Caroline Lopes Placca

O cenário que envolve o acesso à conexão digital de qualidade e a bens de consumo, bem como a meios de pagamentos distintos, invariavelmente passa desapercebido em uma sociedade com desigualdades estruturais significativas — e interseccionais — como a brasileira.
Se, por um lado, parcela da população tem acesso a tecnologias de ponta e a investimentos em criptomoedas, parte significativa das brasileiras e dos brasileiros não possui nem mesmo meios de acessar a internet ou conta em banco. É com base nessa realidade, e na particular situação de vulnerabilidade das mulheres das classes D e E, que este artigo aborda o contexto mais amplo de acesso à tecnologia, ao sistema financeiro e ao dinheiro em espécie em particular.
Segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência especializada da ONU para tecnologias de informação e comunicação, houve aumento estimado de uso global da internet de 4,1 bilhões de usuários em 2019 para 4,9 bilhões em 2021. Da mesma forma que tais dados nos levam a refletir sobre o desenvolvimento global por trás da conectividade, eles também nos fazem questionar as desigualdades presentes. Nesse ponto, nota-se que não só a forma, como o tempo de acesso à internet desses quase 5 bilhões de pessoas é extremamente desigual.
Por estarmos inseridos em um mundo digital, que tem reflexos em cada detalhe do nosso cotidiano, raramente pensamos sobre a realidade por trás do acesso desigual à tecnologia. Esquecemos que essa conectividade não existe em todas as famílias brasileiras e que essa desigualdade tem impactos em diversos setores, inclusive no acesso a serviços, que não ocorre de forma homogênea.
Dados do Instituto Locomotiva mostram que 34 milhões de brasileiros possuem acesso precário ao sistema bancário, incluindo nesse montante tanto pessoas desbancarizadas como aquelas que possuem conta em banco, mas que não a movimentam com regularidade. Especificamente quanto ao perfil da população desbancarizada, verifica-se que, em sua maioria, são mulheres, jovens (18 a 29 anos), com escolaridade até o ensino fundamental e pertencentes às classes D e E. Estão nesta faixa de renda as famílias cuja soma de rendimentos é de até dois salários mínimos (R$ 2.424, classe E) e entre esse patamar e quatro salários mínimos (até R$ 4.848, classe D).
Essas mulheres possuem uma realidade financeira completamente afastada do sistema bancário e dependente do dinheiro em espécie, sendo essencial, para a inclusão e combate a medidas discriminatórias, compreendermos quem são e quais são as suas necessidades.
De acordo com a pesquisa "Os Brasileiros e os Bancos" desenvolvida pelo Instituto Locomotiva, há dois principais motivos apresentados pelas pessoas para não terem conta em banco no Brasil: 44% delas informam que não veem necessidade ou simplesmente não querem uma conta, enquanto 40% destacam não ter renda. Ou seja, em decorrência da falta de dinheiro, não enxergam necessidade de ter uma conta em banco, ou encontram-se com o nome negativado, o que impossibilita o efetivo acesso a uma conta.
É importante perceber que essa situação, paralelamente, implica em outras consequências para a vida dessas pessoas. Com relação às mulheres, há consequências tanto na vida pessoal como profissional – por exemplo, no recebimento de quantia em decorrência de algum serviço prestado ou no pagamento pelos itens do dia a dia feitos com moeda em espécie.
Vale ressaltar que, de acordo com a pesquisa “Facetas das Mulheres Brasileiras”, realizada pelo SPC Brasil, entre as mulheres com ocupação profissional das classes C/D/E, um número expressivo aparece como funcionária de empresa privada (21,5%) ou como autônoma (21,3%). Além disso, 41,4% das mulheres das classes C/D/E que não exercem uma profissão remunerada só não o fazem pois não conseguem um emprego, sendo esse o principal motivo também para as mulheres não casadas (55,4%) que vivem no interior (40%) e que têm idade entre 18 e 34 anos (48,5%). Logo, é possível aferir que, para essas mulheres, a falta de opção de emprego formal pode auxiliá-las a pensarem em iniciativas individuais para gerar renda.
É indispensável lembrarmos que muitas dessas mulheres são desbancarizadas e que além das dificuldades regulares de trabalharem de forma autônoma, também enfrentam outros desafios, como a falta de acesso a crédito. Isso significa que qualquer iniciativa de empreendedorismo idealizada não contará com empréstimo e tampouco incentivo bancário, dependendo unicamente de capital próprio. Faz-se relevante pensarmos em incentivos ao empreendedorismo feminino como alternativas a essa questão.
Além dos desafios enfrentados no âmbito profissional, a vinculação da realidade dessas mulheres com a moeda em espécie também traz impactos diretos nas relações de consumo. De forma geral, o acesso à aquisição de bens é limitado, já que suas compras serão realizadas à vista ou através do quase extinto crediário. Ao mesmo tempo, a possibilidade de fazer pagamentos em espécie evita o endividamento, permite a realização de transações e, inclusive, possibilita a negociação de descontos, principalmente no caso de pagamentos à vista.
Por serem de classe social mais baixa e não possuírem acesso aos serviços bancários, nem sempre se pensa nessas mulheres como possíveis consumidoras, ignorando seu potencial de circulação de bens e mercadorias. O pensamento é equivocado, pois há uma necessidade de consumo significativa que precisa ser considerada.
Pesquisa veiculada pela Geofusion destaca que essa faixa de renda tende a ter maior gasto com itens voltados à habitação e às necessidades básicas, como aluguel, água, energia elétrica, gás, entre outros. Em seguida, aparecem itens para alimentação da família no lar. Constam em terceiro lugar gastos pequenos do dia a dia, como serviços bancários, impostos, taxas, cabeleireiro etc.
Pode até ser que uma parcela dessas mulheres não queira ou não possa direcionar seu dinheiro para taxas de bancos, permanecendo, então, sem conta bancária, preferindo continuar vinculadas à moeda em espécie. Isso não significa que suas realidades devam ser desconsideradas ou que suas decisões não tenham impacto econômico. Afinal, conforme pesquisa do SPC Brasil, quando se trata de resolver assuntos relacionados com a família, elas continuam sendo as principais responsáveis pelas decisões em 44,3% dos lares das classes C/D/E: são elas que, mesmo com um orçamento restrito, direcionam e tomam a maioria das escolhas de consumo familiar, sendo merecedoras de atenção quanto às suas práticas.
Dessa forma, o dinheiro em espécie está presente na vida das mulheres desbancarizadas, seja para pensarem sobre as possibilidades de suas vidas profissionais, seja para resolverem as escolhas de consumo que irão tomar. É essencial entendermos suas realidades para não sermos omissos com as suas necessidades. Justamente por isso, considerar as discrepâncias de acesso é primordial na avaliação do aspecto socioeconômico que envolve escolhas entre meios de pagamentos físicos e digitais, que não são excludentes, mas sim alternativas que convivem em harmonia; e o fato de que classe social e gênero têm um papel essencial na compreensão desse contexto, até mesmo para pensarmos em políticas públicas adequadas e direcionadas a grupos vulneráveis.

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JOTA

Brasileiras das classes D e E vivem uma realidade financeira completamente afastada do sistema bancário

A importância do dinheiro em espécie para as mulheres brasileiras

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