Nahomi Helena

O ano de 2020 tem sido marcado pela viralização de alguns dos inúmeros casos de racismo que cotidianamente afligem o Brasil e o mundo. O sufocamento por um policial, o abandono do filho da empregada doméstica no elevador, a bala perdida na favela que atinge a criança pelas costas ou a decisão de juíza que agrava a pena “em razão de sua raça”; cada uma dessas situações dilacera a ferida de uma sociedade construída sobre a ideia de inferioridade dos não brancos.
A sensibilização da pauta, que diariamente afeta a maioria das cidadãs e cidadãos brasileiros, acabou por coincidir com a análise do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) da consulta proposta pela deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), apoiada pelo Educafro, sobre a possibilidade de destinação de reserva de vagas e cota do Fundo Especial de Financiamento de Campanhas (FEFC) para candidaturas negras.
<a href="https://conteudo.jota.info/risco-politico"><img class="aligncenter wp-image-244336 size-full" src="https://www.jota.info/wp-content/uploads/2020/04/cta-risco-politico.png" alt="" width="1080" height="1080" /></a>
O julgamento foi finalizado no dia 26 de agosto<a href="#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>, com efusiva fala do presidente da Corte e relator, min. Luís Roberto Barroso, ao afirmar que “há momentos na vida em que cada um precisa escolher de que lado da história deseja estar”, e que nesse dia o TSE estaria “do lado dos que combatem o racismo, do lado dos que querem escrever a história do Brasil com tintas de todas as cores”.
Esse foi o contexto da sessão virtual que agrupou eminentes nomes do direito brasileiro, que atualmente compõem o quadro homogêneo de ministros brancos do Tribunal, para falar sobre racismo estrutural, sub-representação em espaços de poder, igualdade de oportunidades, consequências da escravização e interseccionalidade. O tipo de conhecimento apartado dos currículos de bacharel em direito foi exposto pela Corte como robusto, complexo e diretamente atrelado à segurança jurídica, legalidade e princípios estruturantes do ordenamento pátrio.
A consulente formulou quatro indagações, que consistem: i) na repartição proporcional entre mulheres brancas e negras dos recursos financeiros e tempo de propaganda eleitoral; ii) na possibilidade de reserva de vagas de 30% para pessoas negras; iii) na distribuição de recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC) e do tempo de propaganda eleitoral para pessoas negras, conforme entendimento da Corte sobre participação feminina na política.
No texto da consulta, referiu-se ao período eleitoral como a “festa da democracia” em que a porta restringe a entrada de pessoas negras como agentes de mudança do jogo democrático, para além do voto. Sob ótica legalista, fundamentou a questão na Constituição de 1988 e no Estatuto da Igualdade Racial.
O min. Barroso iniciou seu voto reconhecendo o Brasil e nossa sociedade enquanto racistas, dedicando em seguida especial atenção à perspectiva estrutural do racismo, que atravessa todos os âmbitos sociais e é reproduzido por instituições em condutas mascaradas por uma suposta neutralidade. Também enfatizou a igualdade enquanto premissa de atuação positiva que encontra, na dimensão material e na de reconhecimento, os deveres do Estado na consolidação de uma democracia participativa plural. Foi acompanhado pelo min. Luiz Edson Fachin que problematizou a concepção de cidadania norteadora do exercício dos direitos políticos fundamentais, agregando em seu voto considerações às lentes raciais e de gênero.
Após pedir vista, o min. Alexandre de Moraes propôs uma regra de transição que evitasse redução de candidaturas de pessoas negras no país, embasada nos dados das eleições de 2018 e 2016 que apresentaram “uma reação do sistema político eleitoral em proteção aos ‘candidatos e candidatas brancos’, principalmente em relação aos ‘homens brancos’”.
Em contraponto, o min. Og Fernandes se ateve a análises técnicas e defendeu a aplicação da decisão apenas para o pleito de 2022, sem deixar de ressaltar a omissão legislativa na elaboração de políticas afirmativas em matéria eleitoral. Foi acompanhado pelo min. Luis Felipe Salomão que pontuou a importância de observar os princípios da anualidade e da segurança jurídica, assim como de atuar enquanto instituição no combate ao racismo enraizado.
Da mesma forma, partilhou do entendimento o min. Sérgio Banhos, após apontar o racismo estrutural decorrente do processo de abolição da escravatura sem inclusão social como uma das mais graves mazelas da história brasileira.
Na linha do parecer do Ministério Público, o min. Tarcísio Vieira Neto confirmou as desigualdades ao enfatizar ações afirmativas em vigor, mas abriu divergência por entender pela ausência de arcabouço normativo necessário para essa interpretação.
<blockquote class="jota-article__eye">Assim, o Plenário respondeu negativamente à segunda questão, sobre reserva de cotas, por entender ser competência do Poder Legislativo, e afirmativamente às demais questões, com a ressalva de a distribuição respeitar a proporção apresentada pelos partidos.</blockquote>
A partir de 2022 deverá ser constatado uma repartição dos recursos públicos do Fundo Partidário, do FEFC e do tempo de rádio e TV entre candidaturas de pessoas negras e pessoas brancas, respeitando também a questão de gênero.
<h3>Cores que pintaram os votos</h3>
Não é fácil para um Tribunal Superior retirar sua jurisprudência do consolidado positivismo “preto no branco” e questionar suas próprias estruturas. O direito fechado, vendado e falsamente neutro carrega em si a manutenção do status quo, sempre confortável para quem se encontra em posições de privilégios perante espaços de poder. Adentrar o debate racial perpassando questões de gênero (e até de classe) supera o preparo atualmente exigido de bacharéis em direito.
Ora, se a complexidade é evidente, também o é a obrigatoriedade. A Constituição Federal de 1988 trata expressamente do tema em seus artigos 3º, 4º, 5º, e 227, bem como tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que possuem valor constitucional, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial. Não suficiente a explícita violação à norma fundamental do ordenamento, também a legislação infraconstitucional se faz presente pelo Estatuto da Igualdade Racial, Lei de Racismo, Código Penal e outros.
Percebe-se que a Corte, em verdade, foi obrigada a encarar vozes que sempre gritaram e nunca foram ouvidas, a assumir o dever preconizado no texto constitucional de promover o bem de todos, sem discriminação. Foi perturbada pela injustificada omissão de todas as instituições na garantia da dignidade, igualdade, liberdade, vida, honra, propriedade e segurança de grupos minorizados que estão longe de serem minorias.
Ou seja, a consulta levou os ministros a reconhecerem no direito o sujeito ideal para quem foi produzido, um discurso montado para silenciar “os outros”<a href="#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>: negritude, mulheres, indígenas, comunidade LGBTI, deficientes e comunidades tradicionais. E mais: pautou a questão dentro do direito eleitoral, âmbito em que as premissas democráticas possuem acentuada relevância e doutrinas defendem a participação de grupos vulneráveis no debate público e nas instituições políticas.<a href="#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>
O caso demonstra um importante fato: as pessoas que hoje se encontram em espaços de poder não conseguirão mais calar, serão forçados a escolher que uso darão a seus locais de fala. Na ocasião, optou-se por aclamar Martin Luther King, Silvio Almeida, Sueli Carneiro, Adilson Moreira, Djamila Ribeiro, Kabengele Munanga, Movimento Negro Unificado, Rede de Mulheres Negras, Associação Quilombola e Afrodescendente da Restinga e tantos outros e outras que representam mais de 500 anos de luta por justiça.
Certamente haverá quem recorra ao racismo reverso, à democracia racial ou à ideia da negritude como mais propensa à criminalidade, à exemplo de eugenistas que padeceram nos escombros da história. Afinal, na era da pós-verdade, retóricas falsas soam tão bem aos ouvidos que são tidas como fatos e construídas como argumentos, a serem desmascarados por dados, ciência e conhecimento.
As mudanças estão sendo conquistadas, pouco a pouco, tendo na política o palco para o que foi apontado pela Coalizão Negra por Direitos, em sede de amicus curiae, como “mecanismos que proporcionem chances reais de participação política que promoveria mudanças sociais profundas no cenário de vulnerabilidade social ao qual estão inseridos.”<a href="#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a> Um mero sonho para, quem sabe, poder ver a Constituição sendo levada a sério.
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<a href="#_ftnref1" name="_ftn1">[1]</a> Comunicado de Imprensa do TSE sobre o julgamento da Consulta 0600306-47.2019.6.00.0000, disponível em: &lt;http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Agosto/tse-distribuicao-fefc-candidatos-negros&gt;.
<a href="#_ftnref2" name="_ftn2">[2]</a> CORBO, Wallace de Almeida. “O que é lugar de fala” e por que ele importa para o Direito? Rio de Janeiro: Revista Publicum, v. 4, n. 1, 2018, p.248-251. Disponível em: &lt;https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/ 
publicum/article/view/35205/25144&gt;. Acesso em: 26 de agosto de 2020.
<a href="#_ftnref3" name="_ftn3">[3]</a> SALGADO, Eneida Desiree. Princípios Constitucionais Eleitorais. Belo Horizonte: Fórum, ed. 2, 2015, p. 155.
<a href="#_ftnref4" name="_ftn4">[4]</a> Amicus Curiae redigido pela Coalizão Negra por Direitos. Disponível em: &lt;https://coalizaonegrapordireitos.org.br/wp-content/uploads/2020/08/CND_-Amicus-Curiae_Financiamento-Eleitoral.pdf&gt;.

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JOTA

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