Geórgia Campello

O constitucionalismo moderno não cuida mais do Estado ou do indivíduo isoladamente, tampouco se preocupa com a sociedade em sua totalidade, e, sim, com o indivíduo como componente  da sociedade, como ser humano que deve ter a sua dignidade exercida e condições de ser feliz. Nessa sociedade aberta, as relações  entre o Estado e os cidadãos vão se tornando cada vez mais complexas. Podemos dizer que nesses novos tempos percebe-se o abandono da força e um direcionamento finalístico do Estado. Por conseguinte, surgem modelos institucionais voltados a viabilizar o alcance dos fins preceituados pelas Cartas Constitucionais.
No palco brasileiro, esse fenômeno do novo desenho institucional ensejou o surgimento de instrumentos e instituições jurídicas que garantem a aplicação da normas constitucionais; e, nessa seara, surge a Advocacia Pública como função essencial à justiça e realizadora da adequação da vontade democrática ao ordenamento jurídico.
Vale lembrar que argumentos contrários à dignidade federativa dos municípios caíram por terra após a edição da Constituição Cidadã, que reconheceu a autonomia que já era inerente às comunidades locais. A Constituição Federal de 1988 vislumbrou os municípios como participantes ativos da estrutura constitucional federativa, integrada por eles, pela União, Estados-Membros e Distrito Federal.
Nos municípios é que as pessoas vivem e constroem as suas histórias. A gestão pública municipal, por sua vez,  tem um compromisso com a atual e as futuras gerações no que se refere à gestão do crescimento do espaço urbano, tornado-o apto ao desenvolvimento da vida com qualidade, diminuindo as desigualdades. Esse desiderato só será atingido quando os municípios passarem de fato a exercer as competências que lhes foram conferidas constitucionalmente, inclusive a de efetivos executores da política urbana. Os entes municipais têm de promover o planejamento urbano, equipar o seu território, cumprir as prestações que lhes são pautadas pelo interesse local e instituir e cobrar os seus tributos, sob pena de restar tipificada a renúncia fiscal. Do contrário, estariam abdicando da sua condição de ente federativo tal qual idealizada pela vontade do povo e insculpida na Constituição Federal.
Cumpre observar que a realização dessas competências só se dá de forma plena com a existência de estrutura e funcionamento dos  órgãos governamentais, que darão o suporte aos municípios para o cumprimento das suas missões constitucionais. E, como visto, a Advocacia Pública compõe esse arcabouço democrático.
Vale salientar que, em decorrência do princípio federativo e da igualdade constitucional dos entes, concebe-se o princípio da simetria constitucional. A observância do princípio da simetria para os Municípios tem previsão no art. 29 da Constituição Federal, segundo o qual, esses mesmos entes federados regem-se por lei orgânica, "atendidos os princípios estabelecidos nesta Constituição, na Constituição do respectivo Estado".
O modelo a se seguir, portanto, é o constitucional, que impõe o concurso público para o ingresso nas carreiras de Estado e, por conseguinte, o de procurador municipal, que deve ser repetido nas Leis Orgânicas Municipais, em atenção ao princípio da simetria e ao regime principiológico da Administração Pública.
Assim, por observância sistêmica à Constituição, os Municípios devem possuir procuradores municipais concursados, cujas funções são essenciais para o Estado Democrático de Direito, com vistas a auxiliar, com a isenção e autonomia necessárias, no cumprimento das competências municipais e ofertar o apoio necessário para a construção de um país mais justo e solidário.
Só assim o advogado público municipal, selecionado por concurso público com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), defenderá o interesse do Município, e não o interesse partidário ou ocasional do gestor. Isto porque só essa forma de ingresso na carreira dá ao procurador municipal a estabilidade e autonomia necessárias ao cumprimento das suas funções, sem amarras, favores ou interesses contingentes. Nesse sentido, o advogado público concursado estará apto a desenvolver uma visão ampla do projeto social permanente que cumpre a cada Município executar, decorrência das normas estabelecidas pelo constituinte originário e balizadoras do Estado Democrático de Direito.
Infelizmente, isso ainda não ocorre e não é o modelo adotado em todos os Municípios brasileiros. Em muitos ainda impera a "advocacia partidária", uma aberração quando se pensa nos municípios como integrantes da Federação, dotados de competências exclusivas que traçam o âmbito de sua autonomia política.
A escolha dos integrantes de uma carreira tão fundamental como a advocacia pública municipal deve ser feita por concurso público, diante de norma constitucional explícita, como é o art. 37, inciso II, da CF, e não ficar ao crivo do gestor eventual a contratação de quem melhor lhe aprouver. O procedimento atual certamente desemboca na promoção de orientações jurídicas em conformidade com interesses momentâneos. Tal prática nos municípios vulnera a permanência e independência funcional do órgão estatal. Advocacia pública é advocacia de Estado, isenta, autônoma, uma advocacia que com o governo não se confunde, ou seja, uma advocacia não partidária.
Ao conferir ao Município o status de ente federativo componente da estrutura federativa e, nessa condição, dotá-lo de competências exclusivas que traçam o âmbito de sua autonomia política, a Constituição não os distinguiu em tamanho ou número de habitantes. Isto é, todo e qualquer município é revestido de autonomia, portador da capacidade de autodeterminação dentro de um rol de competências constitucionalmente definidas. E deve exercê-las.
Não é pelo fato de o Brasil contar com grande quantidade de pequenos Municípios que a eles não lhes deve ser conferida autonomia para o cumprimento de suas competências. Isto porque não se pode transigir com normas constitucionais fundantes. Não é porque o país conta com Municípios menores que se deve acreditar que esses entes não têm o dever de organizar os seus espaços urbanos ou instituir e cobrar os seus tributos. E muito menos cumprir com as prestações positivas que lhes foram atribuídas.
Esse fato não pode justificar ou afastar a necessidade de se efetivar o princípio republicano, sob pena de adentrarmos em preocupantes casuísmos e alimentar insegurança jurídica, tudo o que não se deseja num Estado Democrático de Direito. Se esses entes são pequenos o suficiente para não suportarem criar a sua estrutura e organização administrativa, são pequenos o suficiente para imperar.
A efetivação das competências constitucionais dos entes municipais propicia condições para o florescimento da dignidade propiciadora da autonomia dos indivíduos e do sentimento de pertencimento às comunidades locais. Competências que  só se realizam plenamente com uma assessoria jurídica estável, independente e selecionada mediante concurso público, como prevê a Proposta de Emenda Constitucional 17/2012 (PEC 17), que só aguarda aprovação no Plenário do Senado para seguir à promulgação. Do contrário, o interesse episódico do governante impreterivelmente afastará o interesse público e vulnerará a efetivação de direitos fundamentais.
Assim, é inconstitucional e inaceitável, ao menos nas bases que sustentam o sistema constitucional pátrio, a premissa de que os municípios pequenos não têm condições ou possibilidades de terem procuradores concursados.
Vale lembrar que os municípios são os fios que tecem o grande tecido da Nação. E, lembrando Rui Barbosa, não há corpo sem células; não há Estado sem municipalidades. Se não pode existir matéria vivente sem vida orgânica, não se pode imaginar a existência de uma Nação e de um Estado sem vida municipal.
* Presidente da Associação Nacional dos Procuradores Municipais (ANPM) e procuradora municipal em Salvador (BA).

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JOTA

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