Caroline Sabroso Baptista

Richard Radkins, nascido na cidade de Nova York em 1934, era um bem sucedido oftalmologista da Marinha, onde também foi campeão de tênis. Após submeter-se a uma cirurgia de redesignação de sexo no início da década de 1970, passou a ser conhecido como Renée Richards, uma mulher transexual. Em 1976, Renée tentou se inscrever no US Open, um dos maiores torneios mundiais daquele esporte, mas teve a sua participação negada. A Associação de Tênis dos Estados Unidos alegou que a atleta teria que fazer um teste de verificação cromossômica, com a justificativa de paridade entre as demais competidoras.
Indignada com a situação, Renée entrou com um processo na Justiça Estadual de Nova York denominado Richards v. U.S Tennis Association, alegando que a obrigatoriedade do exame representava discriminação, ou seja, violação à Lei de Direitos Humanos do Estado, denominada N.Y. Executive Law, § 297, subd 9<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, e à Décima Quarta Emenda<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2] </a>da Constituição dos EUA.
No processo, até a estrela do tênis Billie Jean King, que já tinha sido sua parceira em uma equipe de duplas, apresentou uma declaração de apoio à demandante, na qual dizia que a atleta não possuía superioridade física ou força para ter alguma vantagem sob outras competidoras.
A Suprema Corte do Estado de Nova York decidiu em favor da autora, desobrigando-a de realizar o teste cromossômico, alegando ser uma prática discriminatória ilegal. A decisão permitiu, assim, que a jogadora participasse da competição, sendo reconhecido que a atleta é mulher, conforme trechos da decisão abaixo escrita pelo juiz da Suprema Corte Alfred Ascione:
<blockquote class="jota-article__citation">“Quando um indivíduo como o autor da ação, um médico bem-sucedido, marido e pai, acha necessário que sua própria sanidade mental se submeta a uma redesignação de sexo”, (...) os medos infundados e equívocos dos réus devem dar lugar à esmagadora evidência médica de que essa pessoa agora é do sexo feminino (...) Na visão da corte, o requerimento dos demandados de que o demandante deva passar pelo Teste de Barr para ser elegível para participar de competição feminina individual do US Open é grosseiramente injusto, discriminatório, desigual e violador dos direitos da atleta sob a Lei dos Direitos Humanos deste Estado.” <a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a> (tradução nossa)</blockquote>
Entretanto, o Teste de Barr ou exame de cromatina sexual, um teste corporal que era uma exigência médica para atletas olímpicos desde os Jogos de 1968, não foi anulado, com a argumentação que se trata de uma ferramenta reconhecida para determinar o sexo.
Ainda que a atleta não tenha vencido o torneio, foi uma das pioneiras na mudança de regras para a participação de mulheres transexuais no esporte, dando origem até ao filme "Second Serve" (1986), que conta a história da sua vida.
Ao trazer a temática para a perspectiva atual, percebe-se que há inúmeros avanços nos direitos de pessoas trans nos Estados Unidos. À nível de exemplificação, cabe expor a recente decisão da Suprema Corte dos EUA no caso Bostock v. Clayton County (2020), na qual foi decidido que o Título VII da Lei dos Direitos Civis de 1964 protege empregados contra discriminação e possíveis demissões por serem gays ou <a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/transgeneros">transgêneros</a>.
No entanto, não há significativas mudanças no esporte nesse aspecto, visto que diversos estados nos EUA, como Texas, Alabama, Arkansas, Mississippi, Dakota do Sul, Montana, Tennessee e Virgínia Ocidental, estão proibindo meninas trans de participarem de esportes femininos em escolas<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>, o que demonstra a visão arcaica que permanece sobre o tema.
No Brasil, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275<a href="#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a> reconheceu o direito à igualdade sem discriminações, que abrangem a identidade ou expressão de gênero, e ainda permitiu a alteração do prenome e da classificação de gênero no registro civil, ou seja, foi um importante passo para o reconhecimento de pessoas transexuais no território nacional.
Já no campo esportivo brasileiro, ainda há incertezas. O caso Tifanny, primeira atleta transexual a disputar a Superliga de vôlei, pode ser considerado o estopim para a discussão de mulheres trans praticando esportes de alto nível no Brasil, sendo ela liberada pela Confederação Brasileira de Vôlei (CBV), desde que atendesse aos requisitos<a href="#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a> do Comitê Olímpico Internacional (COI).
Ao realizar uma interseção entre Brasil e EUA, percebe-se intenso conservadorismo sobre o tema entre nós. Um exemplo é o PL 0226.6/2019 proposto pelo deputado estadual Ricardo Alba (PSL-SC) na Assembleia Legislativa de Santa Catarina. O projeto prevê o sexo biológico como único critério para a definição de gênero no esporte no estado.
Porém, a própria Procuradoria da Fundação de Esporte do Estado opinou pela rejeição do prosseguimento da proposta, visto a afronta à Constituição Federal, conforme art. 217, que prevê a garantia do “exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos (...)”. No entanto, o relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Alesc, João Amin (PP-SC), ignorou a posição do órgão do Poder Executivo e votou pela admissibilidade do PL.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, o deputado estadual da Assembleia Legislativa de São Paulo, Altair Moraes (Republicanos-SP), apresentou o PL 346/2019, que estabelece o sexo biológico como único critério para definição do gênero em competições realizadas em São Paulo, com a justificativa de defesa da moralidade.
Diante do exposto, o caso da atleta Renée Richards configura um significativo avanço para a inclusão de atletas transgênero no esporte, inclusive numa época em que a discriminação era ainda mais latente do que nos dias atuais.
Porém, a luta de Renée não acabou e ainda está longe de terminar, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, visto que mesmo que haja garantias constitucionais em ambos países, como a Décima Quarta Emenda, a decisão da Suprema Corte no caso Bostock v. Clayton County (2020) e a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.275 no Brasil, que reconhecem o direito de pessoas transgênero no campo civil, no campo desportivo ainda há intensas discussões e projetos de lei que ferem direitos humanos e nenhuma regulamentação precisa e objetiva para o tema.
Enquanto não houver uma devida análise técnica e jurídica sobre a questão, não há como garantir equidade e inclusão a todos, perpetuando uma “guerra cultural”, que até já foi politizada nos dias atuais, e que permanece em círculos intermináveis, ainda sem solução.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4275. Relator Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371">http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371</a>. Acesso em: 4 de jan. de 2022
NOMURA, Bruno. Inconstitucionais, projetos que tentam barrar transexuais no esporte seguem sem resolução. Agência Lupa, 2021. Disponível em:  <a href="https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2021/06/28/projetos-atletas-trans-esporte/">https://piaui.folha.uol.com.br/lupa/2021/06/28/projetos-atletas-trans-esporte/</a>.  Acesso em: 5 de jan. de 2022.
RICHARDS V. U.S TENNIS ASSOCIATION, 93 Misc.2d 713 (N.Y. Sup. Ct. 1977). Disponível em: <a href="https://www.leagle.com/decision/197780693misc2d7131654">https://www.leagle.com/decision/197780693misc2d7131654</a> . Acesso em: 4 de jan. de 2022.
WELLE, Deutsche. Texas proíbe que meninas trans participem de esportes femininos em escolas. Matérias do G1, 2021. Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/10/26/texas-proibe-que-meninas-trans-participem-de-esportes-femininos-em-escolas.ghtml">https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/10/26/texas-proibe-que-meninas-trans-participem-de-esportes-femininos-em-escolas.ghtml</a> . Acesso em: 4 de jan. de 2022
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a>N.Y. Exec. Law § 297: <a href="https://casetext.com/statute/consolidated-laws-of-new-york/chapter-executive/article-15-human-rights-law/section-297-procedure">https://casetext.com/statute/consolidated-laws-of-new-york/chapter-executive/article-15-human-rights-law/section-297-procedure</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> A partir da 14º Emenda, grupos minoritários começaram a reivindicar seus direitos, dentre eles, o direito ao sufrágio feminino, por exemplo, o caso de Virginia Minor, conhecido como Minor v. Happersett (1875), que ao tentar se registrar para votar, não obteve êxito. Assim, entrou com um processo questionando o termo ‘todo cidadão masculino’ no estado de Missouri, porém, após o caso chegar na Suprema Corte, o resultado foi unânime, mantendo a distinção masculina.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> RICHARDS V. U.S TENNIS ASSOCIATION, 93 Misc.2d 713 (1977). Disponível em: <a href="https://www.leagle.com/decision/197780693misc2d7131654">https://www.leagle.com/decision/197780693misc2d7131654</a>. Acesso em: 4 de jan. de 2022.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> WELLE, Deutsche. Texas proíbe que meninas trans participem de esportes femininos em escolas. Matérias do G1, 2021. Disponível em: <a href="https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/10/26/texas-proibe-que-meninas-trans-participem-de-esportes-femininos-em-escolas.ghtml">https://g1.globo.com/mundo/noticia/2021/10/26/texas-proibe-que-meninas-trans-participem-de-esportes-femininos-em-escolas.ghtml</a>. Acesso em: 4 de jan. de 2022
<a href="#_ftnref5" name="_ftn5">[5]</a> BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4275. Relator Ministro Marco Aurélio. Disponível em: <a href="http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371">http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=2691371</a>. Acesso em: 4 de jan. de 2022
<a href="#_ftnref6" name="_ftn6">[6]</a> Os principais requisitos são: testes hormonais e a redução do nível de testosterona da atleta a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes de iniciar a competição e a manutenção deste nível para continuar competindo.

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JOTA

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