Suely Araújo

Marcio Astrini

Neste ano, pela primeira vez na história, o governo brasileiro foi processado no Supremo Tribunal Federal por não cumprir uma parte da legislação nacional sobre mudanças climáticas. Em 5 de junho, Dia Mundial do Meio Ambiente, os partidos PSOL, Rede, PT e PSB impetraram na corte uma ADPF (arguição de descumprimento de princípio fundamental) visando obrigar o Executivo a reativar o Fundo Nacional sobre Mudança do Clima (Fundo Clima), que havia sido paralisado durante todo o governo Bolsonaro.
A paralisação daquele que era um dos principais mecanismos de financiamento à adaptação à crise climática e à mitigação das emissões de gases de efeito estufa era ilegal, imoral e intolerável. Mas não inesperada: o ministro do Meio Ambiente vinha expressando visões negacionistas sobre o aquecimento global desde a sua indicação para o cargo. Ricardo Salles já afirmou que a mudança climática poderia decorrer “da dinâmica geológica da Terra”, ou que era um <a href="https://jovempan.com.br/noticias/brasil/precisamos-discutir-o-brasil-de-amanha-nao-o-mundo-daqui-a-500-anos-diz-ricardo-salles.html">assunto para “daqui a 500 anos”</a>, ou que havia dúvida sobre “<a href="http://www.observatoriodoclima.eco.br/expliqueaosalles-os-erros-ministro-meio-ambiente-no-senado/">o percentual de contribuição das atividades humanas</a>”.
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Logo no começo do mandato, o ministro decretou que o principal problema ambiental do Brasil estava nas cidades – e tornou a agenda urbana, ao menos no discurso, a principal prioridade do ministério. E o clima? Ah, não havia clima para isso.
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Pressionado pela ação no STF, Salles se mexeu rápido: realizou em 15 de julho a <a href="https://www.mma.gov.br/clima/fundo-nacional-sobre-mudanca-do-clima/comite-gestor/reunioes.htm">primeira reunião neste governo</a> do comitê gestor do Fundo Clima – colegiado que fora extinto no “revogaço” de abril de 2019 e recriado em novembro, às vésperas da conferência do clima de Madri, com sua composição alterada para que o governo federal passasse a ter o controle das decisões.
E, pouco tempo antes da audiência histórica organizada pelo ministro Luís Roberto Barroso em 22 de setembro, o governo fez o maior aporte já realizado no Fundo Clima em seus 11 anos de existência: depositou no BNDES os recursos de 2019 que haviam ficado parados (R$ 349 milhões), mais os de 2020 (R$ 233 milhões), num total de quase R$ 582 milhões. Sem nem enrubescer, Salles <a href="https://www.youtube.com/watch?v=e7Z7GjTtPDk">disse a Barroso na audiência que a ação havia “perdido o objeto”</a>, já que o fundo estava rodando normalmente.
O tamanho da esmola dava motivo de sobra para a desconfiança do santo. E, com efeito, Salles esclareceu o mistério ainda no mês de agosto, declarando que os recursos do fundo reembolsáveis, que são repassados ao BNDES, seriam utilizados para projetos de qualidade ambiental nas cidades, nos setores de resíduos sólidos e <a href="https://www.em.com.br/app/noticia/economia/2020/08/04/internas_economia,1172981/salles-assina-acordo-com-bndes-para-liberar-credito-de-r-350-mi-do-fu.shtml;">saneamento,</a> pelas falas entendido basicamente como aplicação em esgotamento sanitário.
No que se refere à parcela do fundo de recursos reembolsáveis, gerida diretamente pelo Ministério do Meio Ambiente, a proposta de usar 100% dos recursos para resíduos sólidos chegou a entrar na pauta da primeira reunião do comitê gestor em julho, mas foi retirada por ser altamente controversa.
<blockquote class="western jota-article__eye" lang="pt-BR">O ministro fez do limão uma limonada: de uma só vez, buscou livrar-se de um julgamento no STF e ainda direcionou mais de meio bilhão de reais para agendas de seu interesse político – agendas estas, ressalte-se, de grande capilaridade nos municípios e potencialmente interessantes para prefeitos aliados. A pergunta que fica é: e o clima?</blockquote>
Do ponto de vista da mitigação das mudanças climáticas, objetivo primordial do Fundo, direcionar recursos para lixo e esgoto faz pouco sentido. Somados, os dois setores respondem por apenas 4% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa, <a href="http://www.observatoriodoclima.eco.br/emissoes-brasil-sobem-10-no-1o-ano-de-bolsonaro/">segundo os dados mais recentes do SEEG</a> (Sistema de Estimativas de Emissões de Gases de Efeito Estufa). Compare-se com a agropecuária, que responde por 28% do total nacional, o setor de energia, que detém 19%, ou o campeão absoluto, o desmatamento, com 44%.
Os criadores do Fundo Clima tinham isso claro em 2009. Tanto que o setor de resíduos não aparece na Lei nº 12.114/2009 entre as atividades elegíveis para financiamento pelo fundo – diferentemente do desmatamento e da degradação florestal. Salles também sabia que teria dificuldade de conseguir um <a href="https://www.redebrasilatual.com.br/ambiente/2020/05/em-reuniao-de-ministros-salles-defendeu-que-governo-bolsonaro-passe-a-boiada-no-meio-ambiente/">“parecer” para sua “caneta”</a> nesse caso.
Ainda em 2019, fez alterar por decreto as atribuições do fundo, de forma a permitir explicitamente o financiamento de projetos em saneamento, coleta de biogás e destinação final adequada de resíduos sólidos. Trata-se de clara regulação ultra legem, pois essas aplicações não constam na lei instituidora do fundo.
Embora evidentemente haja projetos no setor que reduzam emissões, como a queima de metano em aterros controlados para a geração de energia, e embora seja evidentemente meritório (e, mais do que isso obrigação legal do governo desde 2010) direcionar esforços para acabar com os lixões no país, isso está muito longe de ser uma preocupação central para um fundo que tem “clima” em seu nome e nasceu como um instrumento central da Política Nacional sobre Mudança do Clima.
Do ponto de vista do Ministério do Meio Ambiente, também soa cognitivamente dissonante a paixão de Ricardo Salles por esgoto e lixo. Afinal, seu primeiro ato como ministro, em 2 de janeiro de 2019, respaldando decisão do governo de esvaziar o MMA, foi assinar o decreto de reestruturação do ministério que destacava do ministério a Agência Nacional de Águas, única instância pela qual a pasta tinha alguma governança sobre o tema de saneamento.
A julgar pela <a href="http://www.observatoriodoclima.eco.br/wp-content/uploads/2020/09/nota-OC-execuc%CC%A7a%CC%83o-orc%CC%A7amenta%CC%81ria-MMA-Administrac%CC%A7a%CC%83o-Direta-final.pdf">liquidação em 2019 de apenas 6% dos recursos</a> que tinha disponíveis no ministério para formular políticas de qualidade ambiental, inclusive a urbana, o tema de resíduos tampouco tem muita solidez na agenda. Esse dado e outros referentes ao problema de baixa execução orçamentária no MMA-Administração Direta foram apontados em <a href="https://eaud.cgu.gov.br/relatorios/875381">Relatório de Auditoria Anual de Contas do MMA</a> realizado pela Controladoria-Geral da União.
O meio bilhão de recursos do Fundo Clima que poderia ir para pesquisa de novas tecnologias de energia, de restauração florestal ou de mitigação de emissões do rebanho bovino, para estudos sobre adaptação de cidades costeiras e favelas ou de mobilidade urbana de baixo carbono tende a ser integralmente aplicado, a prevalecer a vontade do ministro, em setor que responde pela menor parcela das emissões do país.
E nas quais, de resto, esse dinheiro tende a ter muito pouco impacto: o próprio Salles <a href="https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/10/bolsonaro-o-meio-ambiente-e-as-pessoas.shtml">já admitiu publicamente</a> que os recursos necessários para solucionar a deficiência de saneamento do Brasil são da ordem de R$ 600 bilhões – três ordens de grandeza maiores do que o valor disponível no Fundo Clima.
Tão grave quanto isso é que a governança do fundo esteja totalmente sob controle de Salles. Diferentemente do que aconteceu nos comitês do Fundo Amazônia – em que Salles precisou enfrentar a oposição dos países doadores e teve frustrada a tentativa de controlar sua composição –, a recriação do comitê gestor do Fundo Clima em 2019 foi feita como o ministro queria, excluída a participação da sociedade civil.
O único representante da sociedade no colegiado, com um assento, é o paraestatal Fórum Brasileiro de Mudança do Clima, presidido por ninguém menos que o Presidente da República. O governo tem seis assentos titulares e o setor privado, quatro.
A representante do fórum tem sido voto vencido em todas as matérias nas reuniões. No último dia 22 de <a href="https://www.mma.gov.br/images/Ata%2028.pdf">outubro</a>, por exemplo, foi contra a destinação de R$ 6,2 milhões da parcela não reembolsável do Fundo Clima, destinada a fundo perdido pelo próprio MMA, para um projeto de lixão zero em Rondônia ressaltando que o Fundo Clima não deveria ser usado para passivos ambientais e sim para ações que evitem emissões ou promovam a adaptação. Não era o caso do projeto, mas ele foi aprovado mesmo assim, por 10 votos a 1.
Com o controle sobre o comitê e R$ 582 milhões na mão, Ricardo Salles será mais ou menos literalmente o proverbial pinto no lixo. Para tentar prevenir a atuação aparentemente abusiva do ministro, o Observatório do Clima apresentou na ADPF do Fundo Clima pedido para que o Supremo Tribunal Federal atente para o possível desvio da finalidade do fundo. Ainda há tempo de impedir a passagem dessa boiada.

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Novo episódio do '<a href="https://www.jota.info/tudo-sobre/sem-precedentes" target="_blank" rel="noopener noreferrer">Sem Precedentes</a>' analisa a nova rotina do STF, que hoje tem julgado apenas 1% dos processos de forma presencial. Assista:
https://www.youtube.com/watch?v=a6M2upbiCFY&amp;feature=emb_title

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JOTA

Após processo por parar Fundo Clima, Salles tenta usá-lo para seus interesses; STF precisa fechar essa porteira

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O ministro da boiada: Após processo por parar Fundo Clima, Salles tenta usá-lo para seus interesses; STF precisa fechar essa porteira