Está agendada para a próxima quarta-feira (11) a sessão do pleno do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que definirá as listas tríplices para a escolha de dois novos membros do tribunal, oriundos da magistratura federal. Uma das vagas a serem preenchidas foi aberta em virtude da saída do ministro Napoleão Nunes Maia Filho, que, ao completar 75 anos de idade, aposentou-se em dezembro em 2020. Como a cadeira do ministro Napoleão permanece vaga, é ainda tempestiva a publicação deste artigo, que visa a rememorar e a homenagear a sua vida profissional e a sua passagem pelo STJ.
Napoleão nasceu em Limoeiro do Norte (CE), em 30 de dezembro de 1945. Formou-se em direito pela Universidade Federal do Ceará, em 1971. Na prestigiosa instituição, também concluiu o mestrado em direito, em 1981, e recebeu o título de Notório Saber Jurídico, em 2006. No campo profissional, foi advogado, procurador de Estado, professor universitário e serviu como assessor na presidência do Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE), antes de ingressar na magistratura federal, em 1991. Foi, então, juiz de primeira instância, membro do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) e, em 2007, alcançou o cargo de ministro do STJ. Compôs inicialmente a 5ª Turma, que integra a 3ª Seção, tendo depois se transferido para a 1ª Turma, a qual faz parte da 1ª Seção. Também foi membro do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará, na categoria de jurista, e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
Napoleão e a empatia judicial
Por diversas vezes estive no gabinete do ministro Napoleão no STJ nos 13 anos em que ele integrou o tribunal. O magistrado foi certamente um dos membros da corte que mais recebeu advogados em audiência. Napoleão atendia advogados quer fosse o relator, quer votasse apenas na condição de vogal. Se ele estivesse no gabinete, qualquer patrono poderia ser ouvido, ainda que sem agendamento prévio. Muitas vezes, como ressaltava a sua assessoria, ele deixava de almoçar para atender o máximo de audiências que conseguisse, as quais chegavam a se estender até minutos antes do início das sessões de julgamento.
As audiências com o ministro eram geralmente breves, mas Napoleão ouvia atentamente as razões, fazia perguntas e buscava os detalhes do caso. Caso ficasse convencido da relevância dos argumentos, anotava, com uma caneta azul, modelo “pincel atômico”, as principais teses em uma folha impressa do site do STJ com os dados do processo e anexava cuidadosamente o memorial entregue pelo advogado com um clipe. Isso não significava que acolheria a tese articulada, mas que, ao menos, a perspectiva defendida merecia ser refletida. Se o ministro apenas se despedisse, sem fazer nenhuma anotação, tudo levava a crer que ele de pronto não havia concordado com o que havia sido alegado.
A preocupação em ouvir os advogados revela uma das principais características que pude extrair dessas audiências com o ministro e das sessões de julgamento das quais ele participou, a que pude assistir: Napoleão sempre nutriu enorme empatia pelo jurisdicionado. Num universo de milhares de processos, o magistrado buscava, na medida do possível, compreender a situação específica de quem estava sendo julgado. Ele se colocava no lugar da parte e sabia que, se um advogado tentava chamar a atenção para alguma peculiaridade, alguma injustiça poderia estar sendo cometida no caso concreto.
Napoleão tem uma profunda compreensão de como o direito pode afetar a vida do cidadão comum. Por isso, nos debates com seus pares durante as sessões, costumava fazer uma análise crítica dos acórdãos recorridos. Ele externava dúvidas, enfatizava contradições e, a partir daí, defendia a solução que acreditava ser a mais adequada, usualmente em prestígio aos mais vulneráveis, dando concretude ao princípio da dignidade da pessoa humana[1]. Em casos punitivos, era rígido com o ônus acusatório e exigia a demonstração da culpa acima de qualquer dúvida razoável, numa postura que prestigiou ao máximo o princípio do in dubio pro reo. Sempre foi um verdadeiro garantista, na mais pura acepção do termo, e, quando vencedor nos julgamentos, contribuiu para formar uma importante jurisprudência nesse sentido.
Talvez o voto que mais admire, dentre os inúmeros que proferiu, seja o prolatado no Recurso Especial nº 1.112.557/MG[2], julgado como repetitivo pela 3ª Seção do STJ, em que, atuando como relator, fixou a tese de que, para recebimento do benefício de prestação continuada garantido à pessoa com deficiência ou ao idoso com 65 anos, previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), o estado de miserabilidade poderia ser comprovado por meios distintos da presunção de renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo, prevista no §3º do artigo 20 da Lei 8.742/93. Napoleão asseverou que “esse dispositivo deve ser interpretado de modo a amparar irrestritamente o cidadão social e economicamente vulnerável”. Essa tese foi posteriormente ratificada pelo plenário do STF, no julgamento da Reclamação nº 4.374, relatada pelo ministro Gilmar Mendes[3].
As obras e as batalhas de Napoleão
Em 2016, numa das audiências a que compareci com o ministro, mencionei que gostava de filosofia jurídica e que fazia pesquisa de doutorado nesta área nos Estados Unidos. Após essa audiência, todas as demais que mantive com o magistrado se transformaram em prazerosas aulas de teses acadêmicas. Depois da minha exposição, o ministro me fazia variados comentários e perguntas, como por exemplo o que ele pensava que os autores estrangeiros renomados diriam sobre a questão ou como eu acreditava que o caso seria decidido fora do país.
Napoleão é um profundo conhecedor da obra de renomados autores estrangeiros como Oliver Wendell Holmes Jr., H.L.A. Hart, Ronald Dworkin, John Rawls, Benjamin Cardozo, entre outros. Seus grandes mestres, no país, são o cearense Paulo Bonavides e o pernambucano Nelson Saldanha. Ao final das audiências, muitas vezes fui presenteado com excelentes livros jurídicos de autoria do ministro.
Examinar as obras publicadas por Napoleão[4] significa navegar pelos temas mais instigantes debatidos pelos principais filósofos do direito. Em “As normas escritas e os princípios jurídicos”[5], ele se preocupa com a relação dos princípios não escritos com as normas positivadas, que, no Brasil, incluem tanto regras quanto princípios escritos, por acreditar que essa interação contribui para a concretização da justiça no caso concreto. Em “Direito à segurança jurídica”[6], ele chama a atenção para a circunstância de o direito orientar a conduta dos cidadãos e, por essa razão, as súbitas mudanças da jurisprudência perturbarem a paz social. Em “Retórica processual”[7], ele destaca a relevância das palavras na comunicação dos vereditos de forma a evitar, na sua visão, indevidos e oportunísticos elastecimentos da condenação depois de lançado o decreto condenatório.
Em “Improbidade administrativa”, o ministro expôs suas principais objeções à forma como se desenvolvem os julgamentos dessas ações no Poder Judiciário. Napoleão foi um feroz crítico da aplicação do critério do dolo genérico, o qual, na sua visão, permite apenas capturar o componente objetivo da infração, o actus reus, sem se preocupar com o componente subjetivo, o mens rea[8], a mente culpada, ou seja, o estado mental do indivíduo de intencionalmente agir e com a consciência de que comete uma conduta considerada ímproba[9].
Napoleão e Roscoe Pound
Dentre todos os autores debatidos nas conversas com o ministro, pude perceber a sua afeição especial por um que eu pouco conhecia: o americano Roscoe Pound.
Pound viveu entre 1870 e 1964. Foi diretor das Faculdades de Direito das Universidades de Nebraska (1903-1911) e Harvard (1916-1936). É considerado o maior expoente do movimento sociological jurisprudence[10] nos Estados Unidos, que teve bastante prestígio no início do século 20. O autor criticou o tradicionalismo e enfatizou a existência de uma enorme distância entre a lei dos livros e a lei em ação[11]. Ele argumentava que os juízes não deveriam apenas empregar um raciocínio lógico, dedutivo, que ignora as necessidades coletivas [12]. Por isso, foi um duro crítico das decisões da Suprema Corte americana que declararam inconstitucionais as leis sociais editadas no início do século 20 que beneficiavam trabalhadores, por suposta ofensa ao princípio da liberdade contratual, como ocorreu no julgamento Lochner v. New York[13].
Pound acreditava que os juízes desconheciam as reais condições dos trabalhadores e atribuía essa ignorância à forma como os magistrados haviam sido ensinados e ao prevalecente estilo mecânico das decisões judiciais[14]. Ele chegou a dizer que o voto vencido de Holmes, proferido no caso Lochner, representava a melhor exposição existente do movimento sociological jurisprudence, já que foi nesse julgamento que Holmes se valeu do aforismo “normas gerais não decidem casos concretos”.
Um dos trabalhos mais celebrados de Roscoe Pound foi o artigo “Mechanical Jurisprudence”, publicado na Columbia Law Review, em 1908 [15]. O americano alertou para o fato de que os “sistemas legais passam por períodos em que a ciência degenera, em que o sistema declina para tecnicalidades, em que uma jurisprudência científica se torna uma jurisprudência mecânica” [16]. Esse artigo, que inclusive serviu de referência às objeções do britânico H.L.A. Hart ao formalismo jurídico [17], teve por grande mérito questionar o pensamento jurisprudencial até então prevalecente, que, na visão do autor, resumia-se a “um rígido esquema de deduções a partir de concepções a priori” [18].
Em verdade, a batalha de Pound contra o estilo mecânico de decidir casos é bastante similar à travada por Napoleão contra o legalismo, daí a possível admiração do ministro pelo autor americano. Em várias obras[19] e [20], Napoleão criticou severamente a compreensão, para ele prevalecente na atual conjuntura do Judiciário brasileiro, de que as questões jurídicas contemporâneas podem ser resolvidas pela simples leitura e aplicação linear e automática de leis escritas. O seu inconformismo foi tamanho que ele escreveu um livro específico, intitulado “O legalismo nas estruturas da Justiça”, no qual traçou um percurso histórico, desde as sociedades pré-estatais, para identificar as raízes do legalismo e como o fenômeno migrou para o nosso direito.
Para Napoleão, “se os órgãos da jurisdição adotarem a retórica das leis e aplicarem o discurso legal tal como as suas palavras soam, estarão deixando de lado a dialética judicial e fazendo a retórica das leis escritas incidir nos casos concretos como soluções definitivas, pré-fabricadas ou pré-elaboradas” [21]. O magistrado acredita que essa atitude produz resultados abandonados pela jurisdição, os quais ficam distantes dos efeitos positivos da arte da argumentação jurídica [22]. Ele soa como Hart, que chegou a defender que decisões mecânicas “sequer deveriam ser chamadas de decisões” [23]. Napoleão citou Pound para defender que a evolução do Direito “somente ocorre quando os julgadores abrem as portas de sua mente para a recepção de pensamentos novos, oriundos, principalmente, dos confrontos e embates que se travam no processo judicial” [24].
Considerações finais
Jamais tive o privilégio de conversar socialmente com o ministro Napoleão Maia fora de seu gabinete, enquanto ele foi membro do STJ. Após a sua aposentadoria, encontrei-o por acaso e, após relembrarmos os breves momentos de convívio durante a sua judicatura, prometi a ele que publicaria este texto em sua homenagem.
Ao tentar resumir a sua atuação no STJ, posso dizer que Napoleão foi um magistrado que incessantemente tentou, e por vezes conseguiu, fazer justiça em um Tribunal de Direito [25]. Por tal razão, ele é – e por muito tempo será – carinhosamente lembrado.
[1] Cf., p.ex., STJ, AgInt no AREsp 1395319/ES, Rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 17/12/2019, DJe 19/12/2019 (entendendo que a dignidade da pessoa humana legitima, ao lado de outros princípios, a revisão da sanção de demissão aplicada no processo disciplinar). Cf,. também, STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1143470/SP, Rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/10/2019, DJe 18/11/2019 (reconhecendo o dever da pagar dano moral por negligência estatal a pessoa que presencia a morte do próprio filho, por conta da queda acidental de muro).
[2] STJ, REsp 1112557/MG, Rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, TERCEIRA SEÇÃO, julgado em 28/10/2009, DJe 20/11/2009.
[3] Nesse caso específico, o Plenário, seguindo o voto do ministro Gilmar Mendes, entendeu que ainda que o critério de miserabilidade social escolhido pelo legislador para percepção do benefício assistencial por pessoa idosa ou com deficiência (qual seja, renda per capita inferior a ¼ do salário mínimo), tenha sido declarado constitucional na ADI 1.232, outros fatores indicativos do estado de pobreza poderiam ser conjugados na apreciação de pedidos de pagamento do benefício, mesmo sem autorização legal. Cf. Rcl nº 4.374, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 18.4.2013, DJe 4.9.2013.
[4] Napoleão publicou mais de 20 livros jurídicos e 16 livros de poemas. Pela obra, ele é membro da Academia Cearense de Letras, na cadeira que pertenceu a Rachel de Queiroz.
[5] As Normas Escritas e os Princípios Jurídicos: O Dilema da Justiça nas Decisões Judiciais. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2005.
[6] Direito à Segurança Jurídica. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2015.
[7] Retórica Processual. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2018.
[8] O termo vem da frase em latim actus reus non facit reum nisi mens sit rea, que quer dizer “não haverá responsabilidade criminal sem que se conjuguem a conduta externa e o estado mental”. Cf. https://definicionlegal.blogspot.com/2019/06/actus-reus-non-facit-reum-nisi-mens-sit.html.
[9] Cf. STJ, AgInt no AREsp 846.356/RS, Rel. ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 16/06/2020, DJe 01/07/2020.
[10] https://www.encyclopedia.com/social-sciences-and-law/sociology-and-social-reform/sociology-general-terms-and-concepts/sociological-jurisprudence. Para Pound, os métodos do direito deveriam ser os métodos da sociological jurisprudence. Esses métodos foram listados da seguinte forma: “o movimento pelo pragmatismo como filosofia do direito, o movimento para o ajustamento entre princípios e doutrinas das condições humanas que eles devem governar em vez que adotar princípios em primeiro lugar, [e] o movimento para colocar o fator humano no lugar central e relegar a lógica à sua verdadeira posição de instrumento”. Tradução livre. Mechanical Jurisprudence, 8 Columbia Law Review 605.
[11] WACKS, Raymond. Understanding Jurisprudence. 4º Ed. New York: Oxford. P. 189. Pound escreveu em 1910 o famoso artigo Law in Books and Law in Action, 44 AM. L. REV. 12 (1910).
[12] Bastante influenciado pelo alemão Rudolph Von Ihering, Pound defendeu a evolução de uma jurisprudência dos conceitos para uma jurisprudência dos interesses https://www.britannica.com/biography/Rudolf-von-Jhering.
[13] Kennedy, D., & Fisher, W., The Canon of American Legal Thought (Princeton: Princeton, 2006). P. 134. Cf. Lochner v. New York, 198 US 45 (1905).
[14] Id.
[15] 8 Columbia Law Review 605.
[16] Id. p. 607.
[17] H.L.A. Hart, Positivism and the Separation of Law and Morals, 71, Harv. L. Rev., 593 (1958).
[18] Id.
[19] Formação do Legalismo Judicial. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2014.
[20] Legalismo e Estado Autoritário. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2014.
[21] Retórica Processual. Editora Curumim, Fortaleza/CE, 2014. P. 104.
[22] Id.
[23] H.L.A. Hart, Positivism and the Separation of Law and Morals, 71, Harv. L. Rev., 611 (1958).
[24] Revista do Superior Tribunal de Justiça, Volume 242, Ano 28, Abril/Maio/Junho 2016, Apresentação, p. I. Napoleão costumeiramente incluiu na bibliografia de seus livros as seguintes obras de Roscoe Pound: Justiça Conforme a Lei e Introdução à Filosofia do Direito.
[25] O site Conjur noticiou que, em um julgamento em 2018, Napoleão proferiu as seguintes palavras: “Não sou refém de nenhuma regra. Sou a favor do que a justiça pede, mesmo que tenha que enfrentar as regras, como por vezes faço”. https://www.conjur.com.br/2020-dez-18/napoleao-nunes-maia-deixa-stj-legado-busca-justica. Acessado em 17.2.2020.