Ana Beatriz Robalinho

Natália Mariel Ferreira de Souza Pereira

John Hart Ely é um dos papas da interpretação constitucional contemporânea. O professor de Yale é o autor do celebrado "Democracy and Distrust"<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, em que apresenta sua teoria justificadora da interferência das cortes constitucionais em questões políticas. O assunto foi objeto de verdadeira obsessão da academia jurídica americana por décadas<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>. E Ely escreveu uma das teorias mais convincentes. Mesmo depois de exaustivos debates, o seu raciocínio segue guiando os defensores da jurisdição constitucional<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>, e até mesmo seus críticos<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>.
A teoria de Ely se baseia na ideia de que a interferência do Judiciário protege e enriquece a democracia, desde que ela seja feita em prol das minorias “discretas e insulares”, e para garantir as regras do jogo democrático<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>. A inspiração foi a famosa nota de rodapé número 4, do caso Carolene Products<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>, na qual a Suprema Corte americana reconheceu que “o preconceito contra minorias discretas e insulares pode ser uma condição especial, que tende a restringir seriamente a operação daqueles processos políticos comumente usados para proteger as minorias, e que pode exigir um processo judicial correspondentemente mais minucioso”<a href="#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>.
Ely era um defensor da jurisprudência progressista e ativista da Suprema Corte. Mas ele foi um notório crítico de Roe v. Wade<a href="#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>, o precedente fixado em 1973 e <a href="https://www.jota.info/jotinhas/suprema-corte-dos-eua-anula-direito-constitucional-ao-aborto-24062022">revertido no final de junho</a> em Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization<a href="#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a><a href="#_ftn10" name="_ftnref10">[10]</a>. Em Roe, fora reconhecido que o aborto integraria uma esfera do direito à privacidade, e por isso gozaria de proteção constitucional. O precedente foi polêmico desde a sua publicação<a href="#_ftn11" name="_ftnref11">[11]</a>, mas os liberais americanos, em geral, o celebram na mesma linha de outras decisões da Corte que avançaram direitos fundamentais e igualdade.
Para Ely, no entanto, Roe v. Wade foi decidido erroneamente, é um precedente “assustador”, e uma decisão “muito ruim”<a href="#_ftn12" name="_ftnref12">[12]</a>. No centro de suas críticas estava o fato de que, para ele, as mulheres não constituiriam uma minoria “discreta e insular”, de modo a se qualificarem a receber uma proteção constitucional mais robusta. Ely admite que “em comparação com os homens, muito poucas mulheres têm assento nas nossas legislaturas”<a href="#_ftn13" name="_ftnref13">[13]</a>, mas considera esse fato insuficiente para reconhece-las como uma minoria “improvável de receber consideração adequada no processo político”<a href="#_ftn14" name="_ftnref14">[14]</a>.
Até mesmo o argumento de que uma minoria de homens moral e politicamente contrários ao aborto seria super-representado no Congresso, facilitando a aprovação de uma legislação restritiva, não o impressionou: “em todo o caso, não compete ao Tribunal revogar tal legislação. (...) não há nada de incomum, e eu não sabia que havia algo de errado, com uma minoria intensa...angariar apoio para aqueles [assuntos] com que mais se preocupa”<a href="#_ftn15" name="_ftnref15">[15]</a>.
A opinião de Ely sobre Roe parte de uma visão enviesada sobre a representação política, e sobre o que torna as mulheres uma minoria numa sociedade em que, numericamente, são maioria. A representatividade de mulheres nos espaços políticos, especialmente no Legislativo, é uma conquista recente e ainda caminha de maneira tímida. No caso do Brasil, com direito de voto amplo e possibilidade de candidatura permitida constitucionalmente a partir de 1934, amargamos um percentual de 16% nas cadeiras do Poder Legislativo, o que nos garante a posição 143º no ranking mundial de representatividade nos parlamentos, dentre 152 países<a href="#_ftn16" name="_ftnref16">[16]</a>; e nos coloca em situação crítica se considerarmos que a média de representatividade de gênero em países latinos é de 26%<a href="#_ftn17" name="_ftnref17">[17]</a>.
O pouco que avançamos foi construído com muito esforço e políticas afirmativas, direcionamento de financiamento e cotas de gênero. Não há como considerar essa autorização de participação política, para votar e ser votada, como uma validação de expectativas de leis e atos estatais que respeitem a igualdade e liberdade material efetivas das mulheres. Mas é exatamente isso que Ely parece sugerir. Anos após tecer suas primeiras críticas a Roe, ele chega a argumentar que uma lei proibindo o aborto só poderia ser declarada inconstitucional nos Estados Unidos se ela fosse anterior a 1920, ano em que as mulheres passaram a votar<a href="#_ftn18" name="_ftnref18">[18]</a>.
Meio século após Roe, os fatos não sustentam sua conclusão. Adilson Moreira, em seu tratado do direito antidiscriminatório, define a hermenêutica do oprimido, segundo a qual o ato de interpretação deve compreender o outro a partir do pressuposto de que os sujeitos estão posicionados em diferentes relações de poder dentro de uma sociedade<a href="#_ftn19" name="_ftnref19">[19]</a>. As mulheres, mais numerosas na sociedade, encontram-se em desvantagem no âmbito das relações de poder, e são sub-representadas nas esferas políticas, que, ademais, estão povoadas por grupos super-representados abertamente hostis à igualdade feminina.
A falácia do argumento é especialmente relevante no momento em que a Suprema Corte reverte Roe para devolver o assunto aos legislativos estaduais<a href="#_ftn20" name="_ftnref20">[20]</a>. Se Ely tivesse aplicado sua própria teoria acerca da proteção das minorias “discretas e insulares” às mulheres, sua conclusão sobre Roe seria necessariamente distinta. Por sua própria lógica, as escolhas devem ser retiradas do Poder Legislativo “quando os insiders estão fechando os canais de mudança política para os outsiders”<a href="#_ftn21" name="_ftnref21">[21]</a>. Enquanto os insiders controlarem a pauta política, as mulheres não podem esperar.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> ELY, John Hart, Democracy and Distrust: A Theory of Judicial Review, Cambridge: Harvard University Press, 1980.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> Sobre a obsessão da academia americana com a legitimidade da jurisdição constitucional, ver TUSHNET, Mark V., Red, White, and Blue: A Critical Analysis of Constitutional Law, Lawrence: University Press of Kansas, 2015.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> Segundo Ryan Doerfler e Samuel Moyn, “O fantasma de John Hart Ely assombra a imaginação constitucional liberal americana. Apesar do fracasso há muito tempo de qualquer visão constitucional progressista em uma Suprema Corte cada vez mais conservadora, as conjecturas de Ely sobre a superioridade dos juízes em relação às legislaturas na proteção das minorias e no policiamento do processo democrático continuam sendo uma segunda natureza”. DOERFLER, Ryan; MOYN, Samuel, The Ghost of John Hart Ely, Vanderbilt Law Review, v. 75, 2022, p. 2.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Mesmo tendo escrito uma das mais contundentes contra o controle judicial de constitucionalidade, Waldron reafirmou sua necessidade no caso das minorias “discretas e insulares”, nos moldes do pensamento de Ely. WALDRON, Jeremy, The Core of the Case against Judicial Review, The Yale Law Journal, v. 115, n. 6, p. 1346–1406, 2006.
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> ELY, Democracy and Distrust, p. 103 e ss.
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> United States v. Carolene Products Company, 304 US 144 (1938).
<a href="#_ftnref7" name="_ftn7">[7]</a> Justice Harlan Stone, United States v. Carolene Products Company, 304 US 144 (1938) [tradução livre]. Disponível em: <a href="https://supreme.justia.com/cases/federal/us/304/144/">https://supreme.justia.com/cases/federal/us/304/144/</a>.
<a href="#_ftnref8" name="_ftn8">[8]</a> Roe v. Wade, 410 US 113 (1973).
<a href="#_ftnref9" name="_ftn9">[9]</a> Dobbs v. Jackson Women’s Health Organization, 597 U. S._____ (2022).
<a href="#_ftnref10" name="_ftn10">[10]</a> Sobre a reversão de Roe v. Wade e a repercussão de Dobbs, ver BECKER, Rodrigo. SOBREIRA, David. Um adeus a Roe: 49 anos depois, a superação do precedente do aborto. JOTA, 25/06/2022, disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/um-adeus-a-roe-49-anos-depois-a-superacao-do-precedente-do-aborto-25062022.
<a href="#_ftnref11" name="_ftn11">[11]</a> POST, Robert; SIEGEL, Reva, Roe Rage: Democratic Constitutionalism and Backlash, Harvard Civil Rights-Civil Liberties Law Review, v. 42, p. 373, 2007.
<a href="#_ftnref12" name="_ftn12">[12]</a> ELY, John Hart, The Wages of Crying Wolf: A Comment on Roe v. Wade, The Yale Law Journal, v. 82, n. 5, p. 920–949, 1973.
<a href="#_ftnref13" name="_ftn13">[13]</a> Ibid., p. 933.
<a href="#_ftnref14" name="_ftn14">[14]</a> Ibid., p. 934.
<a href="#_ftnref15" name="_ftn15">[15]</a> Ibid., p. 935.
<a href="#_ftnref16" name="_ftn16">[16]</a> INTER-PARLIAMENTARY UNION. Ranking de representação. Disponível em: <a href="https://data.ipu.org/women-ranking?month=5&amp;year=2022">https://data.ipu.org/women-ranking?month=5&amp;year=2022</a>. Acesso em 28 jun 2022.
<a href="#_ftnref17" name="_ftn17">[17]</a> Ver <a href="https://www.onumulheres.org.br/noticias/brasil-e-lanterna-em-ranking-latino-americano-sobre-paridade-de-genero-na-politica/">https://www.onumulheres.org.br/noticias/brasil-e-lanterna-em-ranking-latino-americano-sobre-paridade-de-genero-na-politica/</a>.
<a href="#_ftnref18" name="_ftn18">[18]</a> ELY, Democracy and Distrust, p. 169.
<a href="#_ftnref19" name="_ftn19">[19]</a> MOREIRA, Adilson José. Tratado de direito antidiscriminatório. 1ª Edição, Editora Contracorrente, 2020.
<a href="#_ftnref20" name="_ftn20">[20]</a> Dobbs, supra notas 11 e 12.
<a href="#_ftnref21" name="_ftn21">[21]</a> ELY, Democracy and Distrust, p. 103.

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JOTA

Representatividade política, jurisdição constitucional e a proteção das minorias

Não, John Hart Ely, Roe v. Wade não foi decidido erroneamente

Representatividade política, jurisdição constitucional e a proteção das minorias após a reversão de Roe v. Wade pela Suprema Corte dos EUA