Márcio Holland

José Maria Arruda de Andrade

Aumentar a tributação sobre bebidas adoçadas é uma saída fácil para um problema complexo e com resultados altamente duvidosos. Não há dúvida alguma de que o sobrepeso e a obesidade se tornaram uma epidemia de grande proporção, com graves consequências na forma de doenças crônicas e mesmo na mortalidade. Contudo, sua solução não é trivial e não há uma única medida suficiente para tratar do tema.
De acordo com as últimas manifestações da Organização Mundial da Saúde (OMS), como em 9 de junho de 2021<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, o sobrepeso e a obesidade têm como causa o desbalanço entre um aumento na ingestão de alimentos densos em energia, que são ricos em gordura e açúcares, e ao mesmo tempo, um aumento da inatividade física devido à natureza cada vez mais sedentária de muitas formas de trabalho, mudança de modos de transporte e aumento da urbanização.
As evidências internacionais apontam para soluções mais integradas e multidimensionais, se o propósito for mesmo melhorar a saúde das pessoas e não apenas buscar uma fonte adicional de receita pública. Esse é o caso de outro importante relatório produzido pelo Banco Mundial (2020), com o título “Obesity Health and Economic Consequences of an Impending Global Challenge”. O documento, editado por Meera Shekar e Barry Popkin, chama atenção para mudanças no mundo do emprego, incluindo a crescente participação da mulher no mercado de trabalho, na mobilidade urbana muito baseada em transportes de baixo consumo calórico, entre outros. Por isso, a agenda de políticas públicas voltadas para a redução do excesso de peso não saudável precisa contemplar um amplo espectro de medidas, incluindo abordagens regulatórias e educacionais.
Da mesma forma, a tributação não é tema tão simples para se realizar a transposição linear de experiências internacionais, como no famoso ditado em inglês, “one size doesn't fit all”, que em tradução livre poderia ser “não existe uma solução de tamanho único para todos”. No caso da tributação, essa expressão ganha dimensão especial. Cada país tem um sistema tributário distinto, dado pela sua experiência histórica e as características do país em termos de grau de desenvolvimento, nível de renda per capita, escolaridade, entre outros.
Um caso de tributação sobre bebidas adoçadas não alcóolicas muito comentado é o do México, criado no início de 2014, como um excise tax de 1 peso mexicano por litro, a ser pago pelo produtor. Este país possui características muito específicas de consumo de bebidas adoçadas e problemas com sobrepeso e obesidade. No México, 73% e 36%, entre adultos e crianças, respectivamente, apresentam sobrepeso e obesidade. Com um consumo por ano e per capita de 163 litros e respondendo por 10% das calorias obtidas pelas famílias, houve forte mobilização e financiamento de campanhas a favor da criação do tributo. Mesmo assim, o sobrepeso e a obesidade devem seguir crescendo no México. Projeções da OCDE (Obesity Updated 2017) apontam para aumento da obesidade (índice de massa corporal acima de 30) de 35% da população, em 2017, para 40% da população, em 2030.
No Brasil, ao contrário, a arrecadação tributária global recai, majoritariamente, sobre o consumo (algo em torno de metade do montante da arrecadação nacional), de forma que o impacto sobre preços e sobre as despesas das famílias, incluindo o debate sobre regressividade, deve ser ponderado levando em conta a tributação atual e o sobrepreço proposto por alguns defensores da majoração da tributação sobre bebidas adoçadas como instrumento para desincentivar o seu consumo.
No caso de refrigerantes, um soda tax hipotético de 50%, por exemplo, seria somado à carga tributária atual, de 37% (podendo chegar a 45%) dentre ICMS, IPI, PIS e Cofins sobre o preço final ao consumidor, ou seja, algo que pode chegar a uma carga efetiva de 87% a 95%, a depender da técnica utilizada para a incidência do novo tributo.
Os dados brasileiros, por outro lado, são bem distantes da realidade mexicana, apesar da justificada preocupação com a obesidade. O consumo per capita de refrigerantes é de 58,7 litros e vem decrescendo há vários anos seguidos, e tais bebidas são responsáveis por apenas 1,3% da fonte calórica familiar<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>, o que impede maiores conclusões de causalidade com o aumento de peso da população. Na comparação internacional, conforme dados do Euromonitor International, o consumo brasileiro de refrigerantes per capita por ano está entre os menores para uma ampla amostra de 93 países. Além de bem abaixo da média mundial, o consumo per capita de refrigerantes no Brasil caiu 34% de 2010 para 2020.
A propósito, propostas de aumento da tributação sobre bebidas adoçadas partem de uma noção frágil de causalidade de aumento no consumo destas bebidas para aumento de sobrepeso e obesidade. Inferir sobre causalidade entre duas ou mais variáveis requer procedimentos empíricos que esses estudos simplesmente não apresentam.
É preciso controlar o aumento do sobrepeso e da obesidade por uma série de fatores, como a faixa etária, a própria obesidade familiar, falta de aleitamento materno, modo de vida e de trabalho, formas de transporte público, gênero, renda per capita e nível de desenvolvimento, escolaridade, questões metabólicas e hormonais, traumas e distúrbios psicossociais, tabagismo, outros consumos calóricos, entre outros. Somente a partir de uma abordagem multidisciplinar pode-se inferir a relevância de cada fator na contribuição ao aumento de obesidade. No Brasil, desconhecemos estudo com essa qualidade e robustez.
A partir dessa avaliação, pode-se propor boas práticas de políticas públicas para endereçar o problema da obesidade, como se observa em outros países, como estimular meios alternativos de transporte público, aprimorar as políticas de rotulagem, promover ampla educação de vida saudável na infância, regular a forma de comércio de uma série de produtos, estimular atividades físicas, incluindo-as nas horas laborais.
Novamente, a tributação deve ser pensada no contexto de cada país. Sempre importante lembrar que um bom sistema tributário requer, entre outros, transparência (o quanto o contribuinte paga de tributo sobre cada produto e serviço consumido) e simplicidade para arrecadar.
Ao se preterir uma ampla campanha sobre produtos com forte presença de sal, gorduras saturadas e açúcar, de forma generalizada (pela via regulatória ou educacional), em favor de uma tributação com base em pouquíssimos eleitos para sofrer o sobrepreço, promove-se uma loteria decorrente do efeito substituição: uma aposta desigual em relação à renda familiar sobre se o bem substituto será menos calórico ou mais saudável que o original. A título exemplificativo, nos estudos que simulam a substituição de refrigerantes por sucos naturais, caldo de cana e outros tantos sucos calóricos seriam considerados bons substitutos?
Os autores que defendem aumento da tributação sobre bebidas adoçadas, via de regra, fazem uso das estimações das elasticidades-preço da demanda por essas bebidas e das elasticidades cruzadas com outras bebidas, supostamente substitutas entre si. Como a elasticidade-preço da demanda de refrigerantes, por exemplo, é negativa, concluem apressadamente que forçar seu aumento de preços reduziria seu consumo. E como a elasticidade cruzada com outras bebidas consideradas saudáveis é positiva, seria esperado aumento no consumo destas outras bebidas, como água, suco natural, café e leite.
Ao contrário do que desejam os defensores de aumento da tributação sobre bebidas adoçadas, a substituição por sucos naturais é baixa, conforme elasticidade-cruzada entre refrigerante e sucos naturais de apenas 0,21, em nossas estimações com base na POF de 2017/2018. Ou seja, para cada 1% de aumento de preços forçado por aumento de tributação de refrigerante levaria a aumento de 0,21% no consumo de sucos naturais. No caso de “água”, a elasticidade cruzada que encontramos é de 0,38%, ou seja, aumento no preço de refrigerante forçado devido a um forte aumento na sua tributação causaria aumento de consumo muito pouco relevante de água.
Os defensores da majoração da tributação sobre bebidas adoçadas também se esquecem dos efeitos por perfil de renda. Nas estimações de elasticidades-preço de demanda por decil de renda, os consumidores de maior renda também se mostram menos sensíveis ao aumento de preço do que os consumidores de menor renda. Ou seja, grande parte da contração de demanda por bebidas deve acontecer entre as famílias mais pobres.
A tributação adicional sobre bebidas adoçadas não tem, portanto, efeitos sobre a saúde pública, mas com certeza, reduz a renda das famílias brasileiras, notadamente as mais pobres. Ou seja, haverá redução relevante de renda disponível nas famílias com menor nível de renda. O efeito final sobre o faturamento das empresas fabricantes de refrigerantes tende a ser neutro, ou mesmo positivo, uma vez que essas empresas se adaptam facilmente ao novo sistema tributário alterando seu mix de produtos. Mas, as famílias brasileiras consumiriam menos pagando mais.
Outro fato usualmente esquecido em propostas de aumento de tributação de um bem para a redução de seu consumo é o chamado efeito permanente, de longo prazo, como muito bem apontou Nakhimovsky S.S et al (2016), no artigo com o título “Taxes on Sugar-Sweetened Beverages to Reduce Overweight and Obesity in Middle-Income Countries: A Systematic Review”<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>. Pode-se até chegar à queda no consumo de refrigerantes no curto prazo, mas, com o tempo, o sistema econômico se acomoda a uma nova estrutura de preços relativos, ficando apenas o resultado de maior carga tributária para famílias mais pobres. A propósito, elasticidade é um conceito de curto prazo.
Ao longo das últimas décadas, o Brasil vem experimentando um aumento expressivo em sua carga tributária. Em especial, desde o final dos anos 1980, a carga tributária saiu de 25% do PIB para 32,5% do PIB, conforme cálculos da própria Receita Federal. Esse aumento de arrecadação tributária tem sido destinado crescentemente para o financiamento da previdência social e da folha de salário dos servidores púbicos.
Mais de 95% das despesas do orçamento da União são consideradas obrigatórias e esse percentual deverá crescer ainda mais nos próximos anos. Eventual arrecadação adicional com majoração de tributos de bebidas adoçadas não deve aumentar necessariamente os recursos orçamentários para a saúde pública, mas apenas reforçar o caixa da previdência social e da folha de salários da União. Como o sistema tributário brasileiro já é um dos mais regressivos do mundo, com 50% da carga tributária advindo dos tributos sobre o consumo, aumento de tributação de bebidas adoçadas, ou de qualquer outro alimento, apenas aumenta o peso da tributação das famílias mais pobres.
É importante, ainda, destacar o peso do setor de bebidas adoçadas no emprego e valor adicionado bruto. Para dados de 2019, de acordo com a RAIS/Ministério do Trabalho, para qualquer porte de empresa, a fabricação de refrigerantes emprega 46 mil trabalhadores diretamente enquanto a fabricação de sucos naturais e de água envasada, juntos, empregam 40 mil trabalhadores.
Olhando para dados da PIA/IBGE, para o caso de estabelecimentos com pelo menos 30 pessoas ocupadas, a fabricação de refrigerantes emprega 68,7 mil trabalhadores diretamente em seus estabelecimentos industriais e gera R$ 31,5 bilhões em valor adicionado bruto, enquanto a fabricação de águas envasadas, juntamente com sucos naturais empregam 60 mil trabalhadores e geram R$ 18 bilhões em valor adicionado bruto da produção industrial.
Fato curioso é que as estimações de impacto da FIPE (2020) supõem emprego maior nos segmentos de fabricação de bebidas substitutas aos refrigerantes. Somente com essa hipótese, que não corresponde nem com os dados do Ministério do Trabalho, nem com os do IBGE, e com a ideia controversa de que a queda de consumo de refrigerantes seria mais do que compensada por aumento ainda maior de consumo de outras bebidas não alcoólicas, foi possível à FIPE concluir que a tributação sobre bebidas adoçadas aumentaria o PIB, o emprego e a arrecadação.
Nossos resultados, conforme mesma metodologia de insumo-produto, e a partir dos dados observados na PIA/IBGE e na RAIS/Ministério do Trabalho, concluem que, no caso de majoração da tributação em 10% sobre o consumo final de refrigerantes, haveria redução de 7.700 postos de trabalho e queda no PIB em R$ 649,9 milhões; além disso, a arrecadação tributária encolheria R$ 425 milhões.
Em caso extremo, de majoração da tributação em 50% sobre refrigerantes, mais de 38 mil postos de trabalho seriam fechados, a economia encolheria em R$ 3,3 bilhões e a arrecadação contrairia R$ 2,12 bilhões. Esses resultados contraditórios com os da FIPE (2020) apenas reforçam nossa recomendação para uso com parcimônia destas metodologias empíricas. Uma decisão sobre o impacto tributário a ser suportado de forma distinta entre as categorias de renda familiar é, acima de tudo, uma decisão política, que precisa ser transparente e democrática, e não um laboratório para simulações otimistas e limitadas em seus pressupostos simplificadores.
Podemos concluir que, se o objetivo for o de endereçar o grave problema de saúde pública do crescimento da obesidade no Brasil, o aumento da tributação sobre algumas bebidas adoçadas parece ser apenas o meio mais duvidoso, parcial e incompleto de alteração efetiva dos hábitos da população.
<hr />
<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Veja, a respeito, o seguinte link: <a href="https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight">https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/obesity-and-overweight</a>
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> IBGE (2020:62 e ss.). Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018). Livro Análise do Consumo Alimentar Pessoal no Brasil.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> PLoS ONE 11(9): e0163358.

sugar tax

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JOTA

Decisão deve ser transparente, não um laboratório para simulações limitadas em pressupostos simplificadores

Mitos da tributação das bebidas adoçadas no Brasil

Aumentar a tributação sobre bebidas adoçadas é uma saída fácil para um problema complexo e com resultados altamente duvidosos