André Luiz Freire

Recentemente, o Ministro Dias Toffoli submeteu ao Plenário Virtual o seu voto na ADI 2.946, do qual é relator. A ADI – proposta em julho 2003, pela Procuradoria-Geral da República – tinha como pedido a declaração de inconstitucionalidade do art. 27 da Lei 8.987/1995. Este artigo prevê que a transferência da concessão ou do controle acionário, sem a anuência prévia do Poder Concedente, pode levar à caducidade do contrato de concessão.
Em seu voto, o Ministro acolheu parcialmente o pedido da PGR e, para o que nos importa, considerou inconstitucional a transferência da concessão, já que a pessoa vencedora da licitação seria substituída por outra diferente (o que não ocorreria na troca de controle), o que ofenderia o dever de licitar previsto no art. 175 da Constituição Federal (CF).
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O tema é muito interessante não só pela sua relevância prática (afinal, o voto foi muito mal recebido no setor da infraestrutura e já gerou impactos concretos), mas também porque expõe alguns problemas típicos da cultura jurídica em matéria de interpretação.
Vale reformular a pergunta que deu origem à ADI. Da interpretação do art. 175 da CF é possível deduzir a vedação à cessão do contrato de concessão? Esta dúvida pode ser ampliada, já que, usualmente, quem defende a inconstitucionalidade da cessão na concessão também defende a inconstitucionalidade da cessão de qualquer contrato administrativo, pelo mesmo motivo. Mas, nesse último caso, o fundamento textual é o art. 37, XXI, da CF. Assim, a pergunta é: da interpretação do art. 37, XXI, e do art. 175, caput, da CF é possível deduzir a vedação à transferência do contrato administrativo?
A palavra “deduzir” deixa claro que, ao se defender a inconstitucionalidade, há a defesa de que a vedação à transferência do contrato está contida (em termos da lógica) na obrigação de realizar licitação pública. Então, a dedução aqui pressupõe um compromisso lógico, um compromisso que não consigo assumir pelas técnicas que conheço da lógica formal.
Em primeiro lugar, considerar que a cessão do contrato administrativo é inconstitucional por ofensa ao dever de licitar leva à conclusão de que este dever é absoluto. E isso não é defendido por jurista algum, pois existem as hipóteses de dispensa e inexigibilidade. Mas, aqui, seria possível contrapor que “o art. 37, XXI, deixa claro que ‘ressalvados os casos especificados na legislação’ a licitação não seria cabível; e as hipóteses de dispensa e inexigibilidade estão especificadas na legislação”. Isto é correto.
Mas qual é a diferença para a cessão do contrato administrativo? Este também não é “um caso especificado na legislação”? É difícil entender a razão pela qual a dispensa para a contratação de catadores de materiais recicláveis (art. 24, XXVII, da Lei 8.666/1993 e art. 75, III, “j”, da Lei 14.133/2021) é constitucional e a transferência do contrato não é. Afinal, podemos concordar que a Lei 8.987/1995 (tal como as duas leis de licitação citadas) é “legislação” para fins constitucionais.
Normalmente, o defensor da inconstitucionalidade usa outros princípios para fundamentar sua posição. Os princípios da moralidade e da razoabilidade costumam fazer sucesso. O problema é que o grau de abstração aqui é tão alto que o intérprete inteligente pode usar o princípio em qualquer direção.
Ao que me parece, não temos um critério objetivo, isto é, passível de verificação por qualquer pessoa e que chegará à mesma conclusão, capaz de responder a essa questão com base nos princípios. O que temos, nesse caso, é uma questão de preferência, algo subjetivo. E este não é um fenômeno incomum. A psicologia possui inúmeros estudos para mostrar que nós – seres humanos – temos um “raciocínio motivado”, ou seja, a tendência de, inconscientemente, processar informação de forma a promover objetivos ou interesses extrínsecos à tomada de decisão.
Nós temos a tendência inconsciente de privilegiar o grupo social a que pertencemos. Temos a tendência a exagerar nas diferenças entre as situações para promover certos objetivos, a racionalizar para chegar a uma decisão “imparcial”, mas que encobrem valores alheios à tomada de decisão. Nós também fazemos uma avaliação dos riscos e outras consequências políticas de forma a privilegiar nossa visão de mundo. Todos estes fenômenos (motivated reasoning, identity-protective cognition, naïve realism, cultural cognition) são estudados pela psicologia e explicam muito as divergências ferozes que por vezes temos sobre princípios jurídicos e sobre a interpretação constitucional.
<blockquote class="jota-article__eye">No caso da transferência do contrato, há uma preocupação legítima de que se crie um mercado paralelo: alguém ganha a licitação apenas para especular. Ele não quer executar o contrato, mas ganhar dinheiro com a venda dele. É claro que, teoricamente, isso pode ocorrer.</blockquote>
Mas, dada a dificuldade de implementar a cessão – ao menos nas concessões, já que as partes precisam enfrentar inúmeros detalhes relacionados à assunção de contratos existentes ou sua extinção, tornando-a muito mais difícil do que a mera troca do controle –, minha hipótese, pois não fiz pesquisa empírica para afirmar que é assim, é que este mercado não existe. Não há qualquer evidência nesse sentido. Esses casos, se existem, tendem a ser isolados.
De todo modo, é possível argumentar de outra forma. A licitação é um instrumento constitucional e que existe para promover, principalmente, o princípio da isonomia. Então, ninguém duvida da sua moralidade. Mas todos nós temos conhecimento de que ele já foi usado em inúmeras situações para dar uma aparência de legalidade a atos de corrupção. E ninguém abomina a licitação. E isso nos leva à conclusão de que “licitação”, “alteração unilateral”, “cessão de contrato” e outros tantos são apenas instrumentos. Podem ser usados de forma positiva ou negativa. Eles existem para realizar fins republicanos, mas podem ser usados para obter fins não-republicanos.
Então, talvez aqueles fenômenos psicológicos estejam atuando aqui, fazendo com que os defensores da inconstitucionalidade exagerem na preocupação legítima de que o instituto seja usado para a prática de atos ilícitos e, com isso, acabam defendendo a inconstitucionalidade de algo que, ao realmente fazermos uma dedução dos dispositivos constitucionais citados, não é inconstitucional.
E que, quando bem usado, pode trazer inúmeros benefícios sociais, justamente a preocupação dos defensores da inconstitucionalidade e, provavelmente, foi esta a preocupação do Ministro Dias Toffoli). Mas, para atingir este legítimo objetivo, não devemos “matar o mensageiro”. Talvez nós só precisemos conviver com as decisões legislativas (tomadas pela via democrática prevista na Constituição) que eventualmente não concordamos em abstrato.
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