Taís Schilling Ferraz

Luciano Felício Fuck

<div class="page" title="Page 1">
<div class="section">
<div class="layoutArea">
<div class="column">
Sancionado e promulgado, no corrente ano, o novo Código de Processo Civil (NCPC) entrará em vigor em 16 de março de 2016, em meio a diversas polêmicas.
É certo que o NCPC deu especial atenção ao respeito aos precedentes, consagrando diversos efeitos expansivos a decisões dos tribunais, em particular das Cortes superiores. Com efeito, no relatório do trabalho da Comissão encarregada da elaboração do anteprojeto do novo Código de Processo Civil, o Ministro Luiz Fux, Presidente, elencou como valores determinantes das novas normas desenhadas uniformidade e estabilidade da jurisprudência, preservação das justas expectativas, previsibilidade, segurança jurídica e isonomia. [1]
Nessa linha, as disposições do NCPC preveem especificamente a vinculação de juízes e tribunais às decisões judiciais anteriores, especialmente das Cortes superiores. Em outras palavras, seguir precedentes tornou-­se, agora, estrito dever legal.
Implantar um sistema de precedentes, entretanto, mais que obedecer à lei, é reconhecer a autoridade e a legitimidade do órgão prolator das decisões e atribuir a elas a condição de fontes primárias do direito. É decidir casos individuais à luz dos fundamentos que solucionaram situações anteriores, prestigiando valores como coerência, integridade do sistema jurídico­ constitucional, segurança, previsibilidade, estabilidade, igualdade, entre outros.
No que diz respeito ao instituto da repercussão geral, no entanto, uma parcela das alterações trazidas pelo NCPC subverte o sistema de precedentes e consiste, em verdade, em violenta reação às mudanças ocorridas desde a EC 45/2004. [2]
Há muitas décadas diagnosticou-­se a crise do recurso extraordinário que, paulatinamente, vinha inviabilizando o Supremo Tribunal Federal, dado o número excessivo de feitos que chegava à Corte. Nem a criação do STJ, na CF/1988, conseguiu conter a sobrecarga de processos no STF, que chegou ao ápice no ano de 2002, quando 160.453 feitos foram lá protocolados, a maior parte recursos extraordinários e agravos de instrumento tratando de uma única controvérsia constitucional: o direito adquirido à atualização monetária do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. [3]
Daí que a reforma do Poder Judiciário tenha procurado instrumentos para reduzir o número de demandas que, na prática, inviabilizavam a mais alta Corte do país. Dois institutos foram criados pela EC 45/2004: a súmula vinculante e a repercussão geral. Ambos destacavam­-se por ampliar o efeito multiplicador das decisões do STF, dando início a um regime de precedentes e restringindo a subida de recursos à Corte.
De fato, a EC 45/2004 desonerou o STF da análise individual de todas as ações, para que pudesse se dedicar ao exame dos temas de maior relevância e transcendência, e resgatou, em alguma medida, o poder das instâncias ordinárias. Estas se tornaram as responsáveis últimas por dar solução definitiva a cada caso concreto, aplicando os precedentes da Corte Constitucional nas demandas múltiplas, e decidindo definitivamente as questões que não mais chegariam ao STF, por ausente a repercussão geral.
No caminho contrário desse movimento, porém, o novo Código de processo Civil retoma o velho modelo e permite a remessa de cada um dos processos em tramitação no Brasil ao STF.
O NCPC introduz, entre as hipóteses de cabimento da reclamação, no art. 988, IV, a sua utilização para garantir a observância de tese assentada em julgamento de recursos repetitivos, no âmbito dos tribunais superiores. Mais adiante, no art. 1.042, o texto também prevê a possibilidade de interposição de agravo ao STF ou ao STJ da decisão do presidente, ou vice­-presidente, que, aplicando o precedente, nega seguimento ao recurso extraordinário ou especial que impugna decisão conforme ao entendimento adotado pelos tribunais superiores acerca da mesma questão de direito (inciso II). O agravo será cabível, ainda, da decisão do presidente ou vice­-presidente que, na origem, nega seguimento a recurso extraordinário fundado em questão constitucional a que o STF negou repercussão geral (III).
Tais normas não estavam contempladas no anteprojeto do novo Código de Processo Civil. A Comissão de juristas que o elaborou, respeitando a jurisprudência já assentada nos tribunais superiores sobre a inadmissibilidade desses mecanismos, previu que as decisões dos tribunais de origem que aplicassem precedentes do STF e do STJ em recursos repetitivos ensejariam revisão no próprio órgão recorrido. Foi através do substitutivo da Câmara dos Deputados que tais normas, assim como diversas outras, foram introduzidas no texto, provocando graves riscos à efetividade do sistema de precedentes, à duração razoável do processo e à própria sistematização do código.
O pressuposto da instituição da repercussão geral reside, justamente, em selecionar as questões constitucionais mais relevantes e impactantes para apreciação do STF. [4] Isso significa, por óbvio, deixar de receber as questões de menor transcendência, poupando a Corte de reexaminar todos os casos concretos.
A finalidade é que o precedente formado no julgamento do recurso representativo de controvérsia constitucional, que teve a repercussão geral reconhecida, produza efeitos expansivos verticais [5] sobre as demais instâncias do Poder judiciário, de modo que o STF precise decidir uma única vez a questão, cabendo às instâncias ordinárias dar efeito multiplicador ao precedente, no julgamento subsequente e definitivo dos casos concretos condicionáveis à mesma ratio decidendi.
Contra essa clara finalidade constitucional, entretanto, o NCPC previu agravo contra a aplicação do efeito multiplicador na origem, seja contra a decisão que aplica o precedente de ausência de repercussão geral para negar seguimento ao recurso extraordinário, seja contra a decisão que reconhece conformidade do acórdão impugnado com precedente de mérito da repercussão geral. Ao invés de acabar com o agravo em recurso extraordinário (ARE) – o que seria coerente com a opção feita pelo fim do exame de admissibilidade na origem ­, o NCPC ampliou imensamente seu âmbito de utilização.
Em face de decisão do tribunal de origem que, em juízo de retratação, promove a adequação do julgado anterior ao precedente do STF, o novo Código permitiu o uso de reclamações.
A possibilidade de manejo de reclamação, tendo por fundamento a aplicação de um precedente de tribunal superior, é de tal forma ampla no NCPC (art. 988, IV), que será cabível contra qualquer decisão que invoque precedente, em qualquer grau de jurisdição ou fase do processo.
Em outras palavras, o NCPC atribuiu ao STF a tarefa de realizar qualquer distinguishing com seus precedentes, de forma a inutilizar todo o esforço de desoneração e a própria eficácia da repercussão geral. A remessa dos feitos ao STF – ainda que para análise monocrática sobre a aplicação do precedente – devolverá à Corte o incrível número de feitos que foram evitados nos últimos anos e implicará considerável demora até o trânsito em julgado.
E o fez contrariando a orientação e julgados do STF. A admissibilidade de recursos e reclamações contra decisões dos tribunais de origem que aplicam precedentes em recursos repetitivos foi sistematicamente recusada pelos tribunais superiores.
Os fundamentos desta deliberação podem ser recolhidos, basicamente, de dois julgados-­paradigma: a Questão de Ordem no Agravo de Instrumento 760.358/SE, [6] em que foi relator o Ministro Gilmar Mendes, e a Reclamação 7.569/SP, [7] relatada pela Ministra Ellen Gracie. Nessas decisões, ambas ocorridas na sessão plenária de 19 de novembro de 2009, o STF pacificou que não é cabível agravo de instrumento da decisão do tribunal de origem que, em cumprimento do disposto no § 3o do art. 543­B, do CPC, aplica decisão de mérito do STF em questão de repercussão geral, tampouco reclamação. 
Na oportunidade, o Ministro Peluso apontava a inviabilidade de o STF apreciar cada processo, pois “sempre que o tribunal a quo aplicar a decisão ou a tese do Supremo, uma das partes vai poder alegar que não se está cumprindo a decisão da Corte”. 
Com isso, advertia o Ministro, o sistema anterior, que admitia, em tese, que cada situação individual chegasse ao STF, seria restabelecido. Para ele, se o STF continuasse a ter que decidir caso a caso, em sede de agravo de instrumento, mesmo que os Ministros da Corte aplicassem monocraticamente o entendimento firmado no caso­paradigma, “a racionalização objetivada pelo instituto da repercussão geral, de maneira alguma, será alcançada (...) significa restabelecer o modelo da análise casuística”.
Seu vaticínio, com o NCPC, torna-­se concreto.
O voto do Ministro Gilmar Mendes registrou a importância de serem compreendidos os papéis dos órgãos do Poder Judiciário no novo sistema:
Houve uma opção política na reforma constitucional. Temos que assumir definitivamente a função de Corte Constitucional e abandonar a função de Corte de Revisão. Temos que confiar na racionalidade do sistema e na aplicação de nossas decisões pelas Cortes de Origem.
Ademais, há mecanismos para a identificação e a reparação de situações teratológicas. O sistema processual as admite. A coisa julgada inconstitucional é inexigível e enseja ação rescisória. Contamos com ações constitucionais, contamos com diversos mecanismos de controle concentrado de constitucionalidade. Temos instrumentos fortes e largos o suficiente para abrir mão desse papel revisional individual que, por tantos anos, restringiu as condições desta Corte de debruçar­-se sobre um maior número de questões constitucionalmente relevantes...
...A decisão, que foi do legislador e não nossa, de não mais submeter ao STF, individualmente, os recursos múltiplos, precisa estar cercada de mecanismos que a tornem efetiva, especialmente nestas primeiras decisões sobre procedimento...
...O que estou defendendo, portanto, é que os tribunais e turmas recursais de origem têm competência para dar encaminhamento definitivo aos processos múltiplos nos temas levados à análise de repercussão
geral. Não há, nesta hipótese, delegação e competência. O Tribunal a quo a exerce por força direta da nova sistemática legal (o sublinhado não é do original).
Esse entendimento tem sido sucessivamente aplicado às tentativas de se fazer chegar ao exame individual no STF reclamações e agravos intentados após decisões que aplicam o regime da repercussão geral, à exceção da exclusiva hipótese em que a Corte de origem tenha se recusado ao juízo de retratação (§4o do art. 543­B. [8]
Na mesma esteira, o Superior Tribunal de Justiça inadmite reclamações e agravos interpostos de decisões que aplicam seus precedentes originados do sistema de julgamento de recursos repetitivos. [9] Ambas as cortes superiores compreendem que a admissão de tais mecanismos acaba por subverter um dos principais vetores da instituição do sistema brasileiro de precedentes: o de lhes reservar o papel de Cortes de interpretação, retirando­ lhes a competência para revisar as decisões de todo o Poder Judiciário.
Esta opção dos tribunais superiores passou, como visto, por uma análise sobre a relevante e complexa missão dos órgãos de origem em um sistema de precedentes. Ao mesmo tempo em que se reconhece eficácia ultra partes aos julgamentos dos tribunais superiores, assegura-­se que casos individuais possam ter tratamento específico, quando suas singulares e determinantes circunstâncias o exigirem.
A possibilidade de recurso ao STF de cada uma dessas decisões pressupõe que, como regra, serão contrárias aos seus precedentes, o que vai na contramão da própria legitimidade e da natural autoridade que o sistema busca que se reconheça às decisões do Poder Judiciário, ao alçá-­las à condição de fontes primárias do Direito.
Na prática, os arts. 988 e 1.042 do NCPC contrariam a própria finalidade da repercussão geral e dos recursos repetitivos, reinstituindo a análise casuística pelo STF e pelo STJ, com todos os riscos que daí decorrem, inclusive de ser necessário reinstituir a jurisprudência defensiva.
Neste ponto, os mencionados dispositivos do NCPC não se traduzem apenas em procedimentos árduos e custosos. Trata­se de verdadeira distorção, capaz de anular a função e, portanto, aniquilar o próprio instituto da repercussão geral, comprometendo seriamente o sistema brasileiro de precedentes, sendo, por isso mesmo, inconstitucional. A criação de expediente legal que devolve à competência do STF processos que a norma constitucional dela procurou excluir constitui visível inconstitucionalidade.
<div class="page" title="Page 1">
<div class="section">
<div class="layoutArea">
<div class="column">
<hr />
Juíza Federal em Porto Alegre, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS, juíza auxiliar da Presidência do Supremo Tribunal Federal, de 2008 a 2010.
</div>
</div>
</div>
</div>
Professor de graduação e pós­graduação do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Mestre em Direito (LL.M. Eur.) pela Universidade de Munique (Ludwig­Maximilians­Universität – LMU), Alemanha, Doutor em Direito pela Universidade de São Paulo – USP. Chefe de Gabinete do Ministro Gilmar Mendes no Supremo Tribunal Federal.
<hr />
&nbsp;
[1] - Disponível em:&lt;http://www.senado.gov.br/senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf&gt;. Acesso em: 11 ago. 2015.
[2] - Embora a grande parte das afirmações que serão objeto de análise se apliquem ao STJ, no regime de recursos repetitivos, o artigo estará centrado na repercussão geral, pela opção de priorizar a dimensão constitucional das alterações introduzidas pelo NCPC.
[3] - A propósito do histórico da crise do Supremo Tribunal Federal, cf. FUCK, Luciano Felicio. O Supremo Tribunal Federal e a repercussão geral. REPRO, ano 35, n. 181, mar 2010. p. 9­37.
[4]  Cf. MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 472­5. DANTAS, Bruno. Repercussão geral: perspectivas histórica, dogmática e de direito comparado; questões processuais. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 249.
[5] - A propósito, MARINONI, Luiz Guilherme. Precedentes obrigatórios. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 476.
[6] -  STF, AI 760.358/SE QO, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 19 nov. 2009, DJe 19 fev. 2010. 9 STF, Rcl 7.569/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 19 nov. 2009, DJe 11 dez. 2009.
[7] - STF, Rcl 7.569/SP, Rel. Min. Ellen Gracie, j. 19 nov. 2009, DJe 11 dez. 2009.
[8] - STF, Rcl 7.547/SP, Rel. Min Ellen Gracie, j. 19 nov. 2009, DJe 11 dez. 2009; AI 783.839/MG ED, Re. Min. Cezar Peluso, j. 1 dez. 2010, DJe 1 fev. 2011; ARE 682.753/DF AgR, Rel. Min. Celso de Mello, j. 12 jun. 2012, DJe 1 ago. 2012; Rcl 11.469/DF AgR, Rel. Min. Luiz Fux, j. 19 set. 2013, DJe 15 out. 2013, entre muitos outros.
[9] - STJ, AgRg na Rcl 6.627/PI, Rel. Min. Mauro Campbell, j. 9 nov. 2011, DJe 18 nov. 2011.
<div class="page" title="Page 1"></div>
</div>
</div>
</div>
</div>

Observatório-de-legislação

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Com novo Código de Processo Civil, seguir precedentes tornou-­se estrito dever legal

NCPC e o fim da repercussão geral

Com novo Código de Processo Civil, seguir precedentes tornou-se estrito dever legal

NCPC e o fim da repercussão geral

Com novo Código de Processo Civil, seguir precedentes tornou-­se estrito dever legal

Com novo Código de Processo Civil, seguir precedentes tornou-se estrito dever legal