Marcus Vinicius Dias

Quis os nossos constituintes, motivados pelos anseios legítimos de uma sociedade que se redemocratizava, que o acesso à saúde fosse um direito do cidadão e uma obrigação do Estado assegurá-lo. Esse desejo construído de fora para dentro de Brasília foi consagrado no emblemático artigo 196 da Carta Magna de 1988. Por meio dele, semente indefectível do Sistema Único de Saúde (<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sus">SUS</a>), nasceu anos depois o maior sistema de acesso universal à saúde do mundo. Não é difícil imaginar que os pais e mães fundadores do SUS não imaginavam, à época, que aquela ideia, expressa em palavras, alcançasse o tamanho e a abrangência do que hoje temos no Brasil em termos de sistema público de saúde. Nem tampouco os desafios de transformar aquela vontade expressa de saúde para todos em uma realidade. 
Se por um lado é crível supor que o centro do espírito motivador fundacional do SUS era o paciente — ou melhor ainda, a pessoa humana, em todas as suas dimensões, não apenas como doente, mas como cidadão —, podemos inferir, também, que apenas como uma preocupação secundária, terciária ou quaternária talvez, dos debates acerca daquela ousada proposta, fosse o gestor. Em que pese a linha assistencial, o direito humano, a civilidade democrática e o espírito legítimo dos primórdios da revolução francesa estivesse ali, a impressão que nos dá hoje, em retrospectiva, é que o “como implementar” essa revolução social não era alvo central das discussões à época. 
Os desafios organizacionais, a implementação de uma Santíssima Trindade mística que é ao mesmo tempo tripartite, mas também una, as dificuldades de financiamento, o inimaginável aumento do custo operacional motivado por incrementos tecnológicos são, nestas últimas quatro décadas, pontos nevrálgicos recorrentes para o gestor da saúde pública brasileira. Aliado a isso, por se tratar de orçamento público, portanto dinheiro do contribuinte sob guarda do erário, há uma rígida legislação que serve de prescrição à Administração e, muitas vezes, não tem a necessária flexibilidade, e a frequente urgência, que o ofício de prover saúde requer. 
Ao longo dos anos nosso sistema de saúde foi, gradativamente, abandonando o antigo INAMPS e migrando para o SUS. Ainda hoje há resquícios do “velho regime”, como o pagamento por procedimento, a famigerada tabela SUS, entre outros, mas, de modo global, a saúde pública hoje no Brasil se aproxima muito mais do modelo inglês do que do sistema norte-americano de saúde. Em grande medida esse avanço de cobertura e ampliação do acesso se deu por meio de instituições privadas filantrópicas que, embora sejam parte fundamental do sistema público de saúde, não são integrantes do aparato estatal. Mas, também de modo expressivo, a administração estatal dispensa ao cidadão serviços de saúde diretamente. Exemplos disso podem ser observados em hospitais municipais, estaduais e, pasmem, inclusive federais. Há no seio do sistema brasileiro enorme participação do Estado como executor da assistência à saúde do cidadão, e não só como formulador e financiador. 
Ao se propor a ser além do formulador, do fiscalizador e do financiador da saúde pública nacional também o executor, o Estado se vê frente ao desafio de equacionar às necessidades (particularíssimas da assistência) do cidadão, os entraves e as amarras da Lei de Licitações que, em que pese a recente modernização, com maxima venia aos estudiosos do Direito Administrativo, não atende de modo satisfatório às demandas de um paciente infartado, como atende às de uma construção de uma ponte, por exemplo. 
Diante deste, e de outros desafios, a dinâmica sociedade brasileira e os seus legisladores buscaram alternativas que visassem a aperfeiçoar a gestão, sem renunciar ao seu caráter público, mas tirando a pecha estatal de dentro da unidade de saúde. Nesse sentido surge a participação do terceiro setor por meio das controversas Organizações Sociais (OSs), disposta na Lei 9.637 de 1998. Modelo alternativo, ainda pouco popular no Brasil na área de saúde, são as Parcerias Público-Privadas, as PPPs que, assim como as OSs, mantém o serviço público, mas sob a gestão de uma pessoa jurídica de direito privado. 
Quem participou de algum modo, seja como paciente, seja como profissional de saúde, ou como gestor do SUS no Estado do Rio de Janeiro na 1ª década deste século, e seguiu participando a partir da 2ª, observou a transição de uma modelo de gestão direta, sob a batuta centralizada da Secretaria de Estado da Saúde, para um modelo descentralizado para as Organizações Sociais. Sem fulanizar o debate, é impossível negar os benefícios trazidos por esse modelo para a assistência da população, ideologias à parte. Mas no sentido oposto, não se pode ignorar os graves problemas no bojo desta mudança de eixo de gestão. Foge aqui ao nosso escopo nomear ganhos e apontar erros. Ambos são notórios ao cidadão fluminense. No entanto, foi a partir da explicitação dos problemas deste modelo descentralizado de gestão que a classe política local tomou a decisão de, ainda no ano de 2020, extinguir a participação das OSs, no âmbito estadual, da gestão da saúde, a partir de julho de 2024. 
Essa medida, legitimada amplamente pelo parlamento, impôs uma nova realidade ao gestor estadual de saúde no estado: fazer o caminho inverso da década passada e recentralizar a gestão de unidades de saúde geridas por Organizações Sociais. Aos que acham que um processo de fusão e aquisição é algo complexo, não tem a dimensão do que se trata de um processo como este que, há cerca de dois anos, tem sido praticado no âmbito da saúde estadual. Hoje, diferente do que era no passado pré-descentralização, a gestão não se dá diretamente pela Secretaria, mas por uma fundação pública de direito privado que, por ampla jurisprudência, nos mais diversos órgãos de controle de contas, e por grande literatura doutrinária, deve seguir os limites e recomendações da Lei de Licitações. 
Como quase tudo na vida, na atual situação, há os prós e os contras. Neste caso concreto, após a “retomada” da gestão pela Administração é notável a presença efetiva das políticas públicas nas unidades geridas pela Fundação. Por ser a própria Administração a executora da ação assistencial seu empenho, em materializar no atendimento direto ao usuário as suas portarias e normativas que norteiam a política no âmbito do SUS estadual, é mais diligente. Além disso, para além das ações de custeio, observamos o retorno das ações de investimento, especialmente as de recuperação de infraestrutra e de renovação do parque tecnológico.  
Mas há, claro, os desafios e obstáculos. Após uma década de gestão descentralizada para o terceiro setor, as unidades se acostumaram com a agilidade, por exemplo, na aquisição de insumos que uma entidade privada possui. Outro ponto que surge é, em virtude das limitações próprias da Administração, a dificuldade em se manter remunerações salariais prévias de mercado, com consequente risco de fuga de talentos.  
O modelo de OS como gestor de aparelhos de saúde é amplamente difundido no Brasil e no mundo. Traz consigo a agilidade, bem-vinda na assistência, própria de entes não públicos. Por meio de um contrato de gestão uma entidade privada, qualificada como Organização Social, recebe os recursos provenientes do fundo de saúde para gerir uma unidade, mediante a uma contrapartida quantitativa e qualitativa de produção assistencial. Os contratos são de no máximo cinco anos, como prevê a Lei de Licitações, podendo ser relicitado antes deste prazo, pelo interesse da Administração ou pela entrega do contrato pela organização gestora.  
Uma OS não tem recursos próprios, de modo que não coloca o seu dinheiro na frente. Ao contrário, depende de um adiantamento de repasse do ente público para iniciar sua operação. Portanto, não auxilia no financiamento da assistência. Um outro ponto peculiar das entidades qualificadas como OS é que não possuem fins lucrativos. Num primeiro momento esta benevolência nos soa simpática, mas na prática, em alguns casos em que a transparência na prestação de contas é frágil, pode ser o ovo da serpente de problemas sérios de accountability. 
Alternativa de descentralização da execução de serviços de saúde são as chamadas Parceria Público-Privadas, regulamentadas no Brasil desde 2004, por meio da Lei 11.079. Este tipo de contratação tem como pilares a transferência, em alguma medida, do risco da operação para o parceiro privado que receberá sua contrapartida por meio de metas de desempenho contratuais num contrato de longo prazo que, na nossa legislação, tem prazo mínimo de 10 anos e máximo de 35. 
Esta modalidade é bastante popular, por exemplo, na Inglaterra, onde grande parte das unidades são operadas através das chamadas PFIs (Private Finance Iniciative), conferindo maior eficiência na prestação dos serviços públicos. Por meio deste tipo de contrato, com financiamento privado, o NHS (Nacional Health Service), sistema público inglês de saúde que inspirou a idealização do nosso SUS, ampliou e qualificou seu sistema. 
Mas tal modelagem não é isenta de críticas. Os seus detratores alegam que o lucro permitido à Sociedade de Propósito Específico (SPE), uma espécie de consórcio formado por diversas pessoas jurídicas que vão administrar o contrato durante seu prazo de concessão, se fosse administrado por uma Organização Social, por hipótese, poderia ser convertido em economia aos cofres públicos. A réplica, dos defensores do modelo, é que a busca pela maximização do lucro acaba por incentivar soluções criativas por parte da SPE que geram maior eficiência e externalidades positivas, numa equação custo-benefício — denominada pelos especialistas como value for money — amplamente favorável à sociedade. 
Argumentos prós e contras existem aos montões. Não é objetivo aqui defender ou atacar um ou outro modelo. Mas resta claro que, em ambos, a magnitude de influência da Administração Pública na assistência é inferior a um modelo de gestão estatal direta. Isso pode ser atraente quando se imagina interferências casuísticas e não republicanas. Mas torna-se preocupante quando a execução e implementação das políticas e diretrizes de saúde pública não são alcançadas do modo que o formulador e o legislador as idealizaram. 
Solução perfeita para problemas complexos é utopia, ou charlatanismo. Mas há fartos exemplos de adaptações de soluções de outros setores para a saúde, e vice-versa. O nobre químico francês do século XVIII, Antoine Lavosier, imortalizou o adágio de que na natureza nada se cria. Nesse sentido, uma solução permitida, mas pouco usada na prática das PPPs, pode ser uma saída para o impasse da Administração que ora o Estado do Rio de Janeiro está encarando: manter a governança e a condução estratégica de suas unidades, não as terceirizando para o setor privado, e, ao mesmo tempo, ganhar a agilidade necessária para uma pronta respostas às necessidades assistenciais da população, se consorciando a ele.  
Os governos podem criar empresas de sua propriedade para um fim específico. Quando uma empresa pública é criada especificamente para construir, financiar e fazer a gestão de uma infraestrutra do tipo DBFOM (Design-Build-Operate-Maintain) — em português PCFOM (Projeto-Construção-Financiamento-Operação-Manutençao) — ela pode simular uma PPP stricto sensu, mas não é enquadrada como tal. Essa modelagem é chamada Parceria Pública-Pública. 
Mas há a possibilidade prevista da Administração Pública participar, por meio de uma pessoa jurídica sob o seu controle, de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) com outros parceiros privados, numa joint venture. E, a depender da estruturação do contrato, de modo a transferir parte do risco do negócio para os parceiros privados, esse arranjo pode funcionar tal qual uma PPP, assegurando ao poder público um grau de influência na gestão, de modo a garantir a implementação de suas políticas públicas de maneira mais efetiva, e, ao mesmo tempo, por meio dos parceiros privados, gerar valor ao projeto — e por extensão à sociedade — através da agilidade, criatividade e eficiência própria do setor. 
Retornando à Lavosier, no nosso meio, uma proposta com este espírito vigorou no sistema de partilhas dos novos poços de petróleo do pré sal, lá atrás, através da Lei 12.351 de 2010. Em que pese essa modelagem, por motivos que fogem aos nossos propósitos aqui neste texto, não ter sido bem-sucedida num projeto de energia, que não é obrigação constitucional do Estado prover, não significa que numa área social como a saúde uma gestão partilhada, constituída por uma SPE em que o poder público seja um dos associados, não possa ser uma solução, até certo ponto inovadora, para os desafios da prestar assistência universal e gratuita à população. 
Cuidar da governança e da formulação estratégica de uma unidade de saúde, deixando aos demais membros privados do consórcio a gestão e a logística de insumos, de equipamentos, de capital humano, de serviços de apoio, de infraestrutura, entre outros, pode ser uma saída para os desafios da gestão direta pelo poder público na área da saúde. Neste modelo híbrido, o melhor dos dois mundos poderia ser potencializado, uma vez que o Estado segue assegurando a governança, mas o parceiro privado entra com sua expertise gerando, por fim, o value for money, num verdadeiro consórcio provedor de saúde. Essa pode ser uma das alternativas para o SUS do Estado do Rio de Janeiro no presente. Essa pode ser uma das possibilidades de modelo para a saúde pública do Brasil no futuro.

https://images.jota.info/wp-content/uploads/2021/09/copy-of-jota-logo-high-cmyk.jpeg

JOTA

Mecanismo de gestão pode ser uma das possibilidades para a saúde pública do Brasil no futuro

Modelo de partilha como alternativa para a gestão em saúde

Modelo de partilha no SUS: essa pode ser uma das possibilidades de modelo para a saúde pública do Brasil no futuro