecer a relação de causalidade entre o discurso e o dano. Se uma pessoa sem qualquer credibilidade defender que beber cicuta cura o câncer, provavelmente ninguém irá seguir a sua recomendação. Nesse caso, o potencial danoso da bullshit é bem limitado, pois pessoas com baixa credibilidade não costumam influenciar o comportamento alheio. John Austin diria, nesse caso, que o ato de fala teria pouca força perlocutória, já que ninguém dá bola a uma pessoa sem credibilidade.

Mesmo quando a bullshit é expressa por alguém que tem algum poder de influência, como um youtuber famoso ou um líder político, ainda assim não é fácil estabelecer um nexo de causalidade entre o discurso e o dano. Tomemos, por exemplo, o discurso do Presidente Trump afirmando que o coronavírus é uma conspiração chinesa para controlar o mundo. A mensagem parece encobrir uma intenção subjacente de criar um preconceito contra os chineses, mas não há uma instigação clara e direta de violência ou mesmo de exclusão de direitos. Estaríamos aqui em uma zona cinzenta, pois não é fácil medir o efeito dessa bullshit sobre o aumento da xenofobia contra os chineses.

Há, contudo, outras formas de bullshit que causam danos mais diretos, inclusive com o potencial de ceifar vidas humanas. Vejamos outras pérolas do Presidente Trump. Seu discurso negacionista afirmava que a pandemia era uma gripe como outra qualquer e, portanto, não havia qualquer necessidade de adotar medidas de proteção. Esse discurso pode, claramente, induzir as pessoas a agirem de modo mais displicente, aumentando a taxa de disseminação do vírus. A mesma lógica se aplica a sua postura antimáscara e a sua crítica ao lockdown, que tem como efeito prejudicar as políticas sanitárias de achatamento da curva e estimular a imprudência comportamental.

Do mesmo modo, ao propagar que as vacinas causam autismo, o intuito implícito do Presidente norte-americano era produzir medo nas pessoas, reduzindo, como consequência, a adesão às campanhas de vacinação e tornando ainda mais difícil o controle da pandemia. Na mesma linha, ao afirmar que há um tratamento mágico que, milagrosamente, é capaz de curar a COVID-19, como ele fez ao defender o uso da cloroquina e a ingestão de detergente, o resultado foi a busca pela automedicação, a redução das cautelas devidas contra a transmissão do vírus e o boicote às políticas locais que seguiam as recomendações dos especialistas.

Veja que o problema dessas bullshits não é o fato de elas reproduzirem informações sem evidências suficientes, baseadas em má-ciência e contrárias ao mainstream da comunidade especializada. Como já foi dito, mesmo as ideias mais disparatadas possuem algum valor epistêmico e podem contribuir para o avanço do conhecimento. Além disso, ninguém é obrigado a acreditar e a expressar apenas informações que tenham o selo oficial da ciência, até porque as hipóteses científicas são, por essência, refutáveis, falíveis e provisórias. Propor conjecturas ousadas, mesmo contra o pensamento dominante, é um requisito essencial para o progresso do conhecimento e deve ser até estimulado e não reprimido. Não é, portanto, esse o problema. O problema é a intenção subjacente ao discurso político, que visa não apenas estimular o debate, mas sobretudo motivar a ação.

O que acontece quando alguém com poder de liderança, como o Presidente Trump, afirma que “a cloroquina cura a COVID-19” não é apenas propor uma linha terapêutica para ser testada, mas criar uma ilusão na mente de seus seguidores que levará, como efeito direto, a um movimento desesperado em busca do remédio, à minimização dos riscos pandêmicos e à hostilidade contra as demais medidas de proteção.

Nesses casos, se for possível demonstrar uma relação de causa e efeito entre o discurso e o aumento da taxa de contaminação, parece inegável que as pessoas com poder de influência que propagam essas bullshits devem ser responsabilizadas pelas consequências das besteiras que dizem.

A questão central é a seguinte: nessas situações, o discurso tem alguma força perlocutória? Em outras palavras: a propagação de ideias negacionistas sobre a pandemia pode ter o efeito de motivar e influenciar efetivamente o comportamento de outras pessoas ao ponto de aumentar a taxa de contaminação e a quantidade de óbitos?

Em um estudo conduzido por Adam Brzezinski, da Universidade de Oxford, os pesquisadores analisaram se existe uma correlação entre as crenças das pessoas sobre a ciência e tópicos de consenso científico com o cumprimento das ordens de distanciamento social (BRZEZINSKI E OUTROS, 2020). A hipótese era de que as pessoas que são céticas sobre alguns temas consolidados na comunidade científica, como as mudanças climáticas causadas pela ação humana, tendem a desobedecer com mais frequência à recomendação de ficar em casa durante o lockdown.

A hipótese foi confirmada com a análise de dados obtidos a partir do monitoramento de movimento de telefones celulares de cerca de 40 milhões de pessoas durante a decretação do lockdown em várias localidades norte-americanas, na segunda quinzena de março de 2020. A crença na ciência, segundo os pesquisadores, está associada a um maior nível de conformidade com as políticas de ficar em casa. Por outro lado, o ceticismo científico (que poderíamos chamar de bullshitism) produz uma desconfiança em relação à eficácia das medidas de distanciamento social e, consequentemente, uma maior violação às políticas de isolamento (shelter-in-place policies).

Um estudo ainda mais específico correlacionou a predisposição em acreditar em teorias conspiratórias com a taxa de compliance das políticas mandatórias de distanciamento social no Reino Unido, durante o mês de abril de 2020 (SWAMI & BARRON, 2020). A pesquisa contou com a participação de 520 voluntários que responderam a um questionário que mediu a capacidade de pensar analiticamente, a crença em teorias conspiratórias e o respeito às regras mandatórias de distanciamento social. O resultado indicou que, quanto maior é a capacidade de pensar analiticamente, maior é a predisposição em rejeitar teorias conspiratórias e aceitar as regras de proteção. Por outro lado, as pessoas com baixa capacidade analítica tendem a acreditar facilmente em teorias conspiratórias e a rejeitar as políticas de combate à pandemia.

Mesmo antes da pandemia do coronavírus, já existiam estudos sugerindo que os indivíduos que acreditam em teorias da conspiração são mais propensos a seguir comportamentos antissociais. Por exemplo, a crença em bullshit está associada a uma visão menos favorável à vacina contra a gripe pandêmica H1N1 na França (SETBON & RAUDE, 2010) e a uma menor eficácia das medidas de intervenção contra o surto de influenza na Suíça (EICHER E OUTROS, 2014).

Os estudos acima, contudo, não correlacionam discurso e comportamento, mas crença e comportamento. E todos chegam à mesma conclusão: quem crê em bullshit tende a agir como um asshole.

Mas e o discurso negacionista? Qual é o seu efeito na prática?

Um estudo do National Bureau of Economic Research analisou o efeito persuasivo da Fox News nas políticas de distanciamento social nos Estados Unidos. A proposta metodológica teve como objetivo estimar o efeito do aumento da audiência da Fox News sobre o comportamento de cumprir a recomendação de ficar em casa. A hipótese era a de que a linha editorial da Fox, orientada pelo negacionismo pandêmico, influenciaria o comportamento dos telespectadores, levando a um maior descumprimento às regras de isolamento social (SIMONOV E OUTROS, 2020).

Analisando os números da audiência dos três principais canais de notícias de TV a cabo nos EUA (Fox News, CNN e MSNBC), os pesquisadores constataram que existem fortes evidências de que o aumento da audiência da Fox News produz um aumento de descumprimento de medidas de distanciamento social. Para ser mais preciso, nos locais em que a audiência da Fox News é maior, a taxa de isolamento social é menor (SIMONOV E OUTROS, 2020).

Outro estudo na mesma linha comprovou que o “efeito Fox News” prejudica não apenas a adesão às medidas de distanciamento social, mas também o consumo dos produtos de proteção e de higiene (por exemplo, álcool em gel, máscaras e desinfetante, este último para limpeza e não para ingestão, obviamente). Ou seja, além de se comportarem de modo mais imprudente, os telespectadores da Fox News investiram menos na prevenção contra o coronavírus. Segundo os pesquisadores, os dados sugerem que essa linha comportamental não está relacionada apenas à posição partidária ou ao ceticismo em relação às evidências científicas dos telespectadores. Em vez disso, as mudanças comportamentais foram diretamente influenciadas pelas mensagens específicas dos programas televisivos, que minimizavam os riscos pandêmicos e questionavam as medidas de proteção (ASH E OUTROS, 2020).

Os estudos acima sinalizam com clareza que um discurso negacionista pode ter efeitos sobre o comportamento das pessoas, aumentando o desrespeito às medidas de distanciamento social e reduzindo a adoção de medidas de proteção, como o uso de máscaras. Nenhum deles, contudo, faz uma correlação entre o discurso negacionista e o aumento do número de contaminação e de óbitos decorrentes da COVID-19.

Apesar disso, é de se presumir que, quanto menor for a adesão às medidas de distanciamento e ao uso de máscaras, maior será o ritmo de contaminação e, consequentemente, de mortes. Sobre isso, Leonardo Bursztyn, da Universidade de Chicago, conduziu um estudo sobre a desinformação durante a pandemia, demonstrando que as áreas com maior audiência aos programas que minimizam a ameaça de COVID-19 tendem a vivenciar um maior número de casos e de mortes.

No referido estudo, os pesquisadores compararam o comportamento dos telespectadores a partir do exame da audiência dos dois programas de notícias mais populares na TV a cabo norte-americana: Hannity e Tucker Carlson Tonight. Ambos os programas são transmitidos pela Fox News e eram ideologicamente alinhados até antes de janeiro de 2020. Porém, durante a pandemia, cada um seguiu um posicionamento diferente, sendo que o Hannity adotou uma postura negacionista e o Tucker Carlson Tonight, uma postura de prudência e de preocupação com os riscos pandêmicos.

Como resultado, verificou-se que os telespectadores do Hannity demoraram mais tempo para mudar o comportamento em relação à pandemia, enquanto os telespectadores do Tucker Carslon Tonight mudaram o comportamento mais cedo. Isso teve impacto também no número de mortes: a maior exposição ao Hannity aumentou o número total de casos e de mortes nos estágios iniciais da pandemia, o que indica que a desinformação midiática pode ter consequências sociais significativas (BURSZTYN E OUTROS, 2020).

Outro estudo conduzido por Robert Hahn analisou essa questão mais diretamente, procurando estimar os efeitos dos discursos do então Presidente Trump sobre o uso de máscaras e a sua relação com o comportamento dos norte-americanos.

Em 3 de abril de 2020, Trump iniciou abertamente uma campanha contra o uso de máscaras, afirmando que não iria usá-las, como, de fato, não usava em público. Essa postura somente foi alterada em 21 de julho de 2020, quando o presidente abrandou as bravatas antimáscara, passando a usar a proteção facial em público.

Hahn mediu os efeitos do discurso antimáscara no crescimento epidemiológico do coronavírus durante esse período em que Trump desdenhou da proteção. Os dados indicaram que, nesse período, a taxa de adesão ao uso de máscaras caiu, gerando impacto no aumento da taxa de contaminação e, consequentemente, no número de mortes. Nem todas as pessoas que deixaram de usar máscaras durante esse período foram diretamente motivadas pelo discurso trumpista. Por isso, o estudo analisou três cenários. Em um cenário mais conservador, apenas 25% das pessoas que deixaram de usar máscaras foram influenciadas pelo discurso.

Nesse caso, as mortes influenciadas pela mensagem do Presidente Trump chegariam ao número de 4.244. Em um cenário moderado, o poder de influência do discurso seria de 50%. Nesse caso, o número de mortes decorrentes da não observância do uso de máscaras atribuíveis ao discurso presidencial chegaria a 8.356. No último cenário, previu-se um poder de influência de 75%. Nesse caso, 12.202 pessoas teriam morrido por causa das bullshits ditas pelo líder da nação apenas sobre o uso de máscaras, sem levar em conta os outros discursos disparatados sobre a recomendação da cloroquina, a crítica ao distanciamento social ou o estímulo ao consumo de água sanitária (HAHN, 2020).

Os estudos científicos acima citados foram produzidos pelas mais prestigiosas instituições de pesquisa do mundo e utilizaram uma sofisticada metodologia da análise de dados, com refinados instrumentos de modelagem estatística, para chegar a uma conclusão simples: as bullshits são uma merda!

Bullshits não são apenas disparates toscos, ingênuos e inofensivos de mentes com déficit intelectual, que espalham asneiras sem pensar. São ferramentas de um discurso estratégico com propósitos deliberados e bem definidos. Olhando especificamente para o tipo de discurso proferido pelo então Presidente Trump, vê-se que falar merda deixou de ser motivo de constrangimento para ser um meio eficiente de chamar atenção, angariar audiência, ganhar seguidores, aumentar o engajamento, obter votos, produzir cortina de fumaça (firehosing), manipular a verdade etc. Cada palavra colocada nos seus textos e nas suas falas tem uma função bem definida dentro de seu plano político-ideológico. Se há bônus para aqueles que propagam as bullshits, também deve haver ônus. E o principal ônus é justamente a responsabilização moral, política e jurídica pelo efeito produzido pelas bullshits.

No contexto pandêmico, bullshits matam. Matam diretamente, porque influenciam a imprudência comportamental; e matam indiretamente, pois elevam os custos políticos para a adoção de medidas sanitárias relevantes para combater a pandemia, atrasando a sua implementação e diminuindo a sua eficácia.

É contraditório acreditar que a liberdade de expressão é essencial à democracia e, ao mesmo tempo, sugerir que não há nexo de causalidade entre o discurso de um líder político e a respectiva ação de seus seguidores. A importância da liberdade de expressão para a democracia está justamente na capacidade do discurso de interferir na formação da vontade coletiva e individual. O discurso político incorpora necessariamente uma pretensão de motivar a ação alheia. Quem fala no contexto político fala para convencer. Logo, o desejo de influenciar está na essência dessa forma de comunicação.

Uma pessoa em posição de influência, como Donald Trump, cujo discurso tem a capacidade de motivar e convencer milhares de pessoas, que propaga asneiras sem se preocupar com o seu valor de verdade, nem se importa com as crenças dominantes dos experts no assunto, com o propósito subjacente de criticar as medidas de proteção, estimular a imprudência comportamental e promover o seu programa político-ideológico, torna-se diretamente responsável pelo aumento da taxa de contaminação e das mortes daí decorrentes.

Justamente por ser a liberdade de expressão essencial à democracia, devemos responsabilizar os propagadores de bullshit pelos efeitos de seus discursos. Afinal, se é verdade que somos eternamente responsáveis por aquilo que cativamos, como diria Saint-Exupéry, então devemos aceitar também outra máxima para os tempos de bullshit: somos todos responsáveis pelas asneiras que saem de nossas bocas e pelas sandices que são digitadas pelos nossos dedos.


O episódio 53 do podcast Sem Precedentes discute ações sobre a Lei de Segurança Nacional, que tem sido usada em inquéritos contra críticos de Bolsonaro. Ouça:


REFERÊNCIAS

AJZENMAN, Nicolas; CAVALCANTI, Tiago; DA MATA, Daniel. More than words: Leaders’ speech and risky behavior during a pandemic. Available at SSRN 3582908, 2020

ASH, Elliott et al. The effect of Fox News on health behavior during COVID-19. Available at SSRN 3636762, 2020

BRZEZINSKI, Adam et al. Belief in science influences physical distancing in response to covid-19 lockdown policies. University of Chicago, Becker Friedman Institute for Economics Working Paper, n. 2020-56, 2020

BURSZTYN, Leonardo et al. Misinformation during a pandemic. National Bureau of Economic Research, 2020.

EICHER, Veronique et al. Fundamental beliefs, origin explanations and perceived effectiveness of protection measures: exploring laypersons’ chains of reasoning about influenza. Journal of community & applied social psychology, v. 24, n. 5, p. 359-375, 2014

FRANKFURT, Harry G. On Bullshit. Princeton University Press, 2005; Sobre Falar Merda. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2005

HAHN, Robert A. Estimating the COVID-Related Deaths Attributable to President Trump’s Early Pronouncements About Masks. International Journal of Health Services, v. 51, n. 1, p. 14-17, 2021.

MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. 8ª Ed. São Paulo: Ed. Atlas, 2019

MILL, John Stuart. On Liberty. New York: Yale University Press, 2003

SETBON, Michel; RAUDE, Jocelyn. Factors in vaccination intention against the pandemic influenza A/H1N1. European journal of public health, v. 20, n. 5, p. 490-494, 2010

SIMONOV, Andrey et al. The persuasive effect of fox news: non-compliance with social distancing during the covid-19 pandemic. National Bureau of Economic Research, 2020

SWAMI, Viren; BARRON, David. Analytic thinking, rejection of coronavirus (COVID-19) conspiracy theories, and compliance with mandated social-distancing: Direct and indirect relationships in a nationally representative sample of adults in the United Kingdom. 2020

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