João Paulo Tagliari

Rodrigo Cantali

Em 8 de junho de 2021, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial nº 1.286.273/SP, enfrentou tema de grande importância no âmbito das ações coletivas de consumo: a inversão do ônus da prova fundada no artigo 6º, inciso VIII, do Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O dispositivo estabelece ser direito básico do consumidor “a facilitação de seus direitos, inclusive com a inversão do ônus da prova, a seu favor, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente, segundo as regras ordinárias de experiências”.
<a href="https://www.jota.info/produtos/poder?utm_source=Banner%20site&amp;utm_medium=Artigos&amp;utm_campaign=CTA_Poder_materias"><img class="size-medium wp-image-292717 aligncenter" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2021/01/jota-pro-poder.jpg" alt="" width="688" height="688" /></a>Apesar de uma aparente clareza, dúvidas surgem a respeito da interpretação e da efetiva aplicação do dispositivo aos casos concretos. Neste espaço, joga-se luz a duas delas, enfrentadas no REsp nº 1.286.273/SP: (1) qual o momento processual adequado para que o órgão julgador possa inverter o ônus da prova? (2) o que significa “hipossuficiência” para fins de inversão do ônus da prova?
Em nosso ordenamento, a distribuição do ônus da prova é realizada, de modo geral, pelo art. 373 do Código de Processo Civil (CPC), que atribui o ônus da prova: ao autor, quanto aos fatos constitutivos do direito por ele afirmado; e, ao réu, quanto aos fatos impeditivos, modificativos e extintivos do pretenso direito invocado pelo autor. Modificações nessa estrutura demandam a observância dos requisitos legais e condições procedimentais. Isso nos leva ao primeiro questionamento citado, sobre o momento em que deve ocorrer a modificação dos ônus probatórios.
Na análise do REsp nº 1.286.273/SP, o relator, ministro Marco Buzzi, ressaltou ser a inversão do ônus da prova uma “regra dinâmica de procedimento/instrução”, com o que quis reafirmar que “acaso aplicada a inversão do ônus da elaboração de provas”, então “essa deve ser comunicada às partes antes da etapa instrutória”, para que as partes possam, efetivamente, desincumbir-se do ônus a elas atribuído, com o adequado exercício dos direitos fundamentais à ampla defesa, ao contraditório e à prova, “sob pena de absoluto cerceamento de defesa”.
O ministro relator ainda destacou que “esclarecer previamente quais serão as regras do procedimento que regerão o trâmite processual, dentre elas a do ônus da prova, está inserto nas diretrizes do princípio da cooperação e do dever do magistrado aplicá-lo em sua dinâmica em relação com os demais sujeitos processuais”.
Ao menos duas considerações podem ser feitas a esse respeito. Primeiro, cabe relembrar que o ônus da prova funciona tanto como “critério de organização da atividade probatória”, para que as partes tenham ciência do ônus a ela atribuído, quanto como “critério de julgamento”, sendo utilizada diante da insuficiência de provas aptas a sustentar a alegação de uma das partes.
Segundo, reforça-se a relevância do momento em que determinada a modificação do ônus da prova: essa decisão deve ocorrer antes da instrução probatória, pois as partes não podem ser surpreendidas “por manobras imprevistas, que alterem as regras do jogo e impeçam, na bilateralidade do equilíbrio, exercer o direito de amplo e irrestrito acesso à ordem jurídica justa”<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>.
Inclusive, o CPC exige que a dinamização do ônus da prova se dê por meio de decisão fundamentada e que seja conferida à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído (art. 373, §1º, CPC).
Quanto ao segundo questionamento, referente ao efetivo significado do critério da “hipossuficiência” para fins de inversão do ônus da prova, o acórdão ora analisado também traz relevantes esclarecimentos.
Segundo o relator, ainda que a matéria de fundo da ação dissesse respeito a contratos sobre os quais incide o CDC, isso “não autoriza a desmedida inversão do ônus probatório, haja vista que a demanda é movida pelo Ministério Público, entidade que jamais pode ser considerada hipossuficiente”. Após, o relator reiterou que, quanto ao Ministério Público, não está presente o requisito da hipossuficiência, “por faltar ao órgão do Parquet a característica da inferioridade/fraqueza frente à parte adversa”.
O julgado contribui para a definição do significado da “hipossuficiência” para fins de inversão do ônus da prova com base no art. 6º, VIII, do CDC – especialmente quando se tratar de uma Ação Coletiva ou de uma Ação Civil Pública ajuizada por associações de defesa do consumidor ou pelo Ministério Público. É que, nesse âmbito, o requisito da hipossuficiência não pode dizer respeito a uma eventual vulnerabilidade dos consumidores enquanto coletividade inespecífica: ele deve se referir à possibilidade ou não de a parte que move a ação produzir determinada prova.
Sabe-se que, nas relações de consumo, presume-se a vulnerabilidade do consumidor, entendida essa condição como um estado de fragilização que desequilibra a relação. Corriqueiramente, doutrina e jurisprudência distinguem diferentes tipos de vulnerabilidade: técnica (pela falta de conhecimento de produtos/serviços); jurídica (pela falta de conhecimento dos reflexos jurídicos na relação); fática (pela desigualdade econômica, física ou psicológica frente ao fornecedor); informacional (pela falta de informações necessárias para a adequada tomada de decisão).
<blockquote class="jota-article__eye">A noção de vulnerabilidade, no entanto, não se confunde com a de hipossuficiência para a produção de provas.</blockquote>
No âmbito da modificação do ônus da prova, o requisito da hipossuficiência não pode dizer respeito à vulnerabilidade de consumidores, mas à possibilidade ou não de produzir determinada prova.
Isto é, a inversão do ônus da prova somente deve ser autorizada nos casos em que o autor da ação de consumo esteja em situação de impossibilidade ou excessiva dificuldade de produzir provas sobre determinada alegação de fatos, estando a outra parte em melhores condições para tanto.
Ou seja, o requisito da hipossuficiência, para a inversão do ônus da prova, diz respeito à incapacidade técnica para a produção daquela prova. Essa interpretação se compatibiliza com a previsão do art. 373, §1º, do CPC. Justifica-se a modificação do ônus da prova somente para as alegações de fato em relações às quais essa hipossuficiência probatória estiver presente, sendo descabida uma “inversão” geral e não delimitada.
Consequentemente, a hipossuficiência para a produção de provas não se presume pela mera condição de consumidor: ela deve ser aferida caso a caso, considerando as peculiaridades ínsitas de cada parte, e nunca com base em presunções.
A partir dessas considerações, pode-se dar um passo adiante na discussão e analisar a questão a partir da perspectiva de Ações Coletivas de Consumo ou Ações Civis Públicas, promovidas por associações especializadas na defesa de consumidores ou pelo Ministério Público.
Naturalmente, nessas ações, não se está diante de um consumidor, mas, sim, de um órgão (privado ou estatal) que dispõe de excelentes condições para fundamentar e provar seus pleitos de forma suficiente, seja quanto aos fatos, seja quanto aos direitos.
Isso ocorre especialmente diante do Ministério Público, órgão estatal que pode inclusive conduzir inquéritos civis previamente à propositura da ação, dispondo de tempo e de recursos suficientes para a correta e ampla investigação dos fatos.
É isso que afirmou, inclusive, o ministro relator do acórdão ora analisado: o Ministério Público é “entidade que jamais pode ser considerada hipossuficiente, notadamente quando dotada de amplo poder investigatório de espectro administrativo pré-processual, cercando-se de vasto aparato técnico e jurídico para alcançar e reunir um conjunto probante para fazer frente ao ônus de prova estabelecido na lei de regência”.
Essa conclusão está em linha com a doutrina pátria, que destaca que “quando o oponente do fornecedor, em juízo, é o Ministério Público ou associação representativa (que dispõe de conhecimento e preparo muito maiores), essa discrepância do controle da informação tende a ser menor, se comparada com o consumidor individual. Isso, a nosso ver, justificaria uma maior parcimônia do juiz para deferir a inversão”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>.
Essas questões exigem que o julgador tenha maior cautela ao analisar os pedidos de inversão do ônus da prova em Ações Coletivas de Consumo ou Ações Civis Públicas. Do contrário, pode-se incorrer em violações à paridade de armas, à ampla defesa, ao contraditório e ao devido processo legal. No limite-se, aventa-se a imposição de uma prova diabólica ao fornecedor, ou seja, de um encargo excessivamente difícil ou mesmo impossível de ser cumprido – situação que encontra vedação legal (art. 372, §2º, CPC) e que é também inadmitida pelo STJ<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>.
Em síntese, mais do que reafirmar a noção de que a modificação dos encargos probatórios deve ser comunicada às partes antes da etapa instrutória, ao delimitar o conceito de hipossuficiência, o julgamento do REsp nº 1.286.273/SP contribui decisivamente para o estabelecimento de critérios que obstam a inversão automática do ônus da prova com base no art. 6º, VIII, do CDC, em ações coletivas ou ações civis públicas movidas pelo Ministério Público ou por associações especializadas apenas por tratarem de relações de consumo.
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<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> CARPES, Artur. Ônus da prova no novo CPC: do estático ao dinâmico. São Paulo: RT, 2017, p. 40-41 e 178.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> SICA, Heitor Vitor Mendonça. Questões velhas e novas sobre a inversão do ônus da prova. Revista de Processo, n. 146, p. 66.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> STJ, AgInt no AREsp 1206818/SP, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª T., j. 24.04.2018; REsp 1605703/SP, Rel. Min. Herman Benjamin, 2ª T., j. 08.11.2016; AgRg na MC 18189/BA, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, 2ª T., j. 11.10.2011.

processo

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JOTA

Análise do critério da hipossuficiência

Modificação dos ônus probatórios em ações coletivas de consumo

Análise do critério da hipossuficiência